Bruno Dumont come-os com Ma Loute
Quem come quem? Combate feroz entre ricos e pobres no novo filme do francês Bruno Dumont em competição em Cannes, onde está também I, Daniel Blake, de Ken Loach, que fez muita gente lembrar-se do neo-realismo italiano.
Não ter medo de se meter numa coisa que “podia ser muito má”. Fabrice Luchini saberá desse medo, e quando o vemos, e a Juliette Binoche e a Valeria Bruni-Tedeschi, num Carnaval de composição arcaico, cheio de mesuras, jogos de dedos e tiques de boca, que parece que os vai deitar por terra mesmo quando os corpos, literalmente, levitam, sabemos também do que ele fala: de se estatelar no cabotinismo.
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Não ter medo de se meter numa coisa que “podia ser muito má”. Fabrice Luchini saberá desse medo, e quando o vemos, e a Juliette Binoche e a Valeria Bruni-Tedeschi, num Carnaval de composição arcaico, cheio de mesuras, jogos de dedos e tiques de boca, que parece que os vai deitar por terra mesmo quando os corpos, literalmente, levitam, sabemos também do que ele fala: de se estatelar no cabotinismo.
E quando Bruno Dumont, realizador, diz ter descoberto que a “grosseria” é uma forma de “purga” e que com ela se chega a uma “delicadeza” que diz o essencial daquilo que somos, isso não diminui o risco que é Ma Loute, regresso à competição de Cannes de um cineasta sem medo, que em 1999 foi um dos involuntários protagonistas de um escandaloso (para alguns) palmarés, quando o seu L’Humanité recebeu o Grande Prémio do Júri e prémios de interpretação, masculina e feminina, para os seus actores não profissionais. Os outros protagonistas do escândalo foram os irmãos Dardenne, com Rosetta, que receberia a Palma de Ouro. Assim se consumava uma invasão proletária em Cannes.
Há proletários em Ma Loute, e de novo são interpretados por não-profissionais. De um lado, neste Norte de França do início do século, temos uma família burguesa, os Van Peteghem (os comediantes Luchini, Binoche, Bruni-Tedeschi – naturalmente finos? –, com os seus segredos de incesto e toda a sua impotência). Do outro, uma família de pescadores, os Brufort ( bloco inamovível, rugoso, teimoso), que também tem os seus segredos: por exemplo, são antropófagos. São estes que se vão atirar àqueles, mesmo que haja uma possibilidade de graça que é o amor impossível entre dois jovens dos dois clãs, e mesmo que tudo, ou seja, os corpos que vão desaparecendo, seja presenciado, mas de forma demasiado incompetente, por uma dupla de polícias, um gordo como um balão e outro fino como um espargo, tal como Laurel & Hardy.
Temos então programa teórico aqui, temos confronto de classes sociais e artísticas, temos toda uma tradição do actor francês de prestígio a ser canibalizada pelos não-profissionais – o maior canibal é no entanto Dumont, que devora René Clair, Vigo, Tati ou Pierre Étaix. Sobre isto, e sobre esta aliança entre Karl Marx e o burlesco, o realizador diz algo que não é nada desconcertante e ilumina o que se está a passar com ele desde O Pequeno Quinquin, a série televisiva que em 2014 foi vista, na Arte, por 1,5 milhões de espectadores: é que o burlesco, que ele entretanto descobriu, faz estilhaçar qualquer tentativa de fazer Sociologia e por isso torna-se imediatamente Filosofia. Reforça-o de outra forma: que sendo a comédia não uma arte menor mas um “falhanço do drama”, como um sucedâneo que então se interpõe, e podendo ele coexistir pacificamente com a violência extrema, isso permite incluir-nos a todos, dizer alguma coisa sobre quem somos, “porque somos ao mesmo tempo génios e cretinos”.
Ma Loute é descendência de O Pequeno Quinquin, esse maravilhoso objecto de 2014 com que Dumont renovou a sua metafísica, que andava desbotada há vários filmes. O burlesco já lá estava nos anteriores – é ver o polícia de L’Humanité, por exemplo. Tratava-se então de, com a aparência de ligeireza, sublinhá-lo para continuar a mergulhar no coração do Mal. Tendo havido, ainda assim, limites fixados no território televiso, Dumont sentiu que não os havia no cinema – o burlesco, diz ele, pede mesmo mais cinema, mais transfiguração formal. Ficou mais livre para investir no Carnaval, envolvendo-se com o que diz serem as tradições e os rituais da grosseria mascarada da sua Bailleul natal. Que, em Ma Loute, comédia sempre deslocada, com humor sempre desencontrado, realizada por um homem do Norte de França, é então um teatro universal da nossa trágica humanidade.
Combate de morte
Há algo de escandalosamente ancestral – estamos ainda no combate de morte entre ricos e pobres – em I, Daniel Blake, de Ken Loach (competição). É um filme sobre a pobreza, sobre os que povoam os bancos de alimentos, sobre o limbo a que é condenado Daniel Blake, um marceneiro de 59 anos de Newcastle que sobreviveu a um ataque cardíaco – não pode trabalhar, segundo os médicos – mas que não vai sobreviver à burocracia do Estado Social. Loach tem hoje 80 anos, filma há cinco décadas. Dizia-se que O Salão de Jimmy, que realizou em 2014, seria provavelmente o seu último filme. Não foi, e mesmo que o seja I, Daniel Blake, este fica já como um dos seus grandes: um filme profundamente indignado com a devastação social e humana e simultaneamente de uma pureza de olhar e de um engajamento a pedirem reacção urgente (conseguiu aqui desencadear uma enorme emoção).
Fez, e bem, muita gente lembrar-se do neo-realismo italiano, pela forma como o desespero pode estar na origem de um cinema tão engajado e tão delicado. Tendo sido inicialmente pensado a preto e branco, ideia que depois Loach abandonou, está nele, na delicadeza das relações íntimas, por exemplo, que contraria toda a violência da retórica social (Daniel, interpretado por um stand-up comedian, Dave Johns, que é de uma justeza e de uma nobreza todas deste mundo, encontra na sua via sacra uma mãe solteira e os seus dois filhos), algo de arquetipicamente humano: o nosso melhor, a nossa luz, o nosso pior, as nossas sombras. É um dos melhores de Ken Loach.