Infectadas pelo crime

Garotas partem à conquista dos baldios do bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Querem sangue, querem sexo, querem histórias. O filme sangra, canta e dança com elas. Mate-me por Favor, um dos títulos imperdíveis da competição do IndieLisboa

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O que tem o andebol? Tem contacto físico, violência e tesão, responde Anita Rocha da Silveira. No Brasil, é o jogo das raparigas (os rapazes ficam com o basquetebol, o contacto físico é rigorosamente vigiado). Anita fez uma curta sobre essa afirmação feminina, Handebol, 2010. Tinha feito outra sobre o suor, O Vampiro do Meio-Dia (2008). Mate-me por Favor, a sua primeira longa que participa na competição internacional do Indie, mantém o andebol sobrepõe-lhe a dança, e, em vez do suor da excitação sexual, há o sangue a excitar o sexo. “Morde-me”, dizia-se numa curta. Agora sabe-se o que pede esta longa.

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O que tem o andebol? Tem contacto físico, violência e tesão, responde Anita Rocha da Silveira. No Brasil, é o jogo das raparigas (os rapazes ficam com o basquetebol, o contacto físico é rigorosamente vigiado). Anita fez uma curta sobre essa afirmação feminina, Handebol, 2010. Tinha feito outra sobre o suor, O Vampiro do Meio-Dia (2008). Mate-me por Favor, a sua primeira longa que participa na competição internacional do Indie, mantém o andebol sobrepõe-lhe a dança, e, em vez do suor da excitação sexual, há o sangue a excitar o sexo. “Morde-me”, dizia-se numa curta. Agora sabe-se o que pede esta longa.

Bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Bolhas sem história, os condomínios, e os baldios à espera de ficções. Um crime acontece (aconteceu lá um nos anos 1990, lembram-se, uma actriz de novela morta pelo partenaire e pela mulher dele?), e as raparigas – Bia à cabeça – começam a delirar com o sangue. O vazio da Tijuca pede para ser violado, pede histórias, pede sangue, pede histórias, pede sangue... e elas partem à conquista.

Era num espaço assim, num não-lugar que as experiências arquitectónicas tentaram inocular com histórias (a banlieu francesa) que Céline Sciamma fazia corpo com um Bando de Raparigas (2014). O que se passa em Mate-me por Favor é de outra ordem. O filme já não se limita a filmar o sangue, o filme sangra – e canta, e dança, E agora algo não completamente diferente mas mais delicado: sendo um filme tão artificioso, é simultaneamente generoso porque se suspende, a espaços, para se dar a ver como um documentário do que se passou: cria espaço e tempo para falar da relação e da aprendizagem com as suas actrizes, para lhes dar palco, para elas, olhando-nos nos olhos, mostrarem o que valem – viram filmes de Lynch, viram o Carrie, de Brian de Palma...

Sensação curiosa tendo visto as sua curtas, O Vampiro do Meio-Dia (2008), Handebol (2010), Os Mortos-Vivos (2012): estreia-se no formato longo para acabar com a adolescência. Sem saber o que vai fazer a seguir, parece-me que as suas adolescentes e o andebol acabam aqui.
Sim. Quando escrevi Mate-me por Favor, senti necessidade de fechar o ciclo que se iniciara em 2007. Como se fosse o final de uma pesquisa. Quero mudar de tema, quero mudar de faixa etária.

Há uma reorganização, elementos, motivos das curtas – variações de diálogos (o “mate-me” aqui é um “come-me” numa das curtas), sequências como aquela plongée sobre adolescentes deitadas a delirar com os crimes – e que são baralhados de novo, como um jogo.
A personagem Bia (Valentina Herszage) é parecida com a personagem de Handebol, repeti um diálogo, a personagem do irmão da Bia, João (Bernardo Marinho), é, desta vez mais exagerado, a personagem de Os Mortos-Vivos. Há esse plano de que fala, é verdade, mas tive orçamento para fazer um zoom out que antes não tive. Sim, há coisas que ressoam, mas não é um problema.

Não é... Como começou esta relação com a adolescência?
Não fui para a faculdade de cinema, não havia sequer no Rio, havia uma Faculdade de Comunicação Social onde se estuda um pouco de cinema, de publicidade, é uma faculdade para onde vão os indecisos [risos]. Tinha 17 anos, mas antes do primeiro ano tinha a certeza de que queria trabalhar com cinema e comecei a fazer cursos paralelos. Mas não me via como realizadora, tinha necessidade de emprego fixo, trabalhar com uma produtora – os meus pais são professores de Matemática, nada que ver com cinema, e sentia deles uma certa cobrança por não ter emprego regular.

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Nessa altura, uma das minhas melhores amigas matou-se. Tinha 20 anos. A partir daí passei mal, mas consegui sair dessa morte tentando perceber as razões que podiam levar alguém ao suicídio. Ela era alguém que vivia tudo de modo muito intenso, foi algo que ninguém esperava. Lembro-me de ler uma frase: “Ser jovem é querer viver sem deixar de morrer”, é viver tudo de modo intenso. Isso ficou na minha cabeça, e foi com isso que depois desenvolvi Handebol.

Nesse tempo não estava a fazer nada em Comunicação, precisei de me dar tempo, e fui fazer um trabalho de dramaturgia e acabei por desenvolver as bases do roteiro de O Vampiro do Meio-Dia, que seria a primeira curta. Fiz mais como exercício para me animar. Não sabia nada de festivais, vi um site com datas, mandei, o filme ganhou prémios e circulou pelo Brasil. Mas não havia nada disso de querer ser realizadora, estava completamente perdida na faculdade. Mas, com a morte dessa amiga, a vida dela inspirou-me e fez-me pensar a minha e largar uma certa segurança que eu esperava e encarar o dia-a-dia mais do que o longo prazo. E isso deu-me vontade de regressar a memórias, sensações, emoções, e é isso que meto nos filmes. Tudo o que vivi e filmei foi no Rio, a cidade em que vivo, o meu processo funciona tratando do que me é familiar. De certo modo, a minha segurança vem de passar por algo que já vivi. É óbvio que há aqui um serial killer que exagero de mil maneiras, mas há emoções por que passei, é a partir daí que me inspiro.

Que papel teve um espaço como o da Barra da Tijuca, no Rio, para desencadear esta obsessão pelo sangue? Houve a memória de um crime real, marcou-a o assassinato da actriz de novelas Daniella Perez [assassinada por Guilherme de Pádua, que era o seu par romântico em De Corpo e Alma, e por Paula Thomaz, esposa de Guilherme, em 1992].
Eu devia ter uns sete anos, e as fotos [do corpo encontrado na Barra da Tijuca] apareceram na imprensa. Toda a minha geração ficou marcada por isso. Foi o primeiro contacto próximo com a morte. Eu via todos os dias aquela actriz na novela. Era como uma parente. A morte brutal deu mil reviravoltas, porque não se sabia quem era o assassino e depois descobriu-se que foi um pacto macabro. Essa mentira marcou-me.

Cresci na Barra, era lá onde tinha os supermercados mais baratos. Era a crise da era Collor [de Mello, Presidente do Brasil de 1990 a 1992], lembro-me de ir com os meus pais fazer as compras do mês. Quando saí da Barra, muitos amigos mudaram-se para lá e tentei manter o contacto, mas fui perdendo, porque era distante, e eles metiam-se dentro da bolha do condomínio e do colégio e de lá não saíam. Lembro-me de uma amiga que foi morar para um prédio do primeiro condomínio construído, ainda pouca gente tinha mudado para lá, fui passar o fim-de-semana e era eu e ela vagueando pelo prédio, só havia câmaras de vigilância... o dia inteiro vagueando pelos elevadores, pela piscina, uma coisa solitária. Depois, as aulas começaram, nunca mais a vi.

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Esse espaço vazio é como se estivesse a pedir para ser preenchido. As raparigas dos seus filmes estão sempre a inventar, a acrescentar, a efabular. A Barra da Tijuca é um espaço receptivo a essa fantasia.
É um espaço completamente novo, e onde filmei não parou ainda de se expandir. É uma coisa sem história. Em outras cidades do Brasil estão a destruir casas para construir prédios, ali não, o espaço é completamente novo, sem tradição, sem história. O que de facto combina com estas personagens que estão inventando o seu mundo. A paisagem é brutal, completamente nova, os jovens circulam sozinhos e inventam a suas próprias vidas – encantou-me essa ideia.

Tem-se falado deste filme como de terror. Nunca tive essa sensação. Nem em nenhum dos filmes anteriores...
Sim, são filmes sobre a adolescência.

Mas é verdade que em todos eles as raparigas são mais fortes do que os rapazes e há vampirismo associado a essa força, Em Mate-me por Favor, quando uma das miúdas beija o cadáver da assassinada, levanta a cabeça com o movimento de quem acabou de morder. Numa curta, uma rapariga diz ao namorado: “Morde-me.” O irmão de Bia, pelo contrário, vai ficando mais fraco, como se estivesse a ser sugado pela energia das raparigas, que se vão fortalecendo com as suas fantasias.
O meu desejo inicial era construir personagens femininas fortes, se calhar por falta delas numa cinematografia como a brasileira. Construir personagens que vão contra a moral vigente. A Bia deixa-se guiar pela vontade do próprio corpo, e seguir os desejos da carne é o que faz o vampiro, aquele ser desejante, que quer sexo, que se quer alimentar do outro, pessoa de puro desejo. Queria personagens que fossem desejo, sempre cumprindo o que o corpo manda fazer. O irmão é o oposto da Bia. Ela vai para o ar livre, caminha nas ruas, experimenta tudo no corpo, já ele está a perder-se na mente. Ele perde-se no computador. Ele é um cara mais típico da minha geração, não sai de casa, meio sem ideias, sem projectos, sem energia, e cria uma fantasia com o computador e com as redes sociais. Por todas as personagens passa uma certa ideia de vírus, todos se vão contaminando pelo crime, ela de modo mais claro, através do beijo, ele através do computador, vai-se perdendo na mente.

Na curta Vampiro do Meio-Dia, há planos em que o suor escorre dos corpos, nos autocarros, por exemplo. Há um plano em Mate-me por Favor em que escorre não suor, mas sangue, e já não só no filme mas sobre o filme. Já não é o filme que mostra o que excita, é o filme que se excita. Isto é o que se chama um pacto com as suas personagens.
Todo o meu trabalho com o director de fotografia foi tentar espelhar o interior das personagens, pelos planos, movimentos e cores. O plano do sangue a escorrer surgiu-me à última hora, na véspera da rodagem: pedi um vidro e que comprassem mais sangue, e fizemos dois takes, o segundo é o que ficou.

Há mais: há momentos em que o filme parece parar, para elas, quando dançam, mostrarem o que tinham aprendido consigo e com a história.
Acho que sim, sobretudo se se refere aos planos frontais em que elas olham para a câmara. Desde o início que tinha essa imagem na cabeça, foi uma briga enorme com o director de fotografia para que ele entendesse. A desculpa era: “É uma metáfora do selfie.” Mas era mentira, eu queria criar essa intimidade plena com elas. As pessoas podem dizer: “É o selfie, é isso, é aquilo”, mil razões... mas não, era para criar intimidade com elas... Não há adultos no filme por isso: para dar espaço ao mundo interior delas, às suas fantasias e aos modos como se relacionam com o espectador.

Outra coisa importante foi a cor. O vermelho estava lá, tinha de entrar, e o roxo, que no Brasil é a cor da viúva. Que tem também um lado do vampiresco. Era importante não cair nas cores pastéis e acinzentadas. Foi o que fiz no Handebol e arrependo-me. Pensei que se as personagens estavam a passar por conflitos, era mais bonito desbotar. Arrependi-me quando vi o filme pronto, porque entrou para um caminho mais sem vida quando as personagens transbordavam dela. As pessoas surpreendem-se com as cores do Mata-me... “Não é muito colorido?” Sim, era isso que queria.

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Quanto tempo demorou no casting?
Já tinha uma experiência com o Handebol. Fiz testes com raparigas que actuavam e pu-las a jogar andebol. Foi demorado, 30 garotas para encontrar protagonistas. Na pré-produção do Mate-me... numa reunião em Julho soube que tinha de filmar no início do ano seguinte. Tive de começar o casting logo, e por causa das novelas da Globo há muito adolescente que quer ser actor, há muitos cursos de teatro. Fiz uma pesquisa, vi aulas e anunciei no Facebook. Em menos de duas semanas, 500 emails. Queria testar gente entre 13 e 19 anos. Duzentas e poucas garotas no primeiro teste, de dez minutos: dei-lhes três monólogos que não tinham nada a ver com o filme. Conversámos, e depois elas faziam o monólogo. Separei 50 para um segundo teste, aí já com cenas do filme, depois improvisação em grupo, com actividades para ver como interagiam, quem roubava cena às outras... Num teste final, cheguei às quatro. E conversei com os pais das meninas, porque era preciso explicar tudo, para ver a reacção deles. Tudo fácil e tranquilo. Eu acho que esta geração nova é mais relaxada com as questões do corpo do que a minha.

E como se processou a educação cinéfila?
Nos testes tudo era exagerado, as referências delas eram as novelas, o modelo naturalista, e o Glee. O primeiro passo foi começar a mostrar filmes para passar outros modelos, actores que não faziam quase nada e passavam todos os dilemas da personagens. Ao trabalhar com adolescentes, o importante é elas irem muito seguras, sem dar espaço à improvisação. Quando alguma delas dizia: “Esta frase é muito velha, ninguém da minha geração diria isso”, alterávamos para deixar que as coisas fluíssem e que elas ficassem tranquilas. O set é para ser tranquilo. Não é para se estar no personagem 24 horas, é para divertir, estávamos a rodar com 47 graus.

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Nas sequências de dança, nota-se orgulho, como se estivessem a mostrar a sua aprendizagem...
Ensaiámos muito... (risos)

O que tem o andebol?
É o desporto de garota aqui.

Se fosse o basquetebol, seria diferente?
Ninguém compra a bola aqui porque é caro comprar bola. Os garotos jogam futebol, as raparigas andebol. O andebol tem essa coisa do contacto humano que os outros desportos não têm.

A agressividade...
Sim, no basquete você encosta na mão do adversário e tem uma falta. No andebol não, você pode agarrar, é um desporto de contacto extremo. Explorei isso na curta Handebol, mas lembro-me que na minha juventude as pessoas saíam com a cara quebrada. Havia num certo prazer nisso, de enfrentar a outra, de dar uma bolada. Essa questão da colisão dos contactos só no andebol, que às vezes passa para a agressividade, às vezes para a tesão. É deitar para fora a energia, seja a raiva, seja sexual.

Numa versão inicial do argumento, havia uma trama policial que identificava o assassino. Abandonou isso... Quem era o assassino?
[Risos] Na verdade, a história inicial era mais inspirada no caso da Daniella Perez. O casal que se está sempre a beijar no colégio era o casal assassino. Nunca foi o irmão da Bia... [risos]

... sempre pensei que fosse, porque parecia definhar, o que era bonito: matava e ia desaparecendo...
... era um argumento diferente. A personagem do irmão era mais desenvolvida, ficou muita coisa de fora na montagem e talvez por isso a ambiguidade tenha ficado ligada à personagem. E também o modo como o Bernardo interpretou o irmão. Mas assumo essa ambiguidade. Havia uma versão em que podiam ser vários assassinos. Do mesmo modo que a Bia quer morrer, outros querem matar. Todas as pessoas são afectadas por aquele crime, querem ser parte daquilo tudo. Há vestígios disso, mas no geral as pessoas pensam que o irmão pode ser o assassino, a montagem pode levar a isso.

Próximo projecto?
Estou a escrever sobre o mundo das cirurgias plásticas no Brasil. Fascina-me esse mundo extremo. Há outro sobre a situação política do Brasil. O que mais me mata é a total falta de tolerância. A direita é intolerante contra todos os que pensam diferente. Os relatos de pessoas agredidas na rua porque saíram vestidas de vermelho. Acho que o Governo do PP fez uma série de besteiras, mas o processo de impeachment tal como está a ser feito é inconstitucional. Não há razão, é um golpe contra a democracia por parte das pessoas que não ficaram satisfeitas com os resultados das eleições. É uma classe média raivosa porque agora a empregada doméstica pode viajar de avião e porque o porteiro consegue comprar quase as mesmas coisas. A imprensa daqui dominante sempre foi a favor desse golpe. Não sei dizer o que vai acontecer nos próximos meses. A maioria do congresso é de direita, o impeachment será inevitável.

O Brasil sempre permitiu um imaginário de futuro, mesmo que adiado, mas sempre em potência. Agora pesam mais os fantasmas do passado...
É, porque as pessoas que vão para a rua não são tão diferentes das pessoas que foram para a rua na Marcha da Família com Deus pela Liberdade nos anos 1960 [contra uma suposta ameaça comunista]. O meu pai foi preso e torturado na ditadura e sente na rua o mesmo clima desse tempo. A grande intolerância pegou-me de surpresa. A raiva do outro é muito grande e está impregnando isso tudo.