Ken Loach: Palma de Ouro para um belo filme político num palmarés conservador
Palmarés da 69.ª edição. Loach agradeceu o maior dos prémios da competição para I, Daniel Blake com um discurso fortemente político num ano em que o júri tinha tudo para arriscar mas deixou coisas aventureiras de fora. Xavier Dolan voltou a chorar, mas foi Jean-Pierre Léaud quem emocionou.
Ovação fortíssima para Ken Loach neste domingo em Cannes. Discurso fortemente político do cineasta — “o mundo perigoso” em que vivemos, a necessidade de o cinema protestar contra o neoliberalismo crescente que, nas suas palavras, tem feito definhar a Europa, a Grécia, Portugal, porque “outro mundo é possível, outro mundo é necessário”. Discurso por um filme, I, Daniel Blake, que foi das experiências emocionalmente mais intensas desta 69.ª edição do festival, que acaba de chegar ao fim. O filme também é assim, indignado com a devastação social e humana e simultaneamente de uma pureza de olhar e de um engajamento a pedirem reacção: é a história de Daniel Blake, um marceneiro de 59 anos de Newcastle que sobreviveu a um ataque cardíaco, mas que não vai sobreviver à burocracia do Estado social.
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Ovação fortíssima para Ken Loach neste domingo em Cannes. Discurso fortemente político do cineasta — “o mundo perigoso” em que vivemos, a necessidade de o cinema protestar contra o neoliberalismo crescente que, nas suas palavras, tem feito definhar a Europa, a Grécia, Portugal, porque “outro mundo é possível, outro mundo é necessário”. Discurso por um filme, I, Daniel Blake, que foi das experiências emocionalmente mais intensas desta 69.ª edição do festival, que acaba de chegar ao fim. O filme também é assim, indignado com a devastação social e humana e simultaneamente de uma pureza de olhar e de um engajamento a pedirem reacção: é a história de Daniel Blake, um marceneiro de 59 anos de Newcastle que sobreviveu a um ataque cardíaco, mas que não vai sobreviver à burocracia do Estado social.
Loach tem 80 anos, filma há cinco décadas. I, Daniel Blake fica já como um dos seus grandes filmes. E é uma nova Palma de Ouro, depois de The Wind that Shakes the Barley, em 2006: entra para o grupo dos que bisaram, Alf Sjöberg, Francis Ford Coppola, Shohei Imamura, Emir Kusturica, Bille August e Michael Haneke.
Várias repetições, este ano, aliás. É a terceira vez que Andrea Arnold recebe o Prémio do Júri, depois de Red Road, em 2006, e de Fish Tank, em 2009 – mas American Honey é belíssimo, é todo um património lírico e mitológico de um território cruel, a América, o seu cinema, o sonho e a decepção, de que a realizadora britânica toma conta. Reacção mitigada, no entanto, não foi dos filmes por ali mais amados.
O Grande Prémio a Juste la Fin du Monde, de Xavier Dolan, acaba por ter o efeito do Prémio do Júri a Mommy, em 2014, sinal de que os jurados não quiseram deixar de passar a sua mão por esse filme. A emoção de Dolan em palco também foi um remake. Mas há uma diferença: Mommy foi recebido de forma consensual, Juste la Fin du Monde, obra que se senta à mesa do grotesco, conseguiu irritar e exasperar. Porquê a paixão do júri por este filme, que é adaptado de uma peça de teatro e que parece regurgitar Tom a la Ferme, já baseado numa peça de teatro, de 2013?
Alguns elementos do júri, Arnaud Desplechin ou Vanessa Paradis, entrevistados à entrada do Palais des Festivals, davam conta, de forma mais ou menos explícita, de decisões que precisaram de longas discussões: forte, intenso, difícil, foram os adjectivos que utilizaram. O que se passou? Só eles saberão e nestas coisas há um código de honra que impede revelações. Mas a verdade é que da mistura de risco e de mobília da casa zona de conforto (a selecção apresentada) que parecia proporcionar um palmarés surpreendente – entre os filmes mais “populares” estavam possibilidades de coroar “novos” nomes, do Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (o grande filme, o grande perdedor...), ao Elle, de Paul Verhoeven (uma estreia na competição em era de reavaliação da sua obra), passando por Toni Erdmann, de Maren Ade, que era o favorito -, o júri ficou com suspeitos do costume, não saiu de casa, e hipotecou essa hipótese de explodir, de fazer espectáculo e criatividade. Estilhaços dos compromissos (ainda o ex-aequo no prémio de realização a Assayas e Mungiu...), um palmarés possível, não o desejado que parecia estar à mão de semear?
A "aposta" em Le Client, de Asghar Farhadi, é bizarra: dois prémios, para o actor Shahab Hosseini (Bérénice Bejo já ganhara em 2013 por O Passado, anterior filme do iraniano) e para o argumento, do próprio Farhadi. O cineasta não o esperava, em vésperas do palmarés os próprios promotores do filme estavam convictos de que não estariam na corrida. A sensação é de que Farhadi já esteve antes aqui, com Uma Separação - é de novo a classe média, de novo a implosão de uma família a partir de um incidente que afecta um casal, a erupção de um rosto intolerante sob a máscara da civilidade - e o filme a reiterar o que o espectador deve pensar e sentir. Plano mais bonito e prometedor: uma porta aberta pela qual vai entrar uma personagem decisiva para o que vai acontecer, o realizador corta antes de a figura aparecer, ficamos com isso na retina, a possibilidade de invasão, de uma coisa generalizada e não nomeada… mas o filme vai depois "fechando" as portas ao desconforto, explicitando, nomeando, moralizando.
Um palmarés que escolhe o lindíssimo filme de Loach tem aparência de ser justo. Um palmarés que exclui duas mulheres que atravessaram Cannes atrás do seu desejo – Sônia Braga, no Aquarius de Kleber Mendonça Filho, Isabelle Huppert no Elle de Paul Verhoeven - e que exclui esses filmes aventureiros, um obscuro e espirituoso (o filme do holandês), outro diurno e sinistro (o do brasileiro, que foi o caso político do festival, quando a equipa levantou cartazes na sessão de gala com a palavra "ditadura" a falar sobre e para o Brasil), revela-se intrinsecamente pouco corajoso e nada inventivo. A explicação deve estar nas tais longas, difíceis e intensas horas de discussão: deram um belo filme político e um palmarés conservador.
Valeu pela Palma de Honra a Jean-Pierre Léaud, o miúdo que tinha 14 anos em 1959, em Cannes, nos 400 Golpes, de François Truffaut, e que se assumiu esta noite tão profundamente feliz quando há mais de cinco décadas o cineasta francês lhe deu um argumento para as mãos: "Jean-Pierre toma, tens o papel principal." Esse é o filme - disse um emocionado Arnaud Desplechin ao homenagear o actor e assim a pagar algumas das suas próprias dívidas de cineasta - "de que ainda não nos refizemos".
Palma de Ouro - I, Daniel Blake, de Ken Loach
Grande Prémio - Juste la Fin du Monde, de Xavier Dolan
Prémio de interpretação masculina- Shahab Hosseini, por Le Client, de Asghar Farhadi
Prémio de interpretação feminina - Jaclyn Jose, Ma'Rosa, de Brillante Mendoza
Prémio do Júri - Andrea Arnold, American Honey
Prémio do Argumento - Asghar Farhadi, por Le Client
Prémio de Realização - ex-aequo, a Olivier Assayas, por Personal Shopper, e Cristian Mungiu, por Bacalaureat
O prémio da Câmara de Ouro, para as primeiras obras, que tinha um júri específico, escolheu Divines, de Houda Benyamina (gritou "les femmes, les femmes", "também temos direito, Cannes pertence-nos"). Um outro conjunto de jurados atribuiu a Palma de Ouro da Curta-Metragem a Time Code de Juanjo Gimenez.
Foram também atribuídos este fim-de-semana, mas fora da competição principal, os prémios da secção Un Certain Regard e o da Federação Internacional de Críticos de Cinema. Na primeira, a principal distinção foi concedida a The Happiest Day In The Life of Olli Maki, filme de estreia do finlandês Juho Kuosmanen. O Fipresci foi parar às mãos da realizadora alemã Maren Ade. O seu Toni Erdmann era também um dos favoritos na corrida à Palma de Ouro.