Ninguém confia em ninguém, mas a trégua na Síria continua
Já há mortos e bombardeamentos a lamentar e a ajuda da ONU está bloqueada junto à fronteira turca, com “o mundo a assistir”. Russos e americanos consideram que o cessar-fogo está em vigor até segunda-feira.
o Presidente russo, Vladimir Putin, acusa os Estados Unidos de “quererem preservar a possibilidade de combater o Governo legítimo do Presidente [Bashar al-] Assad, numa via muito perigosa”. Barack Obama está “extremamente preocupado porque Assad continua a bloquear a distribuição de ajuda humanitária indispensável”.
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o Presidente russo, Vladimir Putin, acusa os Estados Unidos de “quererem preservar a possibilidade de combater o Governo legítimo do Presidente [Bashar al-] Assad, numa via muito perigosa”. Barack Obama está “extremamente preocupado porque Assad continua a bloquear a distribuição de ajuda humanitária indispensável”.
Uma semana depois do anúncio de uma nova trégua, descrita pelo secretário de Estado americano, John Kerry, como “última hipótese para salvar uma Síria unida”, o Conselho de Segurança das Nações Unidas cancelou na madrugada de sábado (sexta-feira à noite em Nova Iorque) uma reunião urgente sobre o acordo. Os membros do órgão executivo da ONU precisam de saber mais; Washington recusa partilhar pormenores por motivos de “segurança operacional”.
O cessar-fogo entrou em vigor na segunda-feira e está previsto que nem o regime ataque as zonas controladas pela oposição (com a excepção do Daesh e da ex-Frente Nusra, actual Jabhat Fatah al-Sham) nem a oposição armada ataque o regime. Nos primeiros dias, e pela primeira vez em muito tempo, a guerra não matou civis em vastas áreas da Síria – sexta-feira, já houve bombardeamentos em duas localidades controladas pelos rebeldes (uma na província de Idlib, a outra na de Alepo) e morreram duas crianças e um homem perto de Idlib.
Durante a tarde de sábado, os russos denunciaram mais “de 55 casos de disparos contra posições do Governo, da sua milícia popular e de civis” nas 24 horas anteriores. Segundo o chefe do centro russo de coordenação na Síria, Vladimir Savtchenko, os rebeldes são responsáveis por ataques que fizeram “doze mortos, incluindo duas crianças, e mais de 40 feridos”.
“Queria que fossemos mais honestos uns com os outros. Não percebo por que é que temos de esconder” o texto, lamentou Putin, em declarações durante uma visita ao Quirguistão. O Presidente russo vai mais longe, garantindo que “as forças sírias respeitam completamente este acordo” e que “a Rússia cumpre todas as suas obrigações”. Já os rebeldes, “tentam reagrupar-se” e os EUA recusam tornar públicos mais pormenores “porque assim o mundo saberia que são eles [os rebeldes] que não o respeitam”.
A verdade é que, ao contrário de quase todos os jornalistas e da maioria dos activistas, Putin tem, de facto, olhos no terreno. Há militares russos na estrada Castelo, por onde deveria estar a ser transportada a ajuda urgente para os 250 mil civis encurralados nos bairros de Alepo que escapam ao controlo de Assad. Os civis desesperam e a ONU, que tem há seis dias 40 camiões bloqueados junto à fronteira, do lado sírio, também. “Enquanto humanitários, isto é muito frustrante. Estamos aqui, estamos prontos a avançar… O mundo está a assistir”, desabafou David Swanson, porta-voz do OCHA, o gabinete da ONU para os Assuntos Humanitários, em declarações à Al-Jazira.
O problema das acusações de Putin – independentemente da sua veracidade – é virem acompanhadas da garantia de respeito absoluto do acordo por parte do regime. Quem bombardeou, então, a vila na província de Idlib e a localidade na região de Alepo?
Sete dias ou anos
Evitando responder directamente às acusações russas, os EUA avisam que “não porão a funcionar um centro de coordenação militar” com os russos se a ajuda não chegar a quem dela precisa. O acordo prevê que russos e americanos passem a atacar em conjunto os combatentes fundamentalistas do Daesh e da Nusra. Mas isso tem de ser precedido de “sete dias consecutivos de redução do nível de violência e de acesso ininterrupto da ajuda humanitária”, afirmou Obama, citado pela Casa Branca, numa reunião da sua equipa de Segurança Nacional.
Para os críticos do texto no interior da Administração Obama, a Rússia está a usar estas discussões para alimentar dúvidas entre os aliados dos EUA e dar tempo a Assad para reforçar posições. Um comandante rebelde ouvido pela Reuters explica que a oposição só aceitou o acordo por causa da urgência humanitária e acusa os russos de minarem uma trégua "que não vai aguentar-se”.
Nem os EUA nem a Rússia deitam a toalha ao chão e, para já, a trégua está em vigor até ao final do dia de segunda-feira. Nenhum sírio acredita que a paz não vá tardar anos, mas depois de tantas tragédias, mais de 400 mil mortos e 4,8 milhões de refugiados, gostariam que as armas continuassem calmas. O mundo, esse, continua a assistir. Segunda-feira arranca em Nova Iorque a Assembleia-Geral da ONU (com uma conferência sobre refugiados) e será impossível fugir à discussão sobre a guerra – há um ano, Síria e refugiados dominavam a agenda.