Resposta a Miguel Sousa Tavares
Para prender ou libertar Sócrates, é preciso esperar pelos tribunais. Para analisar e criticar Sócrates, basta ler jornais.
No último Expresso, Miguel Sousa Tavares (MST) criticou o meu texto intitulado “Os interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?”. Eu defendi que sim, em primeiro lugar, por estarem em causa crimes envolvendo um ex-primeiro-ministro no exercício das suas funções; em segundo lugar, por esse ex-primeiro-ministro ter afirmado inúmeras vezes que não existem motivos para estar a ser investigado. MST discorda de mim. E embora tenha a simpatia de não me incluir no grupo daqueles que “conviveriam sem problemas com os métodos instrutórios da PIDE”, acusa-me, em compensação, de não me ter dado “ao trabalho de pensar a sério antes de escrever”.
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No último Expresso, Miguel Sousa Tavares (MST) criticou o meu texto intitulado “Os interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?”. Eu defendi que sim, em primeiro lugar, por estarem em causa crimes envolvendo um ex-primeiro-ministro no exercício das suas funções; em segundo lugar, por esse ex-primeiro-ministro ter afirmado inúmeras vezes que não existem motivos para estar a ser investigado. MST discorda de mim. E embora tenha a simpatia de não me incluir no grupo daqueles que “conviveriam sem problemas com os métodos instrutórios da PIDE”, acusa-me, em compensação, de não me ter dado “ao trabalho de pensar a sério antes de escrever”.
Ora, o meu pensamento pode estar errado, viciado ou ser simplesmente estúpido, mas eu pus nele a máxima seriedade ao meu alcance, na medida em que este tema revela à exaustão as tremendas fragilidades do nosso espaço público e a existência de uma cultura de respeitinho no escrutínio da actividade política. Tal deve-se, em boa parte, à forma como insistentemente se exportam as regras do sistema judicial para o palco mediático, por razões de estratégia e de retórica. A presunção de inocência e o segredo de justiça são um interruptor que se liga ou se desliga consoante a nossa simpatia e a nossa distância geográfica em relação aos envolvidos. Se eu não gosto do político A e dele me sinto ideologicamente distante, comento as fugas ao segredo de justiça e suspendo o meu amor à presunção de inocência. Se eu gosto do político B ou dele me sinto ideologicamente próximo, acendo o meu amor à presunção da inocência e deploro as fugas ao segredo de justiça.
Repare-se como a exigência muda substancialmente consoante estamos a falar de Portugal ou da Rússia. Em Portugal, mesmo depois de tudo aquilo que já lemos e ouvimos, há quem defenda que é preciso esperar pela decisão dos tribunais para concluir se o dinheiro é de Carlos Santos Silva ou de José Sócrates. Mas quando olhamos para aquilo que os Panama Papers revelam sobre a Rússia, não duvidamos nem por um momento que o dinheiro do violoncelista milionário seja, na verdade, de Putin. É uma presunção de inocência com geolocalização.
Nove vezes em cada dez, a invocação da presunção de inocência esconde o desejo de frear o debate público – “há que esperar pelo que dizem os tribunais”, protestam os defensores de Sócrates. Não, não há. Nenhum de nós tem de colocar nas mãos de um tribunal aquilo que deve pensar sobre um político, ou suspender a sua capacidade de juízo até a sentença transitar em julgado. E isto, lamento, não pode ser confundido com qualquer espécie de desejo de “justiça popular” – é um desejo, isso sim, de debater na praça pública aquilo que se sabe sobre o processo e sobre a actuação de um ex-primeiro-ministro. Para prender ou libertar Sócrates, é preciso esperar pelos tribunais. Para analisar e criticar Sócrates, basta ler jornais.
Escreve MST: “Os meios são justificados pelos fins que anseiam – no caso, a liquidação política e moral de Sócrates ou Lula da Silva.” Essa é uma boa formulação acerca daquilo que nos divide. Não sou eu que estou a atribuir uma “função judicial” ao jornalismo. É MST que está a atribuir uma função jornalística aos tribunais. MST aguarda que a justiça lhe dê autorização para liquidar Sócrates política e moralmente. Lamento, mas esse não é o trabalho da justiça. Esse é um trabalho nosso, enquanto cidadãos. É, aliás, por termos demorado tanto tempo a realizá-lo que Sócrates chegou onde chegou.