A competição de Cannes entrou na era de Aquarius
Há um edifício antigo no Recife, um projecto imobiliário quer deitá-lo abaixo mas Sônia Braga recusa-se a sair dali, a abandonar a sua história. Um filme sensualíssimo, sereno e sinistro sobre a memória ameaçada realizado por Kleber Mendonça Filho, é até agora o melhor do concurso.
Cannes está ocupada, o invasor veio do exterior, do Brasil, é uma térmita velha e criança ao mesmo tempo, de um tempo antigo a querer manter a sua memória. A competição da 69.ª edição do festival não tem alternativa, o que quer que os prémios digam no final, dia 22: entrou na era de Aquarius, está já a ser corroída pelos efeitos daquele que é até agora o melhor filme do concurso. Kleber Mendonça Filho é o responsável. O realizador daquele que Caetano Veloso gritou ser “um dos melhores filmes brasileiros de sempre” – O Som ao Redor, 2012, primeira longa-metragem de ficção -, realizador de filmes sobre edifícios e classe média, sobre fantasmas e memória, sobre o medo de ser invadido e a entrega à invasão, acaba de oferecer ao festival um microcosmos sereno e sinistro afagado pelo vento da praia: um edifício no Recife - esvaziado por um dos projectos imobiliários que reconfiguram de forma agressiva a cidade com arranha-céus guardados por grades - sem ninguém a habitá-lo.
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Cannes está ocupada, o invasor veio do exterior, do Brasil, é uma térmita velha e criança ao mesmo tempo, de um tempo antigo a querer manter a sua memória. A competição da 69.ª edição do festival não tem alternativa, o que quer que os prémios digam no final, dia 22: entrou na era de Aquarius, está já a ser corroída pelos efeitos daquele que é até agora o melhor filme do concurso. Kleber Mendonça Filho é o responsável. O realizador daquele que Caetano Veloso gritou ser “um dos melhores filmes brasileiros de sempre” – O Som ao Redor, 2012, primeira longa-metragem de ficção -, realizador de filmes sobre edifícios e classe média, sobre fantasmas e memória, sobre o medo de ser invadido e a entrega à invasão, acaba de oferecer ao festival um microcosmos sereno e sinistro afagado pelo vento da praia: um edifício no Recife - esvaziado por um dos projectos imobiliários que reconfiguram de forma agressiva a cidade com arranha-céus guardados por grades - sem ninguém a habitá-lo.
Não é verdade, vive ali ainda, num dos apartamentos do Aquarius, edifício construído nos anos 40, uma sexagenária, viúva, sobrevivente a um cancro na mama, ex-jornalista musical, prateleiras cheias de vinis (não é recusa ao mp3, também se serve…), crente nos efeitos amorosos de ouvir Maria Bethânia. Chama-se Clara.
Clara não quer sair dali, nem por dois milhões de reais, só mesmo morta. Recusa fazer o que todos os outros inquilinos desse antigo edifício frente ao mar fizeram: alienar a memória, desistir dela, esquecer. “Tou viva, sabe?”. Ela é Sônia Braga, que Kleber trouxe de Nova Iorque, onde a actriz vive, para encarnar um património e um espírito que teimam sobre a decadência da matéria. Estão a ser ameaçados no seu habitat como as personagens dos filmes de “assaltos”: O Som ao Redor já colocava a classe média brasileira no lugar da esquecida e vulnerável esquadra do fantasmagórico Assalto à 13.ª Esquadra, de John Carpenter (1976), e Clara vai também entrar no seu pesadelo, vai ser desestabilizada, amedrontada e excitada pela ameaça que entrou no seu interior.
O que é espantoso nesta ficção, é que Kleber, também por aceitar os riscos e constrangimentos técnicos de filmar num verdadeiro apartamento, com as pré-existências de portas e janelas, e colocar ali um corpo, uma actriz, em evolução ferozmente livre, evocativa e desencadeadora de memórias, abre o filme à possibilidade de ser um documento sensual que regista mudanças de ritmos, patifarias da luz, alterações de humor, que capta a nostalgia do passado e o presente – uma intimidade onde vão ficando impressos, passo a passo, os sinais de uma reconfiguração global e irreversível, a mudança de toda uma cidade e a implicação devastadora com a sua memória, com a sua História.
Perante estas quase duas horas e meia de duração que foram tão curtas e a que apetece regressar já para voltar a apanhar o vento da praia, que chances tem Personal Shopper, de Olivier Assayas, e Julieta, de Pedro Almodóvar, de deixarem impressão na memória? Nenhumas. Até porque o filme de Kleber chega para lhes mostrar como se faz… como se faz retrato de senhora, como se faz fantasmagoria…
O filme do francês, recebido com assobios voluntariosos, foi escrito para Kristen Stewart – reencontro depois de As Nuvens de Sils Maria (2014). Interpreta uma americana que trabalha em Paris como personal shopper, assombrada pela morte do irmão gémeo, que ela, uma médium, espera “contactar”. A sua fragilidade emocional vai ser aproveitada por um plano criminoso. O filme será testemunho da vontade de Assayas fazer, simultaneamente, “ghost story”, ou mais linearmente “filme de terror” como o cinéfilo que é, e ao mesmo tempo inscrever nele sinais do real, do presente. Não é convincente em nenhum deles, o seu tour de force é um diálogo/perseguição durante uma viagem de comboio Paris/Londres, ida e volta, através do chat no telemóvel (o presente… o virtual…) que parece ter sido a única razão para tudo existir. Mas não chega para explicar Personal Shopper, resulta numa afectação.
Quanto a Almodóvar, não parece que seja desta que receberá a Palma de Ouro que nunca recebeu. O mais próximo que esteve do prémio máximo de Cannes foi em 1999, com Tudo Sobre a Minha Mãe, mas ficou “só” com o prémio de Melhor Realizador. Julieta, baseado em contos de Alice Munro, está longe da relevância que ainda tem aquele filme na obra do realizador quando se fala da reconfiguração das marcas histriónicas à gravidade, ao luto. Esta é a história de uma mãe e de uma filha, é uma história de elos de culpa, de segredos, mas é um filme sem mistério algum, menos contido do que, na verdade, constrangido pela montagem e artificial coabitação dos elementos que põe em cena.