Médicos Sem Fronteiras reavaliam relação com a UE por causa dos refugiados

Acordo “desastroso” com a Turquia leva ONG a ponderar se continua a aceitar financiamento de Bruxelas. Na Grécia, avisa, já há “tentativas de suicídio entre os refugiados”.

Foto
Refugiados acabados de chegar de barco a Creta esta terça-feira AFP

A organização internacional Médicos Sem Fronteiras decidiu deixar de aceitar qualquer financiamento da União Europeia em resposta ao acordo assinado a 20 de Março para a devolução à Turquia de todos os refugiados que cheguem às ilhas gregas a partir dessa data. “Estamos a fazer uma reflexão séria interna sobre o acordo e isso passa por reflectir sobre os financiamentos de uma União que faz uma instrumentalização da ajuda humanitária”, diz Susana de Deus, a lisboeta que dirige os MSF-Brasil.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A organização internacional Médicos Sem Fronteiras decidiu deixar de aceitar qualquer financiamento da União Europeia em resposta ao acordo assinado a 20 de Março para a devolução à Turquia de todos os refugiados que cheguem às ilhas gregas a partir dessa data. “Estamos a fazer uma reflexão séria interna sobre o acordo e isso passa por reflectir sobre os financiamentos de uma União que faz uma instrumentalização da ajuda humanitária”, diz Susana de Deus, a lisboeta que dirige os MSF-Brasil.

“De momento não estamos a receber novos financiamentos enquanto decorre uma avaliação interna sobre as consequências que a nosso ver este acordo desastroso vai trazer para as populações deslocadas”, explica a responsável, de passagem por Lisboa. Esta decisão não afecta a gigantesca operação dos MSF na Europa, nos países de origem (Turquia, Jordânia, Líbano, Iraque, Chade…) e de trânsito (Líbia ou Norte de África), que dependem de fundos próprios.

Ao contrário de outras ONG, os MSF não ponderam sair da Grécia em protesto contra o acordo, mas já abandonaram Moria, em Lesbos, “porque era um centro de acolhimento que foi transformado em centro de detenção” e Susana de Deus descreve “uma situação a piorar” todos os dias. “Os centros que eram de passagem passaram a ser centros de detenção onde as pessoas esperam períodos infinitos para serem registadas. Não há condições de água e saneamento. Existem ratos, cobras… Os bebés que nascem em território europeu estão a nascer em situações desumanas”, descreve.

Do ponto de vista da saúde, as más condições destes centros originam “problemas dermatológicos e gastrointestinais”, para além das doenças respiratórias que durante o Inverno tanto ocuparam esta e outras organizações.

Na Grécia, a ONG está particularmente preocupada com “os menores desacompanhados e mães sozinhas com os filhos, num ambiente cada vez mais tenso e de mais vulnerabilidade”.

Enquanto as pessoas conseguiam seguir viagem, antes do acordo e do encerramento das fronteiras, pelo menos tinham uma expectativa de melhoria das suas situações; agora só há “desespero” e “há já tentativas de suicídio entre as pessoas na Grécia”, avisa Susana de Deus. Os MSF conseguem manter quase sempre acesso a estas pessoas – nunca tiveram de abandonar o campo de Idomeni, nascido junto à fronteira com a Macedónia, de onde muitos voluntários foram barrados, por exemplo – e têm equipas de saúde mental em todos os lugares onde estão presentes.

Em relação aos que começam a ser reenviados para a Turquia, os MSF “estão especialmente preocupados com os casos de pessoas com doenças crónicas”, sublinhando que “é preciso garantir que estas pessoas levam consigo a medicação necessária para algum tempo”.

Os milhões prometidos à Turquia no acordo de Março funcionam como “ilusão de se estar a resolver alguma coisa”, mas são apenas o último episódio da “cegueira dos líderes europeus”, que insistem que “a Europa está a receber os refugiados do mundo, uma mentira absoluta”, já que aqui chegam uma ínfima parte dos 60 milhões de refugiados e deslocados actuais, diz Susana de Deus.

Por causa desta "crise institucional", os MSF lançaram-se nos últimos dois anos em actividades que nunca tinham ponderado realizar. “Somos compelidos a fazer coisas que nunca tínhamos feito e aprendemos enquanto avançamos.” Como quem chegava não tinha informação sobre o que se seguia ou o processo de pedido de asilo, a ONG criou equipas de aconselhamento legal. Como se morre no mar, os MSF puseram três barcos a resgatar gente, nalguns casos em cooperação com outras organizações.

Já em 2016, entre 21 de Abril e 31 de Maio, estas três embarcações resgataram 1953 pessoas e receberam outras 1793 retiradas do mar por outros barcos. Ao longo do ano passado, estas missões resgataram mais de 23 mil pessoas no Mediterrâneo e mais de 14 mil no mar Egeu. Ao todo, entre os resgatados no mar e os atendidos nos locais de chegada, os MSF trataram mais de 100 mil refugiados na Europa em 2015.