"Milhares vão começar a morrer" em Alepo se situação humanitária não se alterar

Ataques da aviação russa estarão a atingir infra-estruturas civis. Agências avisam que o stock de alimentos está a acabar na zona da cidade cercada pelo regime.

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Um ataque a um bairro de Alepo controlado por rebeldes, a 19 de Julho THAER MOHAMMED/AFP

Quatro hospitais de campanha e um banco de sangue foram alvo dos intensos bombardeamentos aéreos que têm fustigado Alepo, no Norte da Síria. Os mais de 200 mil habitantes dos bairros que estão cercados pelo regime enfrentam uma grave crise humanitária. Dentro de dois ou três meses milhares de pessoas começarão a morrer se a situação não se alterar, alerta um responsável civil da cidade.

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Quatro hospitais de campanha e um banco de sangue foram alvo dos intensos bombardeamentos aéreos que têm fustigado Alepo, no Norte da Síria. Os mais de 200 mil habitantes dos bairros que estão cercados pelo regime enfrentam uma grave crise humanitária. Dentro de dois ou três meses milhares de pessoas começarão a morrer se a situação não se alterar, alerta um responsável civil da cidade.

Durante a noite de sábado para domingo, um recém-nascido morreu num dos hospitais do Leste da cidade, depois de um ataque aéreo ter resultado no corte de energia e do abastecimento de oxigénio, indicou à AFP a Associação de Médicos Independentes (IDA) que apoia os centros médicos de Alepo. “O hospital foi seriamente atingido e não foi a primeira vez” que isso aconteceu, comentou a enfermeira chefe da pediatria, Malika. Os três outros centros atacados, todos no bairro de al-Chaar, ficaram também fora de serviço no domingo.

Os bairros daquela zona estão sob o controlo dos rebeldes e por isso totalmente bloqueados pelas forças do regime de Bashar al-Assad, que desde 17 de Julho tem lançado bombardeamentos aéreos intensos, com ajuda dos seus aliados russos, tentando tomar o controlo total da segunda cidade síria.

Nos últimos meses, vários hospitais ficaram danificados e muitos funcionários morreram na sequência dos ataques. A Síria é neste momento o país mais perigoso do mundo para quem presta cuidados médicos, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

“Enfrentamos um grande desastre humanitário com a suspensão da ajuda médica”, alerta a IDA num comunicado. “O cerco e a destruição dos cuidados de saúde constituem crimes de guerra”, adianta a IDA, que exige “o fim imediato da punição colectiva que está a ser infligida à cidade”.

Para além disso, com as zonas cercadas pelo Exército (que para além de combater o autoproclamado Estado Islâmico trava uma guerra contra vários grupos rebeldes), a população, já em dificuldade para escapar às bombas, enfrenta riscos crescentes de fome.

Também o mais alto responsável civil de Alepo avisa que será apenas uma questão de semanas até que a população desses bairros cercados comece a morrer “aos milhares”, declara ao Observer. Brita Haji Hasan acredita que essas zonas só conseguirão aguentar-se mais “dois ou três meses”. “Temos reservas, lojas, mas Alepo abriga 326 mil pessoas que neste momento estão cercadas” – os números variam devido à instabilidade que tem levado milhares a fugir. “Não é uma cidade pequena, é uma cidade industrial. Conseguimos aguentar-nos por três meses, mas depois muita gente vai começar a morrer à fome. Estamos a enfrentar uma enorme crise humanitária e ninguém nos está a ajudar. Estão todos só a olhar. A maioria dos civis que já estão a morrer são mulheres e crianças”.

O jornal explica que a estrada Castello – a última controlada pelos rebeldes a norte, em direcção à fronteira com a Turquia, e que era o escape para entrar e sair da cidade e fazer chegar alimentos e medicamentos – foi bombardeada 250 vezes nas duas últimas semanas. Haji Hasan adianta que as operações russas continuam a não dar tréguas: na semana passada, só em dois dias houve ali 100 ataques mísseis e antes de voltar às bases os aviões russos atacaram também locais civis.

“Só precisamos que acabem os ataques aéreos russos”, declara ao Observer. “O regime está a usar a fome como arma e o Ocidente não parece preocupado com isso. A nossa comida e a nossa água não vão durar. Há tanta destruição causada pela Rússia. Os ataques não param… Não estão a matar combatentes, estão a matar civis”.

As agências humanitárias já tinham também alertado que o combustível que alimenta geradores, padarias e hospitais irá acabar dentro de um mês. Na semana passada, o gabinete para a coordenação das questões humanitárias da ONU (Ocha) avisou que “a ONU e os nossos parceiros ainda têm alguns stocks para responder às necessidades humanitárias, mas a comida em Alepo deve acabar em meados do próximo mês”. O secretário-geral da Ocha, Stephen O'Brien, apelou ao Governo que “levante todos os cercos, respeite a segurança dos funcionários médicos e humanitários, e garanta a protecção de civis bem como das infra-estruturas civis”.

O conflito na Síria, que dura desde 2011, tornou-se uma teia complexa que implica vários actores locais, regionais e internacionais. Já morreram até agora 280 mil pessoas e vários milhões foram obrigados a deixar o país. A intervenção das forças russas fez a situação em Alepo (dividida desde 2012 entre os rebeldes, a Leste, e o Exército, a Oeste) mudar a favor do regime de Assad.

As tentativas de tréguas entre grupos rebeldes e regime têm falhado. Neste domingo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros afirmou estar “pronto a prosseguir com o diálogo inter-sírio sem nenhuma condição prévia, na esperança de que conduza a uma solução global”, avança a agência oficial Sana, citando um responsável.

A mesma fonte adiantou que a Síria está “disposta a coordenar as suas operações aéreas contra o terrorismo no quadro do acordo assinado entre a Rússia e os Estados Unidos”, na semana passada, e que prevê uma cooperação militar contra os grupos jihadistas Estado Islâmico e Frente Al-Nusra, o ramo local da Al-Qaeda.

De acordo com a AFP, a questão deverá ser novamente discutida entre o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, e o seu homólogo russo, Serguei Lavrov, no início desta semana, durante uma reunião da ASEAN a decorrer no Laos.