"Oh it’s such a perfect day…" com Wim Wenders e Peter Handke
Wim Wenders regressou a Veneza e ao 3D com Les Beaux Jours de Aranjuez, e a voz de Lou Reed. Foi um pedaço perfeito do dia.
O convite à ironia era irresistível, e foi exercitado aqui e ali antes da sessão enquanto os óculos eram entregues aos jornalistas e críticos: 3D para se ouvir debitar um texto? Les Beaux Jours de Aranjuez, de Wim Wenders. Filmar uma peça de Peter Handke.
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O convite à ironia era irresistível, e foi exercitado aqui e ali antes da sessão enquanto os óculos eram entregues aos jornalistas e críticos: 3D para se ouvir debitar um texto? Les Beaux Jours de Aranjuez, de Wim Wenders. Filmar uma peça de Peter Handke.
O reencontro entre o cineasta alemão e o autor austríaco quase três décadas depois de As Asas do Desejo, e mais de quatro décadas depois de A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty, podia trazer saudades do passado mas não exercitava curiosidade, nestes inícios da competição de Veneza, em relação ao presente do cineasta. Até porque o património tem sido mal tratado pelo próprio.
Mas Lou Reed começou a cantar Perfect Day: "Oh, it's such a perfect day/ I'm glad I spent it with you/ Oh, such a perfect day/ You just keep me hanging on/ You just keep me hanging on". Foi logo no início, e as resistências não iriam aguentar-se.
Um homem e uma mulher (os actores Reda Kateb e Sophie Semin), um jogo de diálogos que é lançado, problemas levantados no paraíso, amor, sexo, eles contra elas e vice-versa, desafio, ajuste de contas, o último antes de um fim?
Isto é um lugar, uma colina com Paris ao fundo, zona da Île de France, casa que na realidade pertenceu a Sarah Bernhardt. É ai que o mundo acontece num Verão – até porque há ali uma maçã (a simbologia não se torna pesada). É aí que Nick Cave há-de cantar ao piano Into my Arms. E há 3D.
Das vezes que Wenders utilizou a técnica, em Pina (2011) e em Everything Will Be Fine (2015), esta é a única que não a confina a adereço inútil e novo-rico. Pelo contrário: instrumento delicado, imponderável e caprichoso, participa num acontecimento de vento e de palavras. Pode dizer-se, e as ironias vão à vida, que as propriedades tridimensionais do texto de Handke são potenciadas pela experiência como a luz de Verão sobre as formas. Wenders persegue há anos um lugar que, na profusão de imagens e de sons, seja a reserva moral do cinema. O lugar onde ele pode resistir, existindo a contar histórias. Falou sobre isso com os filmes, filmou essa demanda, falhou muitas vezes esse lugar. Em Les Beaux Jours de Aranjuez não fala, apesar de ser um filme falado. Experimenta o lugar, faz-nos entrar nele: espectáculo vibrantemente sensual.
Na conferência de imprensa, o produtor do filme, Paulo Branco, lançava uma hipótese que pode ajudar a configurar a experiência que é o novo filme de Wim Wenders: dizia ele que todos os grandes cineastas se confrontam um dia com o texto teatral, porque isso está no princípio de tudo. E não é coincidência que nestes primeiros dias de festival só houve outro momento assim de assombro perante as coisas que começam: quando, na terça-feira, se comemoraram as primeiras projecções em Veneza do Cinematógrafo Lumière, há 120 anos, e se mostraram, dessas sessões, os filmes que os operadores registaram na própria cidade.
Deste conto de Verão de Wenders que reaviva sensações que ficaram perdidas no nosso tempo de espectadores, para o cinema como ritual de experiências já vistas mil vezes: The Light Between Oceans, de Derek Cianfrance, em que o casal do momento, Michael Fassbender e Alicia Vikander, está isolado numa ilha, e Arrival, de Dennis Villeneuve, em que Amy Adams, linguista, é contratada pelo governo americano para ajudar no contacto com uma “embaixada” de extraterrestres que querem comunicar connosco – antes da chamada telefónica crucial, a personagem de Amy, professora, preparava-se para explicar aos alunos a origem da língua portuguesa.
A redundância não chega a ser insultuosa, mas deixa sensação de desperdício. Um e outro filme falham a conquista de um lugar único que os individualize e de onde podem contar o mundo.
The Light Between Oceans, por exemplo, não “reformula” o melodrama, vai antes gastando hipóteses de o fazer, como se a cada desafio se contentasse com a banalização. Cianfrance tinha em mãos, é verdade, material que não era de sobremaneira excitante, a história do amor, e sua desagregação (o lado negro de um casal, como em Blue Valentine, 2010), entre Fassbender e Vikander: vivem isolados num farol, na costa australiana, criando uma criança que salvaram de um naufrágio, possibilidade de estabilização para Vikander, fragilizada pela dificuldade de ter filhos; a criança encontrada é o segredo que a une ainda mais a Fassbender, personagem também lúgubre, marcada pelo que viu na I Guerra; até que aparece a mãe biológica da menina, assombrada há anos pelo desaparecimento... (Rachel Weisz, que nunca deixa de ser “a outra”).
Há em The Light Between Oceans muito de atrapalhação de Derek Cianfrance. Já Dennis Villeneuve poderá ser acusado de pretensão, sobrepondo o pior de Terrence Malick ao melhor de Steven Spielberg, os Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977) obviamente. É uma pretensão sisuda, como a personagem de Amy Adams, assombrada pela morte da filha, mas não se aguenta: rapidamente se trai com epifanias de trazer por casa.
Mas foi um pedaço perfeito do dia, ainda bem que o passámos com Wim Wenders…