PS redescobre a social-democracia
O 21.º Congresso do PS foi um dos conclaves com mais debate ideológico dos largos últimos anos. Sob a aparência do unanimismo – e com apenas uma figura da primeira linha do partido, Francisco Assis, a subir ao palco para discordar –, o PS de António Costa subiu um degrau na redefinição do partido, nomeadamente no domínio ideológico.
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O 21.º Congresso do PS foi um dos conclaves com mais debate ideológico dos largos últimos anos. Sob a aparência do unanimismo – e com apenas uma figura da primeira linha do partido, Francisco Assis, a subir ao palco para discordar –, o PS de António Costa subiu um degrau na redefinição do partido, nomeadamente no domínio ideológico.
O processo foi transparente e passou sempre pelo palco do Congresso e não pelos bastidores. Perante uma União Europeia (UE) em que as directivas neoliberais do Partido Popular Europeu (PPE) e da direita europeia imperam, o PS só pode ter uma posição crítica. O próprio Costa o garantiu no encerramento, ao defender que é “afirmando uma alternativa e não capitulando perante o neoliberalismo” que o PS quer permanecer na União Europeia (UE). Esclarecendo, porém, que “fora do quadro da UE, é impossível ser socialista”.
A nova atitude crítica do PS em relação às orientações neoliberais da UE teve como representante principal no debate do Congresso o eurodeputado Pedro Silva Pereira e como principal crítico Francisco Assis. E se Assis alertou para os riscos da contaminação “populista” pela proximidade com o PCP e o Bloco de Esquerda (BE), Silva Pereira foi peremptório a afirmar que “defender uma mudança na política económica e financeira não é aderir a nenhuma retórica anti-europeia, é salvar o projecto europeu”. Isto depois dos seguristas Ana Gomes e Carlos Zorrinho terem defendido uma outra Europa, tendo Zorrinho feito questão de garantir: “Não há uma Bruxelas, mas há muitas, e nós estamos do lado certo da história.”
Em contrapartida, e no momento em que assume que não aceita mais estar contaminado e agir politicamente de acordo com a influência neoliberal, o PS enterra o que ainda pudesse restar de Terceira Via, de Tony Blair a Gerhard Schröder, e assume-se como o bastião da defesa do Estado Social num regresso ao ideário social-democrata. Foi mesmo curioso e simbólico ouvir de novo ser citado Olof Palme num congresso do PS, no caso por Manuel Alegre.
Como simbólico foi ver António Guterres, que enquanto líder do PS (1992-2001) antecipou e integrou a Terceira Via, voltar a entrar numa sala congressual do partido que liderou, 14 anos depois de se ter demitido e prefeitos 16 anos sobre o seu derradeiro conclave. Uma geração depois e quando é líder aquele que será provavelmente o último secretário-geral do PS que com ele trabalhou e cujas direcções e governos integrou, Guterres passa o testemunho, reconhecendo o momento de mudança no partido. Refira-se que todos os ex-líderes foram convidados e que o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, declinou o convite mas foi aplaudido pelos congressistas, ao ser referido primeiro por Daniel Adrião e depois por Paulo Campos.
Num congresso em que foi visível o rejuvenescimento etário do PS, foram os representantes da história do partido que trataram de legitimar a redefinição social-democrata em curso. Coube, aliás, a um outro antigo secretário-geral do PS, aquele que foi o líder mais à esquerda que o partido teve até hoje, Eduardo Ferro Rodrigues, fazer a mais importante intervenção ideológica do fim-de-semana. Além de inovar a política portuguesa, ao manter a actividade partidária quando é Presidente da Assembleia da República, Ferro tratou de proclamar: “O Estado Social tem de ser a nossa linha vermelha”. Ou seja, deixou claro que o coração da social-democracia é a defesa do Modelo Social Europeu e do seu Estado-Providência.
O tom de defesa dos serviços públicos, como suporte e instrumento de acção de um Estado democrático que pratica a igualdade de oportunidades para todos, foi uma constante de inúmeras intervenções. A começar pela veemente defesa do ministro da Educação feita pelo primeiro-ministro no encerramento. Até Álvaro Beleza, que é distante de Costa e integrou o secretariado de António José Seguro, subiu ao palco para aplaudir a defesa do Estado Social e a ideia de que o Orçamento do Estado tem que financiar primeiro os serviços públicos, como o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública. E também ele elogiar o ministro da Educação. Na perspectiva da defesa dos pilares do Estado Social, nomeadamente do SNS, Beleza foi um dos oradores que saudou o facto de o presidente honorário do PS ser agora António Arnaut.
Mas o papel central de Ferro Rodrigues neste congresso foi mais longe do que a marcação de linhas vermelhas ao que classificou de “descredibilização ética” do neoliberalismo. Tratou mesmo de lançar o alerta para a necessidade do PS “conseguir consolidar” os próprios “instrumentos de formação política” doutrinária e procurar formar também uma opinião favorável, à semelhança do que o neoliberalismo fez durante décadas, dominando espaços de comunicação e de formação de opinião.
A defesa ideológica da social-democracia teve outro momento alto com outro histórico: Manuel Alegre. “Quem radicalizou a vida portuguesa foi a coligação de direita” que “fez um PREC ao contrário”, disse o histórico socialista para fazer então uma importante chamada de atenção para a necessidade de redefinir conceitos e libertar palavras capturadas pela lógica neoliberal. Lembrando que o PS é um partido reformista, citou então Olof Palme para falar das “reformas democráticas, as reformas da esquerda”.
O resgatar de conceitos reformistas foi também defendido por Pedro Nuno Santos, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares que é responsável no dia-a-dia pelas relações entre o Governo e os parceiros de entendimentos bilaterais: o BE, o PCP e o PEV. No palco do Congresso, Pedro Nuno Santos garantiu que o que o Governo tem feito é uma governação reformista de esquerda.
A persecução de um caminho reformista foi defendida logo de manhã pelo presidente da Câmara de Lisboa e membro do secretariado Fernando Medina. Sublinhando a importância das reformas para o crescimento da economia, Medina foi dos poucos congressistas a falar da realidade da economia portuguesa, como quem alerta para o óbvio.
Um alerta que foi deixado também no seu peculiar histrionismo pelo antigo deputado e apoiante de António José Seguro, Ricardo Gonçalves: “Ou pomos o país a crescer ou não temos futuro. Prometemos que o país ia crescer 2,6% este ano e para o ano 3,1%. Segundo os últimos dados: 1,2% este ano e 1,3% para o ano. Isto é o fim. Vamos chegar as autárquicas de rastos e vamos perder.”