Por que me tiram as minhas filhas? “Porque sim”

Ana Vilma contesta a decisão judicial de entrega das filhas ao pai condenado por violência doméstica e cuja família alega que a mãe é "negligente". Procuradora e técnicas da Segurança Social do caso estão a ser investigadas. A crónica de um processo.

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Ana Vilma, de 34 anos, não se conforma com a decisão e decidiu tornar o seu caso público Daniel Rocha

O filme dos acontecimentos que levaram à retirada das filhas a uma mãe, vítima de violência doméstica, e à sua entrega ao pai condenado por esse crime é totalmente distinto quando é contado pela progenitora, Ana Vilma, e o seu advogado, ou pelos familiares do pai.

Algumas peças dos processos consultados pelo PÚBLICO não esclarecem tudo. Muito do que está para trás da retirada das crianças, a 7 de Dezembro de 2015, não está documentado. E parte do que está documentado aponta falhas nas capacidades da mãe, mas é liminarmente contestado pela própria como resultando de um entendimento “subjectivo e deturpado” das técnicas da Segurança Social, que mais tarde Ana Vilma veio a acusar de “falsas declarações, favorecimento pessoal [do pai das crianças], abuso de poder e colocação das crianças em risco”.

Um processo de inquérito decorre por decisão do Conselho Directivo do Instituto da Segurança Social (ISS) para “esclarecer todo o processo” de tomada de decisões, não podendo ser adiantada por agora nenhuma informação, segundo fonte do ISS. O inquérito está “numa fase absolutamente sigilosa”.

O caso motivou também queixas-crime contra as mesmas profissionais da Segurança Social que assinaram relatórios de acompanhamento dos processos de promoção e protecção e de regulação das responsabilidades parentais e que, em Dezembro, assumiram a decisão de retirar as crianças à mãe, através de um procedimento judicial de urgência.

Ana Vilma, de 34 anos, diz que os relatórios “intencionalmente” omitem a acusação do ex-companheiro por violência doméstica, crime pelo qual viria a ser condenado em Março de 2016. E quer que estas profissionais, entretanto afastadas deste processo, sejam responsabilizadas disciplinarmente (pelo ISS) e criminalmente (nos tribunais) por retirada “indevida” das crianças.

O advogado de Ana Vilma, Gameiro Fernandes, também interpôs procedimentos disciplinares e criminais contra a procuradora e a juíza do Tribunal de Cascais que aprovaram a retirada das crianças (proposta pelas técnicas) e que, em Junho, prolongaram a medida de guarda provisória das mais pequenas ao pai, já depois da condenação deste ano. O Conselho Superior da Magistratura iniciou um processo de averiguações da juíza, mas concluiu que não existia matéria para abrir um inquérito disciplinar. O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), por sua vez, considerou "justificar-se" a abertura de um inquérito à procuradora, para esclarecer se se trata de um caso com "um contorno disciplinar". O facto de o pai ter sido condenado levantou dúvidas no conselho.

A situação do pai condenado diz respeito a duas crianças que hoje têm dois e quatro anos e que têm outra irmã, de seis anos, fruto de um relacionamento anterior de Ana Vilma. Além das meninas, a mãe tem outro filho de 12 anos, de outra relação, a viver com o pai, que não esteve exposto a esta situação.

"Desligada e negligente"

Ana Vilma vivia com o companheiro e as três filhas. Ele nega as agressões físicas e verbais que a terão levado a fugir de casa em Novembro de 2014 e queixa-se que, depois disso, nada soube das suas duas filhas durante meses. Essa situação tê-lo-á afectado psicologicamente, explica a família. Numa conferência de pais em Abril, ficou determinado, na presença das técnicas, um regime de visitas assistidas que só viriam a começar em Outubro, por atrasos administrativos e decorrentes das interrupções de Verão.

Durante esse tempo, o pai tentou ver as crianças e Ana Vilma dizia só aceitar as visitas assistidas depois do Verão ou o regime que, mais tarde, viesse a ser determinado pelo tribunal. A família do pai das duas meninas entende esta posição como “alienação parental”. Também aponta os casos dos dois filhos mais velhos de Ana Vilma para descrevê-la como uma mãe "desligada e negligente".

O filho mais velho de Ana Vilma teria escolhido viver com o pai, dizem, por não se entender com a mãe, que o maltrataria, e a filha de seis anos (da outra anterior relação) seria negligenciada, tendo a mãe mostrado ambivalência no momento de assumir a maternidade, ora dizendo que era mãe da criança, ora que a criança era adoptada, deixando-a frequentemente em casa de uma tia-avó. Esta é a versão dos familiares do pai e o ponto de partida para a tese por eles defendida de que faltam condições psicológicas a Ana Vilma para cuidar dos filhos.

“Não foi afastamento. Foi protecção”, defende-se a mesma relativamente à entrega do rapaz de 12 anos ao pai e ao facto de muitas vezes deixar a filha de seis anos em casa da tia paterna. Era tudo, segundo ela, para que não estivessem “sujeitos ao mau ambiente e agressões” na casa dos pais do ex-companheiro.

Injúrias relatadas pela polícia

Algumas ocorrências ficaram registadas na polícia, sendo descritas nos autos como situações em que a mãe era injuriada, em frente às filhas, e sujeita a ofensas verbais que a denegriam como mulher pouco séria que ia “com vários homens”. O episódio mais grave terá ocorrido a 13 de Julho de 2015, no mesmo mês em que foi deduzida acusação por violência doméstica contra o pai das duas meninas, e é descrito pela própria polícia.

Em retrospectiva, Ana Vilma diz agora que, para proteger todos da mesma forma, deveria ter saído mais cedo de casa do ex-companheiro, de quem temia as reacções, e que por isso lhe omitiu a informação de que estava grávida da mais pequena, até aos seis meses, quando a relação já se deteriorara em 2013. Do lado do pai, a ideia de que Ana Vilma “escondeu a gravidez” da filha que agora tem dois anos serve apenas para realçar a convicção de que não é uma boa mãe e que, ao não ter sido acompanhada durante os primeiros meses da gravidez, criou uma situação de risco para a bebé.

As visitas com o pai começam em Outubro de 2015 e, de acordo com a observação das técnicas da Segurança Social, nesses momentos é notória a forte ligação afectiva com o progenitor, descrito como “adequado na interacção” com as menores e demonstrando “competência” face “às solicitações das filhas”.

Num relatório com data de 12 de Novembro, é recomendado o alargamento das visitas com o pai e sugerida a primeira pernoita em casa dele para 7 de Dezembro. No caso de esta “adaptação” decorrer de forma positiva, é sugerido que passem a ficar uma noite por semana em casa do pai, na perspectiva, dizem, de “viabilizar a definição de um período de férias”, uma “regulação das responsabilidades parentais” e, porventura, “a definição de uma residência alternada”.

Esse relatório é feito com base em entrevistas com a mãe e o pai, uma visita à casa onde as crianças viviam com a mãe, contactos com as escolas e a ama (frequentadas pelas filhas), o centro de saúde onde estão inscritas, e através da análise dos processos relativos aos dois filhos que Ana Vilma tinha de anteriores relações, bem como de conversas informais com elementos da família alargada e da observação do convívio do pai com as duas filhas, uma vez por semana, com supervisão das técnicas.

Relativamente ao relacionamento com a mãe pouco é dito, sendo referido que a criança mais pequena, de dois anos, “deixou de perguntar” por ela, “revelando cada vez menos ansiedade no momento do reencontro com a figura materna”. Pouco ou nada de positivo é mencionado.

Ainda no mês de Novembro, dá entrada o primeiro de uma longa lista de requerimentos de contestação por parte do advogado de Ana Vilma, que considera desequilibrada a apreciação das técnicas. Nessa contestação em particular, é qualificada de “demasiado precipitada” a transição para um regime de alargamento de contacto com o pai e pernoitas semanais, atendendo “à tenra idade das crianças” (então com um e três anos), e reiterado que esse plano não é aceite pela mãe.

Na contestação, Ana Vilma questiona a idoneidade da técnica superior — a mesma que, juntamente com uma colega da Equipa de Crianças e Jovens (ECJ), desencadeia no dia 7 de Dezembro de 2015 um procedimento judicial urgente para a retirada imediata e sem consentimento das crianças, previsto na lei de protecção, através do seu artigo 91º, para situações em que “exista perigo actual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem”. Para a mãe das crianças, a retirada resulta de uma atitude de "vingança" das técnicas por ter sido contestada a forma como conduziam o processo.

Recurso à força se necessário

A retirada imediata é nesse 7 de Dezembro, dia em que teria ficado estabelecido que o pai poderia ter as filhas, pela primeira vez, a dormir em sua casa, num plano que Ana Vilma diz ser “unilateral”. As técnicas solicitam ao tribunal mandados de entrega das três crianças aos respectivos pais e relativamente à mais pequena, por não estar na escola, esse mandado é acompanhado da “possibilidade de entrada em qualquer residência onde a criança venha a ser localizada e com recurso ao arrombamento se necessário”. A juíza do Tribunal de Família de Cascais aprova os mandados com possibilidade de recurso "à força" pelas “autoridades policiais”.

No procedimento urgente, as técnicas alegam que a retirada das crianças nesse mesmo dia se justifica “em face do alegado perigo de subtracção de menores e perante as verbalizações da mãe na escola de que iria desaparecer com as crianças”, palavras que a mãe nega ter proferido. De acordo com o seu relato, disse que nunca mais voltaria a acontecer o que aconteceu nesse dia. Porém, o que aconteceu nesse dia é relatado de forma muito diferente pelas duas partes em disputa.

Ana Vilma diz que deixou a criança de um ano com uma senhora sua amiga no café quando o seu sistema de protecção a alertou de que o ex-companheiro, com pulseira electrónica, estava perto dela e da escola para ir buscar as meninas sem o seu consentimento. Nessa altura, as visitas eram supervisionadas pelas técnicas, mas estas não estavam presentes. Ana Vilma saiu do café, prevendo um conflito, e deixando por isso a bebé com essa senhora que depois a terá levado para sua casa. A família paterna fala em abandono, num dia em que já estaria previsto que o pai iria buscar as crianças à escola, de acordo com o plano delineado pela ECJ e que Ana Vilma diz ter recusado.

Fechada numa sala com as técnicas que lhe anunciam a retirada das crianças, Ana Vilma rebate argumentos, diz que é impossível tirarem-lhe as filhas, que não há motivos para tal e, quando elas insistem, implora-lhes que não o façam. A troca de palavras está registada nesta conversa que Ana Vilma grava no seu telemóvel. “A Ana ameaçou que ia desaparecer com as meninas”; “Não ameacei. Como é que eu desapareço se tenho processos em tribunal? O que eu disse foi que a visita, assim, não ia voltar a acontecer; […] Vocês não me podem fazer isto”; “As meninas não vão desaparecer”, dizem as técnicas. “Vamos fazer um procedimento judicial urgente. A mais velha vai hoje com o pai.”

Breves minutos depois, anunciam que as duas mais pequenas vão também elas ficar com o pai. “Mas porquê?”, pergunta a mãe. “Consideramos, neste momento, que as meninas não estão bem consigo.” Nova pergunta: “Mas porquê? As crianças estão em perigo? Porquê?” Resposta: “Porque sim. Não têm tido acesso ao pai.” Diz Ana Vilma: “Porque o pai é um agressor de violência doméstica. Eu não tinha como as entregar ao pai. Ele tinha uma pulseira electrónica.” Respondem as técnicas: “É uma medida cautelar, ainda não foi condenado.”

A medida cautelar tinha sido aprovada depois de dar entrada em Janeiro desse ano nos tribunais uma queixa de Ana Vilma e um pedido de aplicação de medida de afastamento, com pulseira electrónica e teleassistência, nos seguintes termos: “O agressor continua a perseguir-me e a ameaçar-me no meu local de trabalho. Os pais do agressor também me perseguem e ameaçam, o mesmo acontece com a irmã do agressor. Temo pela minha segurança e vida.”

O tribunal considera a medida de afastamento “inteiramente ajustada, necessária, proporcional e adequada, depois de chegar à conclusão que existe perigo de continuação da actividade criminosa a justificar a medida de coacção”.

Com as referidas ameaças e perseguições, Ana Vilma justifica a necessidade de afastar as filhas. Para a família do pai, esse afastamento reflecte-se num impedimento injustificado de estarem com as crianças, o que os revolta. Para o julgamento por violência doméstica do pai das crianças mais pequenas, os seus familiares contactam os progenitores dos dois outros filhos de Ana Vilma e ambos testemunham contra ela, descrevendo-a como uma pessoa "pouco coerente e conflituosa", atribuindo-lhe a responsabilidade das discussões conjugais.

No seu depoimento, o arguido nega as agressões de que é acusado, apenas admitindo uma, a última, dizendo que empurrou com o braço a ex-companheira porque esta o mordeu, em plena discussão dentro do carro, onde seguiam também as duas filhas mais pequenas; e insiste que esse seu empurrão não pode ter causado as consequências descritas no relatório médico do Hospital São Francisco Xavier — um dos três apresentados pela acusação, com fotos e descrições pormenorizadas das lesões e traumatismos causados.

Queixas mútuas de violência

Também ele interpusera queixas contra Ana Vilma — por crime de violência doméstica e por crime de subtracção de menores —, mas que são arquivadas em Abril de 2016 pelo Departamento de Investigação e Acção Penal. Ouviram-se testemunhas (essencialmente, elementos da família paterna) e não foi possível recolher indícios suficientes e elementos probatórios, concluiu na altura o Ministério Público.

Um mês antes, em Março, o pai fora condenado a uma pena suspensa de dois anos e dez meses, agravada por se considerar que as agressões à mãe se deram na presença das filhas. Na sentença consultada pelo PÚBLICO, o juiz conclui que o arguido negou os factos, mas que os mesmos encontram-se suportados nas declarações da vítima, as quais são corroboradas quer pelo relatório médico, quer pelo auto de exame directo, quer pelas fotografias (das lesões e hematomas), quer pelas testemunhas.

E sustenta: “Os factos relatados assumem alguma gravidade na exacta medida em que os episódios de violência redundaram sempre na necessidade de tratamento hospitalar, sofrendo a vítima em várias partes do corpo, sendo a última situação presenciada pelas filhas, uma com pouco mais de dois anos e outra com meses de idade.”

A mesma decisão considera suficientes os indícios de que “o suspeito agrediu várias vezes a vítima” e que, “tendo a vítima resolvido terminar o relacionamento, o suspeito começou, frequentemente, a persegui-la no seu local de trabalho”, quando Ana Vilma trabalhava num jardim-de-infância em Algés. Na mesma sentença, o pai das crianças é descrito como tendo "forte vinculação às filhas" mas como uma pessoa que, em alturas de frustração, “evidencia baixo autocontrolo e dificuldades ao nível da contenção dos impulsos”, mostrando-se incapaz de prever as consequências dos seus actos.

Já depois da leitura da sentença, em Junho, a juíza do processo de promoção e protecção das três crianças determina que o pai condenado continue com a guarda provisória das mais novas e que a mais velha continue em casa do respectivo pai, no Norte do país. Ana Vilma vê as mais pequeninas duas vezes por semana, durante uma hora e meia.

Nessas visitas, a menina de quatro anos terá dito que pediu ao pai “para não fazer mais mal” à mãe e ter-lhe-á perguntado por que razão não voltava ela para casa. A informação consta de uma das entrevistas feitas a Ana Vilma no âmbito da avaliação da Segurança Social, já em 2016, num relatório onde já é feita uma apreciação positiva das capacidades parentais da mãe, bem como do seu contacto com as filhas.

A Associação Passo a Passo, que supervisiona as visitas e elabora o relatório, escreve que as filhas “mostram-se à vontade na presença da mãe, são espontâneas e alegres”. E descreve a menina de quatro anos como revelando "alguma resistência na despedida (chora, pede para brincar mais…)" e a mãe como "reagindo com calma".  "A mãe acalma a criança e esta sai do espaço tranquilamente”, refere o relatório, que se refere a Ana Vilma como “uma mãe adequada e que responde assertivamente às várias solicitações das crianças”.

A família do pai, por sua vez, desmente as alegações e insurge-se contra a atitude de Ana Vilma, que torna o seu caso público através de entrevistas e inicia duas greves de fome, a última das quais durante duas semanas em Junho, em protesto contra a retirada das filhas. Dizem que se mantêm em silêncio para proteger as crianças, mas que também eles teriam muito para denunciar. O ex-companheiro não quer expor, para já, a sua posição, dar o nome ou ser fotografado, e ficará em silêncio até estar concluído o processo de promoção e protecção e de posteriormente ficar definida a regulação das responsabilidades parentais.