Despedida por chamar alheira e porcão a dirigentes da Ordem dos Advogados

Funcionária nega tudo e queixa-se de perseguição. Julgamento marcado para menos de um mês antes da eleição do novo bastonário, num caso que envolve facções de advogados há muito em guerra.

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A eleição de Elina Fraga como bastonária em 2014 não agradou a todos os advogados Enric Vives-Rubio (arquivo)

A Ordem dos Advogados vai sentar-se no banco dos réus num caso de despedimento de uma funcionária que envolve facções há muito em guerra nesta organização profissional. O início do julgamento para decidir se havia ou não fundamentos para mandar embora Ana Vieira da Silva está marcado para três semanas antes das eleições para a Ordem — o que promete apimentar a disputa em que será escolhido o próximo bastonário, até porque Elina Fraga se candidata outra vez ao cargo que exerceu nos últimos três anos.

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A Ordem dos Advogados vai sentar-se no banco dos réus num caso de despedimento de uma funcionária que envolve facções há muito em guerra nesta organização profissional. O início do julgamento para decidir se havia ou não fundamentos para mandar embora Ana Vieira da Silva está marcado para três semanas antes das eleições para a Ordem — o que promete apimentar a disputa em que será escolhido o próximo bastonário, até porque Elina Fraga se candidata outra vez ao cargo que exerceu nos últimos três anos.

Também advogada de profissão, Ana Vieira da Silva trabalhava há 12 anos na Ordem e era coordenadora de uma secção sensível da instituição, o departamento de processos disciplinares, quando foi alvo de queixas por parte de um subordinado. E se houve outros funcionários a corroborá-lo, outros houve também a negá-lo: além de os intimidar constantemente, diziam alguns deles, a chefe “referia-se à Exma. Senhora Bastonária como alheira” — numa alusão à sua terra de origem, Mirandela. Mais: afiançaram tê-la ainda ouvido usar os epítetos de porcão, e até de porco no espeto, para aludir ao presidente do conselho superior da Ordem, Menezes Leitão. Um tratamento nunca dispensado antes nos corredores do Palácio Regaleira, um edifício setecentista atrás do Rossio que alberga a sede da organização, em Lisboa. Com um leitão e uma alheira, a Ordem já podia abrir uma fábrica de enchidos, é acusada ainda de ter dito perante os colegas.

Corria o ano de 2014 e Elina Fraga havia sido eleita, escassos meses antes, bastonária, numa disputa que deixara um sabor amargo a alguns até aí dirigentes da Ordem, derrotados por listas afectas à nova bastonária. Era o caso de Rodolfo Lavrador, patrono de Ana Vieira da Silva e um dos vice-presidentes do conselho superior no triénio anterior. Próxima de vários advogados derrotados nas eleições de 29 de Novembro de 2013, a coordenadora perdeu, pelo menos na cabeça de algumas pessoas, o estatuto de protegida que supostamente tinha até ali. Nesse próprio dia, queixa-se de a recém-eleita bastonária lhe ter dirigido uma enigmática frase: “Você está na lista”. Elina Fraga nega, tendo a advogada que representa a Ordem neste caso recordado que a ex-funcionária tem problemas de audição confirmados por médicos.

Menos de mês e meio depois, no dia da tomada de posse de Elina Fraga — cerimónia à qual faltaram os candidatos derrotados ao cargo e também os membros do conselho superior cessante —, ocorre outro episódio com contornos pouco claros. A imagem de uma mão com o dedo médio espetado em riste, à laia de insulto, dedicada à “bestanária”, surge no Facebook como sendo uma mensagem de Ana Vieira da Silva. Só que a funcionária garante não ter sido ela a sua autora, mas sim um colega, que se terá apoderado do seu telemóvel sem ela dar por isso. Quanto às alcunhas usadas para designar a bastonária, afirma tê-las ouvido apenas da boca dos colegas.

Um processo esquecido

A 14 de Fevereiro de 2014, Dia dos Namorados, Ana Vieira da Silva envolve-se numa acalorada discussão com o subordinado que havia de desencadear a queixa contra ela. Por esta altura, alega, já a nova bastonária lhe tinha comunicado que deixaria de reportar aos membros do conselho superior, como sempre sucedera até aí, sendo substituída nessas funções por um colega. A troca de palavras, a que assistem vários funcionários, torna-se feia. Há processos atirados de rompante para cima de secretárias, como armas de arremesso. No final, antes de rumar a uma farmácia por se estar a sentir mal, a coordenadora ainda lhe lança uma expressão que assegura ter ouvido o próprio funcionário usar amiúde: “Desemerde-se.”

A 14 de Fevereiro de 2014, Dia dos Namorados, Ana Vieira da Silva envolve-se numa acalorada discussão com o subordinado que havia de desencadear a queixa contra ela. A troca de palavras, a que assistem vários funcionários, torna-se feia. Há processos atirados de rompante para cima de secretárias, como armas de arremesso

Do processo disciplinar que lhe é levantado, e que redunda num despedimento de que é notificada no Natal, a 24 de Dezembro de 2014, constam mais imputações: que não cumpre o horário de trabalho, que chegou a desobedecer aos seus superiores hierárquicos. Também isto a visada diz ser falso. E contra-ataca, tentando juntar aos seis volumes e às mais de mil páginas do processo de que foi alvo, no âmbito do qual foram ouvidos vários colegas seus, aquilo que considera ser a verdadeira causa para a perseguição que assegura ter-lhe sido movida: um outro processo disciplinar levantado vários anos antes, mas a Elina Fraga.

O caso chegou a ser noticiado quando a advogada se candidatou a bastonária: uma cliente de Mirandela acusava-a de nunca lhe ter resolvido um caso de partilhas, apesar de lhe ter pago. Quando assumiu funções de chefia, em 2012, Ana Vieira da Silva deparara-se com uma situação caótica: processos contra advogados indevidamente arquivados antes de terem sido resolvidos e documentos à solta ou anexados a processos errados.

O processo desencadeado contra Elina Fraga, então vice-presidente do conselho geral da Ordem, também se encontrava aparentemente esquecido, com vários outros, dentro de umas caixas. E foi por ordens suas que voltou ao activo, tendo no seu âmbito Ana Vieira da Silva chegado a ouvir uma testemunha de acusação. Elina Fraga devolveu o dinheiro à cliente mas foi condenada pelos seus pares no Verão de 2013 a uma pena de censura, da qual recorreu mais tarde, e com sucesso, para os tribunais. Se a pena se tem tornado efectiva corria o risco de não se poder candidatar a bastonária.

A lista de testemunhas que a ex-funcionária vai levar ao Tribunal do Trabalho de Lisboa para deporem a seu favor inclui adversários de Elina Fraga. O próprio advogado que a representa no processo de despedimento, Jerónimo Martins, vai uma vez mais disputar o cargo de bastonário, nas eleições de Novembro próximo.     

“Não tenho nada contra a senhora”

“Como posso eu ter perseguido esta funcionária se ela não me fez nada?”, interroga a bastonária Elina Fraga, reagindo às acusações de Ana Vieira da Silva. “Não tenho rigorosamente nada contra ela, a não ser o facto de ter violado os seus deveres enquanto trabalhadora”, insiste, explicando que os factos apurados pela Ordem no processo disciplinar de que foi alvo quando ainda não era bastonária, e que lhe valeram uma pena de censura posteriormente anulada pelo tribunal administrativo, o foram pelos membros eleitos desta instituição — e não pela funcionária, que se terá limitado a fazer tramitar o processo. “Mas os funcionários não podem usar o vocabulário que ela usava para se referirem aos seus superiores hierárquicos”, assinala.

No que diz respeito ao facto de a coordenadora do departamento de processos se queixar de ter recebido instruções suas, assim que tomou posse como bastonária, para deixar de reportar aos membros do conselho superior, a representante máxima dos advogados explica-o com uma reestruturação dos serviços que foi necessário fazer. “Ela continuou a ter as funções que tinha até aí”, sublinha, recordando ainda que foi um subordinado de Ana Vieira da Silva, e não qualquer dirigente da Ordem, quem apresentou a queixa que veio a desencadear o despedimento.