Kusturica: “Fazer filmes é como construir pirâmides”
Fazer filmes é difícil, diz Kusturica, e arriscamo-nos a perder o realizador para as framboesas. Mas esperando que isso não aconteça, vemos como o cinema era há muito, muito tempo: On the Milky Road, história de amor com Monica Bellucci. Conversa com o realizador-actor e a actriz em Veneza.
Fala-se no seu comeback – On the Milky Road, primeira longa-metragem em nove anos, estrategicamente colocada no final da competição do 73.º Festival de Veneza para sairmos daqui enganados pelo seu sabor –, mas Emir Kusturica diz que, tendo vários projectos, não sabe quando os fará e se os fará. A não ser... “O meu principal projecto é uma plantação de framboesas e maçãs, começarei a fazer produção biológica...”
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Fala-se no seu comeback – On the Milky Road, primeira longa-metragem em nove anos, estrategicamente colocada no final da competição do 73.º Festival de Veneza para sairmos daqui enganados pelo seu sabor –, mas Emir Kusturica diz que, tendo vários projectos, não sabe quando os fará e se os fará. A não ser... “O meu principal projecto é uma plantação de framboesas e maçãs, começarei a fazer produção biológica...”
“É muito difícil fazer filmes. Sou um cineasta cuja mise-en-scène é desencadeada pelo espaço, é difícil. Fazer filmes é como construir pirâmides, se levamos o cinema a sério." No seu caso também podia ser como destruí-las. Não se trata só de criar um cenário, animá-lo antes de escolher o cantinho que vai aparecer no filme, trata-se de construir um cenário e a seguir deitá-lo abaixo porque ele não funciona. Foram três anos de rodagem, 2013, 2014, 2015, várias fases de reshooting, de recomeço.
Lembras-te de Emir Kusturica? Sim, merece ganhar o Leão de Ouro
Primeiro por causa de um falcão que não havia, e o filme começou a ser desenvolvido com essa ausência nas primeiras semanas. Quando chegou o falcão, Kusturica quis partir do zero. “Depois houve 47 dias de chuva, há dois anos [na região onde filmaram, na Sérvia], e não aceito rodar sem sol. Mas o mais difícil foi ser alguém que observa e é observado”, isto é, que realiza e interpreta. Kusturica, em On the Milky Road, tem o papel principal, um leiteiro que se fechou em si mesmo no início da guerra dos Balcãs, que se esqueceu de quem tinha sido, até que encontra uma mulher de passado misterioso e sem indícios de futuro (sem nome, apenas A Noiva, e é Monica Bellucci). Ele, com o seu amigo falcão, avista uma igual.
História de amor, o tonitruante carrossel de música e animais (os gansos continuam a ser predilectos) vai amainando, os amantes que fogem à guerra aprendem a respirar debaixo de água – todo um maravilhoso aquático que, assegura Kusturica, não teve toque de efeitos especiais, “é tudo real” – e começa a ouvir-se o vento na lindíssima hora final do filme. Que é um comeback porque procura novo tom para uma melodia já conhecida, como se quisesse efectivamente recomeçar (esse projecto das framboesas e maçãs é inquietante, ameaça o horizonte que o filme abre; houve já quem se dedicasse ao vinho e o cinema perdeu com isso).
O mundo obsessivo do cinema
“Sou cada vez mais fã de Chaplin e de todos os tipos que realizavam e interpretavam nos seus filmes. Como é que eles faziam, transcendendo-se de cada vez?” Ele consegue. “Quando trabalha há prazer e há sofrimento”, conta Monica Bellucci. “É a sua maneira de fazer filmes. Entrar na água fria, depois sair da água em direcção à câmara de filmar, depois regressar de novo à água fria, depois voltar à câmara... e quando o dia chega ao fim, ele diz: ‘Vemo-nos amanhã, vou dar agora um concerto.’”
As pirâmides... ou como Kusturica coloca de outra maneira, o “obsessive world of cinema”. “Os filmes são feitos com uma imagem obsessiva do mundo na nossa cabeça e no set. Na montagem, apenas podemos melhorar isso. O decisivo é a imagem obsessiva do mundo que temos na rodagem. O segredo é evitar o artificialismo, como combinar a força do plano com a elegância da expressão. Renoir, Truffaut, Tarkovsky poderiam dizer algo sobre isso. Não é por acaso que os filmes finais dos grandes mestres são algo distanciados da vida, mesmo que esteticamente bem-feitos.” Várias vezes nesta conversa com um grupo de jornalistas em Veneza, Kusturica, 62 anos, natural de Sarajevo, fala do cinema, tal como o pratica, como arte antiga e em vias de desaparecimento. Uma das coisas imponentes e solitárias de On the Milky Road é lembrar-nos de como já foi.
“Há um método americano em que se cobre a cena filmando através de cinco ângulos diferentes para depois escolher na sala de montagem. Oponho-me a isso. Cada ingrediente que se mistura no set, seja um plano curto ou um plano sequência, tem de ser filmado sabendo em que lugar o vamos colocar na arquitectura final. Montamos o filme enquanto o filmamos. E o dia é organizado de véspera. Quando chegamos de manhã ao set, tentamos concretizar com os actores o que pensámos na noite anterior, e a realidade do set dá-nos novas maneiras para concretizar o objectivo. E começamos a destruir tudo o que construímos antes. O script é blá-blá-blá, é para ser destruído. Depois chega o produtor, que tenta, por sua vez, impedir que façamos o que queremos. Temos de ser fortes a manter a nossa visão. Este filme foi um risco, poderia perder tudo, a minha vida e a vida dos outros. Com cada filme levamos toda uma equipa ao limite. Gasta-se muita energia de muita gente, pede-se muito. Fiz dez filmes, com grandes equipas, muito poucos me abandonaram antes do fim, porque sentiam que eu também me estava a gastar, com sinceridade e em nome de uma visão. Quando assim é, as pessoas seguem-nos.”
É aquilo a que Monica Bellucci chama a “autoridade natural” do realizador de O Tempo dos Ciganos (a “obra-prima” dele para ela.) “As pessoas seguem-no como a um comandante. Nada a fazer. Tem aura. A cada cinco minutos aparecem-lhe ideias. Depois de eu estar três dias a memorizar uma cena, ele chegava com alterações, mais três frases de diálogos, minutos antes de filmar. A cabeça dele é rápida e temos de estar preparados para mudar tudo. ‘Mas Emir...?’ ‘Não, não, vais ali para um canto, consegues fazer isso.’ No meio disso, há uma parte dele que é uma criança. Ele vem de uma terra de beleza. Uma terra de violência, é claro, mas querendo acreditar que a beleza existe. É o seu lado de criança.”
O prato de pasta e o ginásio
Monica mergulhou na Sérvia durante três anos. On the Milky Road, como anuncia o genérico, é baseado “em três histórias reais e muita imaginação” – tendo Kusturica construído o filme a partir do que imaginou do passado da personagem que estava numa curta, o seu segmento Our Life para o filme colectivo Words with Gods (2014). “Deparamo-nos com histórias horríveis, tantas que é muito difícil, quando se é de fora, ter algum julgamento”, continua Monica. “Há tantas culturas que ali se sobrepõem, não podemos ter um julgamento, podemos apenas constatar a energia que por lá existe e que como actriz absorvi. Ali, as pessoas, para sobreviverem, precisam de outro nível de realidade. É a esta loucura e sofrimento que chega a minha personagem, A Noiva. No meio da guerra. Mas é uma líder, uma vencedora. É uma mulher difícil de encontrar. Há um mistério, não se sabe de onde vem. Sabemos que foi amante de um poderoso general que matou a mulher por causa dela, ela denunciou-o e quando ele sai da prisão quer apanhá-la viva ou morta. É uma história verdadeira.”
A acreditar em Kusturica, Monica mergulhou pela primeira vez por causa deste filme, atirou-se à água saltando de vinte metros de altura, foi desafiada a improvisar uma canção. (E chorou com cara de chorar, e cantou, e “não fez apenas isto...” – e o realizador congela o rosto numa pose provocante). “Quanto temos um instrumento, devemos abrir todas as possibilidades quando o tocamos.”
Monica confirma que nunca se aborreceu. “Trabalhar com Emir é desafiador porque o script é apenas um ponto de partida, tudo se passa na rodagem. Na verdade, eu na vida prefiro um prato de pasta ao ginásio, mas com ele tive de esquecer isso. Não corri grandes riscos, mas o que se passa num filme é que somos encorajados a fazer aquilo que não fazemos normalmente na vida. Estamos para além da realidade. E com ele estamos sempre nessa dualidade de realidade e fantasia. Não nos enganemos: embora neste filme haja sempre muita coisa a passar-se, é uma experiência íntima. Há espaço para duas pessoas olharem uma para a outra. Não sou já uma mulher nova [51 anos], por isso o que me agrada é que é uma história de amor entre duas pessoas que já passaram por muito, que já viram muito, nada têm a perder, mas acontece algo de mágico.”
E não acontece sexo, orgulha-se Kusturica. Que desde o início da sua carreira se vê como director de um zoo: gansos, cobras, moscas, falcões, galinhas, um urso com que a sua personagem partilha uma refeição de laranjas. “Animais e natureza, eis a minha determinação. Somos animais sociais, e o instinto que trocamos com os animais é o elemento fundamental. A personagem que interpreto é um tipo perfeitamente relaxado em relação aos medos da natureza. O urso come da minha mão, essa cena é real. Não foi coragem da minha parte, é apenas entender alguma coisa. Se lhes damos de comer, eles tornam-se nossos.”
Conhece este urso há cinco anos, era um bebé, rolavam juntos, hoje é um volume de centenas de quilos que come da sua mão. “A equipa estava assustada... mas há truques: quando se encontra um urso no bosque, temos de gritar. Ele aceita a autoridade de quem grita. Não se deve correr. Eles são mais rápidos. Gritem, alto, dêem-lhe uma lição. Quanto às mulheres, não sei.”
Veja aqui todos os textos sobre a 73.ª edição do Festival de Cinema de Veneza