"Não é um papel. Quero ser o tipo. Vou com ele”
Entre jouer la comédie e encarnar personagens, Vincent Lindon não brinca: escolhe “encarnar”.
Telefonema de um amigo a Vincent Lindon, antes de almoçarem, tal como contado em Paris num dia de Janeiro:
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Telefonema de um amigo a Vincent Lindon, antes de almoçarem, tal como contado em Paris num dia de Janeiro:
“ —Tudo bem?
— Sim, porquê?
— Porque é que és sempre esses tipos, porquê sempre esses filmes? Tem cuidado, ocupa-te de ti.”
E depois, aos jornalistas, Vincent — que já recebera o prémio de interpretação de Cannes, por A Lei do Mercado, e estava à beira de ser distinguido com os Césares, os prémios da indústria cinematográfica francesa, pelo mesmo filme — rematava: “É verdade, fico com dez por cento de cada personagem em mim. Quando alguém testemunha um ambiente terrível, isso ficará para sempre no seu inconsciente. É como o big bang. Mesmo se somos actores e estamos a interpretar, é com os nossos olhos que vemos, é com os nossos ouvidos que ouvimos. E quando regresso a casa tudo fica na minha memória para sempre.”
Isto, por outras palavras, e referindo-se a Thierry, a personagem do desempregado de A Lei do Mercado, o belíssimo filme de Stéphane Brizé: “Não foi difícil interpretar um tipo que sofre. O que é difícil é tudo em volta, carregar o problema do desemprego, o que é difícil é mesmo os lugares onde filmámos, as pessoas que conhecemos — porque é difícil perceber que se é privilegiado.”
Uma coincidência reveladora: nesse dia de Janeiro em que falava à imprensa em Paris, Vincent, 58 anos, promovia na TV francesa o seu último filme, Les Chevaliers Blancs, de Joachim Lafosse — história de associações humanitárias e de adopção de crianças africanas vítimas da guerra. Num telejornal nacional, era recebido como herói moral do cinema francês. A sê-lo, é o heroísmo do homem normal, melancólico e a vencer amargas vitórias — se se recordarem de Welcome (2009), de Philippe Lioret (professor de natação, ajudava um imigrante curdo a atravessar o canal de França para Inglaterra), ou Les Salauds, de Claire Denis (marinheiro, vinha de longe, como um vingador, para resolver os problemas da família, que era o verdadeiro problema).
O heroísmo de Lindon — Brizé fala dele como representando a rectidão do homem normal, e é por isso também que tanto evoca, como intérprete, uma tradição extinta dos actores que eram blocos unos de tensão e valores, tudo isso sem palavras — é angustiado. Quase que se diria: banhado por um sentimento de culpa, porque antecipa o mal-estar do regresso a casa. “Em todo o mundo é o mesmo problema. A diferença entre ricos e pobres é cada vez maior. Quando chegamos ao fim do nosso trabalho e regressamos a casa, regressamos ao nosso mundo, é complicado para a nossa consciência. Somos como voyeurs. Aproveitamo-nos do mundo. Por isso é importante deixar uma memória de como os nossos contemporâneos vivem. Daqui a 20 anos alguém vai dizer depois de ver A Lei do Mercado: “Assim era a França.” A minha história é pequena, é ficção. Mas a grande História é o que está atrás: a vida em França. Todos os bons filmes são aqueles que fazem a transição entre as páginas da cultura e as páginas da sociedade.”
Entre jouer la comédie e encarnar personagens, Vincent não brinca: escolhe “encarnar”. “Não sou actor suficientemente bom para interpretar. Entre personagem e actor deve haver um acordo: ‘Eu dou-te o meu corpo e o meu melhor para te encarnar. O que é que me dás? O que é que eu tiro de ti que me dá um pouco a tua vida?’ É uma troca. É um instrumento pessoal. Temos de estar em harmonia com a personagem. Não é um papel. Quero ser o tipo. Vou com ele.”