Cannes abre com a rotina de Woody Allen: Café Society

Depois de uma fracassada experiência no ano passado de abrir o festival com um filme "social", Cannes jogou nesta edição pelo seguro: Woody Allen. Mas o seu filme é uma esquecível miniatura.

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Ele tem 80 anos, mas nem consegue acreditar nisso. Sente-se jovem. Come bem, faz exercício, os pais morreram quase centenários, está-lhe nos genes. Mas diz que sabe que pode um dia acordar numa cadeira de rodas e então alguém vai dizer: “Olha, aquele ali era o Woody Allen, fazia filmes.” Enquanto isso não acontece, e enquanto lhe continuarem a dar dinheiro, ele continua. Olhem, este era Woody Allen a falar nesta quarta-feira em Cannes, continua a fazer filmes (tem sido prolífico, praticamente um por ano nas últimas quatro décadas) e apresentou o último, o seu 46.º, Café Society, na abertura (fora de concurso) da 69.ª edição do festival.

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Ele tem 80 anos, mas nem consegue acreditar nisso. Sente-se jovem. Come bem, faz exercício, os pais morreram quase centenários, está-lhe nos genes. Mas diz que sabe que pode um dia acordar numa cadeira de rodas e então alguém vai dizer: “Olha, aquele ali era o Woody Allen, fazia filmes.” Enquanto isso não acontece, e enquanto lhe continuarem a dar dinheiro, ele continua. Olhem, este era Woody Allen a falar nesta quarta-feira em Cannes, continua a fazer filmes (tem sido prolífico, praticamente um por ano nas últimas quatro décadas) e apresentou o último, o seu 46.º, Café Society, na abertura (fora de concurso) da 69.ª edição do festival.

É a terceira vez que o festival o escolhe para abrir, depois de Hollywood Ending (2002) e Meia-Noite em Paris (2011) – considerado uma das mais bem-sucedidas subidas da cortina no festival –, se não se contar com Histórias de Nova Iorque (1989), que era filme colectivo, realizado por Allen, Francis Coppola e Martin Scorsese. Mas Woody estreou-se na Croisette em 1979, em competição, com o glorioso Manhattan. Será injusta a comparação, mas aqui vai: se pensarmos no fogo-de-artifício que nos arrebatou para o espectáculo de um mundo em expansão, é como se tivéssemos o privilégio de assistir a um fenómeno a acontecer em directo (acontece de cada vez que se revê Manhattan), mas Café Society não é mais do que uma esquecível miniatura.

Embora isto não seja fase de cadeira de rodas, e tenha até algumas “primeiras vezes” (a primeira vez que Woody filma em digital e que trabalha com o director de fotografia Vittorio Storaro, depois do encontro no Histórias de Nova Iorque, que assim se junta ao bouquet alleniano onde já estão Gordon Willis, Carlo di Palma ou Sven Nykvist...), a relação que se tem hoje com o cinema do realizador é de pura perda. Dói, por exemplo, ler numa entrevista (à Hollywood Reporter) que nos seis ou oito filmes que ele não “apagaria” da sua obra estariam A Rosa Púrpura do Cairo, Match Point, Maridos e Mulheres, “provavelmente” Zelig, “provavelmente” Meia-Noite em Paris, mas não Manhattan ou sequer Annie Hall, filmes de que ele diz não se “lembrar muito bem”.

Ora, são esses precisamente os “nossos”, porque são aqueles que fizeram as nossas vidas. Mas há muito que Allen está noutra, com fôlego para pouco mais do que a vinheta, decididamente já sem paciência para o big bang. (É como se, de facto, o cinema dele se tivesse esquecido de alguma coisa.) O que é tanto mais desconcertante quanto prometia, nas suas intenções, um filme que se expandiria como um romance (é a voz dele que narra, aliás) a partir da personagem principal interpretada por Jesse Eisenberg: um jovem que parte para Hollywood à procura de aventura e dinheiro, e ali faz a sua aprendizagem e tem uma decepção amorosa, com o encontro com Kristen Stewart.

Assim, Café Society movimentar-se-ia entre Nova Iorque e Hollywood (isto nos anos 1930), um ir e vir que estaria sempre a ser alimentado pelas histórias da família judaica de Eisenberg (sim, novo duplo de Allen, já é rotina) e da sua vizinhança com o mundo do crime, pelas histórias das estrelas glamorosas e da sua vizinhança com o logro e com a decepção em Los Angeles, e, devido ao regresso da personagem de Eisenberg a Nova Iorque, onde se reinventa, com o refinado e cosmopolita microcosmos que ali se criou na primeira metade do século XX. Mas em vez de um filme em movimento, Café Society deixa-se encerrar nas piadas, em versões do cepticismo alleniano que podem até soltar gargalhadas (“a vida é uma comédia escrita por um sádico autor de comédias”) mas que soam a rotina de comediante, e no namedropping ilustrativo – o que ajuda a fixar o filme no formato da comédia de situação com tom nostálgico em fundo, sim, mas não é mais do que colecção de variações do que já conhecemos.

 

"Apanhar os cacos"

Todas estas razões valem para explicar a escolha de Café Society como filme de abertura. Em 2015, os programadores quiseram fazer gala com um filme que não se parecesse com um filme de abertura, La Tête Haute, de Emmanuelle Bercot, em territórios do filme social. Os resultados não foram os esperados, a recepção foi bastante mitigada – nem serviu o espectáculo puro e duro nem tinha a consistência e a resistência do filme "de autor". Num festival que vive, necessária e contraditoriamente, do equilíbrio entre a frivolidade e as possibilidades da luz da arte, Woody Allen é território (re)conhecido.

E se calhar a selecção oficial de Cannes 2016 tem de facto muito que ver com o balanço de Cannes 2015. Depois de uma selecção competitiva no ano passado, muito criticada por não ter consciência do que estava a deixar fugir (Miguel Gomes, Arnaud Desplechin ou Philippe Garel foram considerados “acontecimentos”, mas tudo isso aconteceu na alternativa Quinzena dos Realizadores), a colheita deste ano está a ser vista como uma tentativa de reparação dos danos causados (o Libération diz mesmo que Thierry Frémaux, delegado-geral, e Pierre Lescure, presidente, estão a tentar “apanhar os cacos” do que se estilhaçou no ano passado).

Talvez seja essa, então, a sensação de um compromisso determinado a apaziguar que parece começar nesta quarta-feira a ser jogado na Croisette. Entre os 20 filmes a concurso, estão os suspeitos do costume, como se fossem já veterana mobília mais ou menos danificada (Almodóvar, o eterno pretendente a uma Palma de Ouro que nunca teve, Olivier Assayas, os irmãos Dardenne, sempre potenciais vencedores de uma terceira Palma, Ken Loach ou Jarmusch...), estão os “filhos” do festival, por cujo reconhecimento Cannes se assume responsável (casos de Xavier Dolan, criado e premiado aqui, num ex aequo com Godard em 2014, recorde-se, ou de Cristian Mungiu, que levou a Palma de Ouro em 2007 por 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, momento de oficialização de uma chamada "Nova Vaga Romena") e estão os “novos”, isto é, aqueles a quem foi dada uma enorme plataforma de visibilidade, caso dos novos filmes de Alain Guiraudie (Rester Vertical, de um cineasta que fez um dos acontecimentos do Un Certain Regard de 2013, O Desconhecido do Lago) e do brasileiro Kleber Mendonça Filho, o realizador do lindíssimo O Som ao Redor, que apresenta o já muito aguardado Aquarius, com Sónia Braga – são, obviamente, gestos que se querem tentativas de ganhar de volta a cumplicidade da cinefilia mais pura e dura.

Como o é a Palma de Ouro de Honra a atribuir, no dia 22, a Jean-Pierre Léaud, actor, símbolo, ícone, e acima de tudo figura inaprisionável, que protagoniza A Morte de Luís XIV, do catalão Albert Serra, realizador, no mínimo, idiossincrático que vê dessa forma o seu filme (co-produção da Rosa Filmes), programado numa sessão especial, iluminado com uma intensidade para muitos impossível.

Há dois “consagrados” no concurso cuja selecção é também emblemática: Bruno Dumont e Paul Verhoeven. O primeiro recebera já um Grande Prémio do Júri, em 1999, por L’Humanité, juntamente com prémio aos intérpretes (que eram não profissionais), mas esse foi um gesto considerado excessivamente radical (Cronenberg presidiu a esse júri) e o cinema de Dumont nunca se deixou verdadeiramente domesticar pela distinção.

Nunca “pertenceu”, mas eis que regressa à competição depois de uma das suas obras-maiores, a série P’tit Quinquin, ter sido um sucesso (1,5 milhões de espectadores no canal Arte, em 2014), e com um filme, Ma Loute, que mistura actores não profissionais com estrelas de cinema, Juliette Binoche, Fabrice Luchini ou Valeria Bruni-Tedeschi, numa espécie de reino de todos os possíveis – mas atenção, é luta entre ricos (as vedetas) e pobres (os não profissionais), é história de amor e de antropofagia, e não é difícil imaginar quem come quem...

Já Verhoeven está nesta competição num momento de reavaliação da sua carreira (o recente ciclo que lhe fez o IndieLisboa foi apenas um dos sinais do que está no ar) e chega como “autor” com uma vedeta que é a “autora” dos seus próprios riscos, Isabelle Huppert: chama-se Elle o filme, aventura de uma mulher que procura o mascarado que a violou.

Um júri presidido por George Miller anunciará no dia 22 esse prémio tão apetecido, a Palma de Ouro. Em 2008, um “pequeno” filme, A Turma, de Laurent Cantet, gerava uma simpatia consensual no festival e recebia a Palma de Ouro. Um cineasta discreto era iluminado por potentes holofotes, foi um ano inteiro, depois, em promoção, viagens, entrevistas. “Em determinado momento deixámos de suportar falar no filme e na alegria de ter tido a Palma de Ouro”, contou o realizador ao Libération. “É como se fôssemos colocados em órbita, acabei por sentir uma solidão tremenda, uma apatia total.” A carreira de Cantet, como se foi vendo, ainda não se refez dessa Palma de Ouro. Que o jogo comece!