Quem está a dar em Cannes é Whitney Houston
Ovação espontânea da imprensa durante Toni Erdmann, de Maren Ade, um filme art-house com coração mainstream. Um dia para o erotismo de Mademoiselle de Park Chan-Wook e Neruda de Larrain e, fora de competição, Spielberg.
Quem fez estrondo nas últimas horas em Cannes não foram os gigantes em animação stop motion de Steven Spielberg, que se mostraram fora de competição: The BFG, com argumento da malograda Melissa Mathison (E.T. - O Extraterrestre) a partir de Roald Dahl, um filme tão atafulhado pelos protocolos da tecnologia digital que não há sentido de maravilhoso que se expanda. Quem fez estrondo em Cannes foi Whitney Houston. Na verdade, foi Sandra Hüller, actriz alemã. Na verdade, foi Toni Erdmann, o filme de Maren Ade (competição), em que a personagem de Sandra, no terço final de um filme de quase três horas, faz a sua versão de Greatest Love of All.
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Quem fez estrondo nas últimas horas em Cannes não foram os gigantes em animação stop motion de Steven Spielberg, que se mostraram fora de competição: The BFG, com argumento da malograda Melissa Mathison (E.T. - O Extraterrestre) a partir de Roald Dahl, um filme tão atafulhado pelos protocolos da tecnologia digital que não há sentido de maravilhoso que se expanda. Quem fez estrondo em Cannes foi Whitney Houston. Na verdade, foi Sandra Hüller, actriz alemã. Na verdade, foi Toni Erdmann, o filme de Maren Ade (competição), em que a personagem de Sandra, no terço final de um filme de quase três horas, faz a sua versão de Greatest Love of All.
As palmas que as outras personagens lhe atiram replicaram-se aos milhares, fora do ecrã, pela sala de cinema dentro. Diz-se que teremos prémio por aqui, não por causa da versão quebrada, esforçada, rendida à sua imperfeição, de Sandra, mas se calhar até por causa disso mesmo: esse é o momento de viragem em Toni Erdmann, em que a personagem de uma filha, Ines, se começa a render ao pai que durante todo o filme utiliza o seu arsenal de pantomima, máscaras, dentes falsos e outras partidas para se infiltrar na vida dela – mulher de carreira bem sucedida, controladíssima, fria, mas alheada do seu prazer, da sua humanidade.
Ines vive no mundo das corporações, e o filme parece adoptar esse não-estilo de vidros limpos e roupa impecavelmente engomada, uma neutralidade formal, filmando diálogos e situações. Tal como Ines é desafiada pelo pai com esta pergunta tremenda: “Que tipo de ser humano és tu?”, podemos perguntar à terceira longa-metragem de Maren Ade, sem querer interrogar o sentido da vida, se ela não esconde, afinal, o desejo de ser a boa e velhinha comédia sentimental, pateta q.b. – que é um elemento sempre importante. Ou então questionar se nas quase três horas de duração não se repetira sempre o mesmo motivo nos diálogos e nas situações (na verdade, esconde-se uma potencial sitcom), e se isso não é excessivamente esquemático – ou, pelo contrario, tremendamente espertalhão? – quando é suposto tratar-se do (re)encontro entre dois seres e um sentido para as suas vidas. O que quer que seja, Toni Erdmann, a longa-metragem de um dos nomes de uma denominada “escola de Berlim” (a de Christian Petzold, Angela Schanelec, Thomas Arslan, Christoph Hochhäusler ou Ulrich Köhler…), uma produção da Komplizen Film que na sua busca de cúmplices para o seu programa editorial artístico seduziu e se deixou seduzir, por exemplo, pelo universo de Miguel Gomes, é o filme convencional com o rabo de fora de que, nas últimas horas, toda a gente fala. Um filme art-house com coração mainstream.
O “thriller erótico” e o Óscar Neruda
Sobre Mademoiselle, do coreano Park Chan-Wook (terceira vez na competição, as anteriores duas premiadas: Grande Prémio, em 2003, para Old Boy - Velho Amigo, Prémio do Júri, em 2009, para Thirst - Este é o meu Sangue), sobram, nas conversas, o preciosismo, as rebuscadas posições – um 69 sáfico – e reviravoltas do argumento. Mas é por isso que é um “thriller erótico”. Mas é por isso também que o fetichismo está aqui já a um nível de decoração. Ou vice-versa, que vai dar ao mesmo.
Estão a ser unânimes as reações a Neruda, do chileno Pablo Larrain, que teve a sua estreia mundial na secção alternativa Quinzena dos Realizadores. Sublinha-se o facto de não ser um “filme biográfico” convencional – o que é verdade, tendo mesmo sido chamado de “anti-biopic”; de não ter qualquer intenção hagiográfica, dando-nos até uma figura de narcisismo flácido, obcecada pela construção do seu próprio mito; de ser o filme que pode permitir uma abertura de portas à carreira do realizador de Tony Manero (2008) – fala-se em Óscares e coisas do género. De acordo. Mas então acrescentaríamos, para colocar aqui um ponto de desacordo, que Neruda é um filme que coloca Larrain num outro território de escolhas: a densidade, opacidade mesmo, do seu cinema deram lugar a um lustroso maneirismo, até a uma certa afectação.
O filme centra-se no período, 1948, em que Neruda (Luis Gnecco), devido às acusações abertas que faz ao Governo no Senado, é acusado de traição por ser comunista e, sob as ordens do presidente Videla (Alfredo Castro), é perseguido pelo inspector Óscar Peluchonneau (Gael Garcia Bernal) e obrigado a fugir e a esconder-se – é nesse período que escreve o seu Canto General. O filme é um jogo de gato e rato entre Neruda e Peluchonneau, e este é mesmo o narrador desta espécie de noir entre um poeta e um polícia – uma figura que Bernal não consegue, já agora é preciso dizê-lo, concretizar de forma sibilina como o jogo pedia (se Neruda fosse o filme de um wannabe Bertolucci, como às vezes parece ser, podemos delirar com outro actor também de físico pequeno mas de maior inquietação e insondabilidade, o Jean-Louis Trintignant de outros tempos, os do Conformista, naquele papel). O filme é prejudicado pelo erro de casting que é Bernal. Mas é o próprio Larrain que se deixa intoxicar pelas possibilidades do jogo, sobretudo as plásticas, e o filme esta sempre a enunciá-las em vez de se concretizar: o que faz com que Neruda pareça, na maior parte das vezes, sucessivos trailers a anunciarem um filme.