A contemplação da América por um homem-sombra: Jim Jarmusch
O homem voltou a ser recebido em Cannes como rei da ética old school. Apresentou em competição Paterson. Mas o sucessor de Só os Amantes Sobrevivem mereceria mais do que contemplação da sua própria sombra etérea.
Se a música de Só os Amantes Sobrevivem era rock e distorção, a de Paterson é electrónica ambiental. Dizer isto não é falar apenas das bandas sonoras do novo e do anterior filme de Jim Jarmusch – compostas pela banda do próprio realizador, Sqrl, que forma com Carter Logan e Shane Stonebeck. Isto é também dizer como a arrogância e o snobismo terminal dos vampiros do filme anterior (que esteve em Cannes 2013, como quase todos os de Jarmusch desde que ele recebeu a Câmara de Ouro, prémio para melhor primeiro filme, por Para Além do Paraíso em 1984) deram agora lugar a algo de menos visceral: o conforto de um homem com a contemplação da sua própria sombra longilínea. É por estas paragens da autocontemplação que anda o último filme de Jim Jarmusch (o homem voltou a ser recebido como rei da ética old school – a sua cortesia merece isso por inteiro, já agora).
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Se a música de Só os Amantes Sobrevivem era rock e distorção, a de Paterson é electrónica ambiental. Dizer isto não é falar apenas das bandas sonoras do novo e do anterior filme de Jim Jarmusch – compostas pela banda do próprio realizador, Sqrl, que forma com Carter Logan e Shane Stonebeck. Isto é também dizer como a arrogância e o snobismo terminal dos vampiros do filme anterior (que esteve em Cannes 2013, como quase todos os de Jarmusch desde que ele recebeu a Câmara de Ouro, prémio para melhor primeiro filme, por Para Além do Paraíso em 1984) deram agora lugar a algo de menos visceral: o conforto de um homem com a contemplação da sua própria sombra longilínea. É por estas paragens da autocontemplação que anda o último filme de Jim Jarmusch (o homem voltou a ser recebido como rei da ética old school – a sua cortesia merece isso por inteiro, já agora).
É Adam Driver que tem esse corpo longilíneo. Chama-se Paterson, vive em Paterson, Nova Jérsia, estufa para vários poetas, entre os quais o seu favorito William Carlos Williams. Paterson conduz autocarros. Paterson escreve poesia. Sobre caixas de fósforos, sobre o furioso desejo desses fósforos se tornarem chama perante uma mulher amada. Paterson quase desaparece nas suas rotinas, que inclui passear todas as noites, quando chega a casa, sempre à mesma hora, do trabalho, o cão Travis (que na realidade é uma cadela; segundo Jarmusch, é uma interpretação transgender). E escutar. E ser espectador da sua felicidade conjugal: em casa, a mulher (a iraniana Goldshifteh Farahani) explode em projectos a curto prazo que contemplam pintar todas as superfícies a preto e branco, desenvolver um negócio de cupcakes e ser estrela de country em Nashville.
E no conjunto de pequenos nadas que fazem este idílio, está, obviamente, uma ida ao cinema para ver filmes de série Z a preto e branco, o que é obviamente uma rotina do século passado, o XX, e o que faz deste casal, sobretudo de Paterson, mais um elemento de uma galeria dos nostálgicos avessos ao mundo moderno que está no cinema de Jarmusch. (O próprio realizador, falando em salas de cinema e em filmes a preto e branco, confirmava que, sim, talvez se incluísse nessa galeria de antiquados). O Paterson de Adam Driver é, aliás, uma outra incursão a uma certa nostalgia masculina que o realizador já tocara com Bill Murray em Broken Flowers - Flores Partidas (2005). Mas em Paterson em versão mais imobilizada, sem qualquer possibilidade de desadequação burlesca, toda ela conformada ao quotidiano e à transcendência das suas banalidades.
Dito assim, é horrível. Dito assim, esta felicidade é coisa monstruosa. Mas o estranho em Paterson (competição) – e não adianta nada opor isto a todos os que já juram pela suposta obra-prima que o filme será, porque quem é fã de Jarmusch está condenado a nunca deixar de o ser – é que parece querer ignorar os indícios de sufoco que estão no argumento e nas imagens para se ocupar, primordialmente, da contemplação da sua sombra. O que dá uma afectação etérea a este último Jarmusch, um narcisismo mais conformista e preciosista – por isso menos essencial – do que o sucessor de Só os Amantes Sobrevivem mereceria.
A competição de Cannes entrou de facto, por estes dias, no seu “período americano”. Foi Andrea Arnol, uma britânica, que pôs a coisa a andar, com o seu olhar que partiu do exterior e reconfigurou uma mitologia – dos espaços grandes, do sonho, do dinheiro –, embora a fulgurância de American Honey, é esse o filme de que falamos, não se tenha espalhado na 69.ª edição do festival. Ultrapassa o nível do segredo a partilhar, gerou até cumplicidades fortes, mas está longe, por exemplo, do consenso atingido por Toni Herdmann, de Maren Ade, que é um filme alemão mas parece estar a pedir um outing, que alguém, com algum esforço de banalização, puxe pela convenção e exponha a comédia goofy que tem lá dentro disfarçada – se houvesse um remake americano ninguém se espantaria.
Fora da competição, na secção Un Certain Regard, um cineasta romeno, Bodgan Mirica, faz a sua declaração a favor do cinema de género e contra o “chatíssimo” cinema “art house” do seu país – não refere nomes, mas só pode estar a falar de Cristi Puiu (de quem já se viu em concurso Sierranevada), ou de Cristian Mungiu (de quem se vai ver, também em competição, Baccalauréat). Bodgan falou disso numa entrevista a propósito de Dogs, a sua primeira longa-metragem, um cerimonioso exercício sobre a revelação da violência. Ao interior romeno chega um neto para vender a propriedade do avô falecido, descobrindo quem era na verdade esse avô e os sinistros segredos enterrados, literalmente, nessas terras e nesses lagos. Enfrentará todas as cumplicidades que o avô forjou, que serão ferozmente protegidas perante o rapaz que chegou da cidade.
O filme passa-se no interior romeno, mas passa-se, realmente, num território de frenesim e demência desacelerados tal como codificados, por exemplo, por David Lynch (aquele travelling rastejante do início, junto às ervas, diz Veludo Azul por todos os lados, e o que vem a seguir não é uma orelha mas é um pé). Ou então pelos irmãos Coen. Mesmo sendo claro que Bodgan Mirica se move no controle do mecanismo que organizou, há um efeito de redundância – o próprio título diz tudo: é a violência animal –, de quem não se autonomiza das marcas já deixadas nesses pântanos do thriller em que os homens se encontram, sem retorno, consigo mesmos. E porque a seguir vamos falar de Jeff Nichols, que três meses depois de ter apresentado no Festival de Berlim Midnight Special tem novo filme e em competição em Cannes, faz sentido chamá-lo aqui também – por causa do seu Histórias de Caçadeiras (2007), por exemplo – a propósito desta sensação de segunda ou terceira mão que não se despega do filme chamado Dogs (cães).
Jeff Nichols, então… Loving. É um daqueles filmes de intenção e concretização politicamente correctas, regressando a um episódio da luta pelos direitos cívicos na América: a história real de Richard Perry Loving (Joel Edgerton) e Mildred Jeter (Ruth Negga), ele branco e ela negra, cuja união foi considerada ilegal pelas leis anti-miscigenação do estado da Virgínia, e que enfrentou, durante nove anos, a ameaça de prisão (se regressassem à Virgínia, de onde foram expulsos). Até que, em 1967, o Supremo Tribunal declarou inconstitucional toda a restrição ao direito ao casamento que invocasse a raça dos cônjuges.
Loving, como se repara, é o apelido da personagem de Richard. É também a “justificação”, violentamente humana e irredutível, desse homem perante um juiz que o condena pela “ilegalidade”: ele ama a sua mulher. Mas não há qualquer turbulência ou violência no cinema que Jeff Nichols pratica aqui. Há mesmo uma conformação cândida e com o esquema habitual, a zona de conforto, do filme “caso da vida”.