Andrea Arnold conquista a América com uma carrinha na pradaria
American Honey, um filme lindíssimo com Shia LaBeouf e jovens amadores recrutados pela realizadora perseguem o dinheiro e cantam pela América fora. Perto disto, Mal de Pierres e Clash são pálidos.
Andrea Arnold, impregnada na sua memória pela América de Uma Casa na Pradaria, meteu-se a caminho, norte, sul, este, oeste, centro, paisagens desertas até não ter fim, depois violentos, dramáticos recortes. Um dia chegou a uma pequena cidade da Virgínia Ocidental. Como aquelas dos filmes em que tudo parece estar representado para representar as possibilidades do mundo, em que há uma farmácia, em que há uma casa mortuária cheia de flores, em que… Só que nesta cidade, pequena, o mundo parecia maior do que o habitual, havia na verdade três farmácias. Cada uma delas com cinco empregados, o que não fazia parte da experiência de uma cliente de farmácias dna Grã-Bretanha, de onde vem a cineasta. “Onde geralmente há só um”. O que faziam tantos empregados ali? Aviavam receitas. “Analgésicos para os velhotes, antidepressivos para os jovens”.
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Andrea Arnold, impregnada na sua memória pela América de Uma Casa na Pradaria, meteu-se a caminho, norte, sul, este, oeste, centro, paisagens desertas até não ter fim, depois violentos, dramáticos recortes. Um dia chegou a uma pequena cidade da Virgínia Ocidental. Como aquelas dos filmes em que tudo parece estar representado para representar as possibilidades do mundo, em que há uma farmácia, em que há uma casa mortuária cheia de flores, em que… Só que nesta cidade, pequena, o mundo parecia maior do que o habitual, havia na verdade três farmácias. Cada uma delas com cinco empregados, o que não fazia parte da experiência de uma cliente de farmácias dna Grã-Bretanha, de onde vem a cineasta. “Onde geralmente há só um”. O que faziam tantos empregados ali? Aviavam receitas. “Analgésicos para os velhotes, antidepressivos para os jovens”.
Andrea Arnold, uma “criação de Cannes” – as suas curtas foram aqui reveladas, entre as quais uma, Wasp, de 2005, que ganharia depois um Óscar, e recebeu o Prémio do Júri pelas longas Red Road, em 2006, e Fish Tank, em 2009 -, provava assim a que é que sabe, para além do que tinha saboreado nos filmes, o sonho americano. American Honey (competição) é o resultado dessa viagem, na verdade é o resultado de muitas viagens, a partir de um argumento da realizadora depois de ter lido um artigo do New York Times sobre estes trabalhos da “underclass” americana sem perspectiva, e é em si mesmo um filme filmado on the road, através da América, com um grupo de ferozes perseguidores do dinheiro: miúdos que atravessam o território em carrinha para fazerem o seu número porta a porta, venderem o que quer que seja – neste caso, revistas -, venderem-se. Há um actor profissional entre eles, Shia LaBeouf, que interpreta a personagem de quem treina e apura esta determinação empresarial. Com essa excepção são todos jovens recrutados pela realizadora durante a sua pesquisa e houve mesmo alguns que, nos ensaios, nos exercícios de improvisação que Andrea Arnold lhes passava, aproveitaram mesmo para ganhar algum em várias portas.
Essa carrinha é a materialização do elo inquebrantável que este lindíssimo filme mantém sempre com os seus kids on the run – é a casa deles, lugar de pertença à tribo em que se refugiaram, é o contrato de fidelidade que American Honey faz com eles. É ali que o filme carrega as energias que lhe permite seguir o caos, ser obra de um fôlego só, capaz de cantar (com Rihanna) e exibir o fogo de artifício e de ter o mesmo ardor com o que é do quotidiano e fala mais baixo. É com esta capacidade de modular, sem paragens respiratórias, que American Honey se apodera de um património do cinema americano. Não pode ser só composto pelos óbvios Larry Clark ou Harmony Korine, referências naturais e que serão imediatamente nomeadas por causa de Kids (1995) ou de Gummo (1997). É todo um património lírico e mitológico forjado (com o western, por exemplo) a partir de um território cruel cuja descoberta tocou física e psicologicamente a realizadora – também podia dizer-se que American Honey é mallickiano, por causa de Badlands (1973), mas é coisa traiçoeira por este dias dizer-se isso, afinal de contas The Revenant, de Iñárritu, tambem tinha lá os seus pedaços mallickianos.
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Depois de uma pujança destas, mais patéticos, inábeis e serôdios resultam os esforços de Nicole Garcia em fazer melodrama doentio com Mal de Pierres (competição), com a pose, aqui nada convincente, de Louis Garrel e com a abnegação monacal com que Marion Cotillard investe habitualmente nas personagens.
Uma carrinha é o único cenário – uma carrinha da polícia - de Clash, de Mohamad Diab (secção Un Certain Regard). É lá dentro que o cineasta representa o Egipto na ressaca da Primavera Árabe, depois do queda do regime de Mubarak, em 2011, ter levado à eleição de um governo da Irmandade Muçulmana, presidido por Mohammed Morsi, que um ano depois foi derrubado pelo exército no culminar de um período de sublevações, manifestações e combates que opuseram os partidários e opositores dos islamistas. Clash passa-se num desses dias de 2013 em que a população e militares combatem e se defrontam nas ruas do Cairo. A carrinha policial que atravessa a cidade vai “recolhendo” os representantes das diferentes convicções politicas e religiosas que vão sendo presos nas manifestações, transferindo-se para o interior da carrinha, como uma panela de pressão, os conflitos que deflagram no exterior. Este cenário único é, obviamente, o tour de force do filme de Diab. Que já levou, por exemplo, a que se comparasse com um outro filme de cenário único e interior, um tanque de guerra: o Libano, de Samuel Maoz (Leão de Ouro em Veneza em 2009), sobre as experiências do realizador na Primeira Guerra do Líbano, em 1982.
Mas eis a grande diferença, e o que atira a obra do israelita Maoz para os domínios da abstracção, sendo menos um documento que relata acontecimentos e mais um filme assombrado pela perda de inocência e pelo medo: Clash está muito preocupado, e nisso é extremamente cuidadoso, em representar sem excessos e desequílibrios as várias sensibilidades em jogo. Como os acontecimentos são recentes, e não podem por isso permitir a ocupação onírica que tomava conta de Libano, o cinema no filme de Mohamad Diab, apesar da bravura técnica, está refém de um gestão dramatúrgica excessivamente calculada, nem sempre subtil, aliás, e que muitas vezes é televisiva e paroquial na forma de apresentar as personagens em conflito - até porque disso depende, entre outras coisas (como ficou claro, embora nas entrelinhas, na apresentação que o cineasta fez do filme que teve honras de abertura na secção Un Certain Regard), a possibilidade de ele ser visto pelos espectadores egípcios.