Eddie, a águia, conseguiu o que queria. Competiu e não caiu
O esquiador britânico ganhou fama no desporto por ser um perdedor espectacular. A história deu um filme que estreia nesta quinta-feira em Portugal.
Diziam que ele tinha medo de alturas. Que era míope. Que nunca tinha esquiado na vida e que não tinha jeito nenhum para o desporto. Isto (e mais) se dizia de Michael Edwards, um dos mais espectaculares perdedores do desporto moderno. Algumas coisas eram verdade, outras, não. Era verdade, por exemplo, que era míope — os óculos de lentes grossas eram uma evidência da sua curta visão. Mas não tinha medo de alturas. Para se ser saltador no esqui, não se pode ter medo de alturas. E Michael Edwards era um saltador. Era mau. Mas era um deles.
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Diziam que ele tinha medo de alturas. Que era míope. Que nunca tinha esquiado na vida e que não tinha jeito nenhum para o desporto. Isto (e mais) se dizia de Michael Edwards, um dos mais espectaculares perdedores do desporto moderno. Algumas coisas eram verdade, outras, não. Era verdade, por exemplo, que era míope — os óculos de lentes grossas eram uma evidência da sua curta visão. Mas não tinha medo de alturas. Para se ser saltador no esqui, não se pode ter medo de alturas. E Michael Edwards era um saltador. Era mau. Mas era um deles.
Michael Edwards ficou tão famoso que a sua vida até deu um filme, que estreia esta quinta-feira em Portugal, mas não foi com este nome que ficou conhecido. Chamavam-lhe Eddie “The Eagle” (A Águia) e, em 1988, foi ele a “estrela” dos saltos nos Jogos Olímpicos de Inverno, realizados em Calgary. Não porque tenha sido primeiro, mas porque foi último duas vezes. Alguns viram-no como uma vergonha para o desporto que devia ser ignorada, outro olharam para ele como um exemplo perfeito do que deve ser o espírito olímpico. Eddie, “a águia”, não estava lá para ganhar, estava lá para competir e não cair.
Os Jogos de Calgary foram férteis em histórias de “underdogs”. Foi aqui que começou a história dos jamaicanos no bobsleigh (que também deu um filme, “Jamaica Abaixo de Zero”), numa prova em que também participou uma equipa portuguesa (que não deu filme nenhum, mas cuja história o PÚBLICO já contou). E também apresentou ao mundo Eddie, então um britânico de 24 anos que trabalhava como estucador em Cheltenham, cidade do sudoeste de Inglaterra.
Edwards queria ser atleta olímpico e até era um esquiador amador com alguns méritos, na prova de downhill. Em 1984, falhou por pouco um lugar na equipa britânica que iria estar nos Jogos de Lake Placid, mas não desistiu do sonho olímpico. Só que o downhill era uma disciplina demasiado cara para ele e Eddie, sem apoio oficial ou patrocínios, teve de optar por uma modalidade menos dispendiosa. Trocou a velocidade pelos saltos porque era mais económico, mas, também, porque sabia que não ia ter concorrência no apuramento. Não havia mais nenhum britânico que fizesse aquilo.
“Não tinha muito dinheiro e tive de encontrar qualquer coisa que fosse mais barata. Fui ver os saltos e não me pareceu mal”, recorda Edwards. Para se qualificar para os Jogos, Eddie tenha de fazer um salto de 70 metros numa prova da Taça do Mundo, uma distância até bastante acessível. Aqui não estava dependente de nenhum processo de selecção, mas havia um problema. Com toda a sua competência no esqui alpino, nunca tinha feito saltos na vida. Começou pelos saltos a 15 metros e quando passou para os 40m caiu.
Eddie não tinha treinador, nem dinheiro para andar de avião. Só resiliência e engenho. Conduziu a carrinha da mãe pela Europa para participar em provas da Taça do Mundo, teve vários empregos de ocasião — foi babysitter, cozinheiro e trabalhou numa lavandaria, por exemplo —, andou a recolher restos em caixotes do lixo para comer e contava com a boa-vontade e outras equipas para competir. Os esquis eram da equipa austríaca, o capacete foi cedido pelos italianos — o único que tinha estava seguro por um cordel e voou durante um salto — e tinha de usar seis pares de meias para poder usar umas botas em segunda mão bem maiores que os seus pés.
Neste périplo em busca do sonho, também ficou alojado em sítios improváveis. “Houve uma vez que me convidaram para treinar com a equipa finlandesa em Kuopio, mas não tinha sítio para ficar. Um dos treinadores da equipa trabalhava no hospício local como empreiteiro e eles deixaram-me ficar lá um mês, ao custo de uma libra por noite. Conheci alguns pacientes lá, geralmente ao pequeno-almoço. Eles só falavam finlandês e eu nunca sabia se eles estavam a falar sozinhos ou comigo”, contava Edwards ao The Independent, em 2008.
Edwards lá conseguiu fazer uma prova que o colocou bem perto dos mínimos, 69,5m, e a federação britânica aceitou levá-lo aos Jogos. Eddie não sabia, mas já se tinha tornado numa celebridade desportiva internacional. Quando aterrou em Calgary, tinha uma multidão à sua espera que gritava por Eddie, a águia. Mas para chegar até aos fãs sofreu várias peripécias. A sua mala ficou presa no tapete de recolha das bagagens, rebentou e Eddie teve de andar em cima do tapete a recolher a roupa. Depois, tinha de sair do aeroporto, mas até isso foi complicado. As portas automáticas estavam desligadas, era de noite e o incauto britânico foi contra o vidro e partiu os esquis.
Os jornalistas que estavam em Calgary queriam contar a sua história. Cada conferência de imprensa da “águia” era um evento concorrido e nenhum dos outros atletas britânicos merecia tanta atenção mediática como Edwards, que parecia completamente deslocado, com o seu bigode, óculos com lentes de fundo de garrafa e queixo proeminente, mas de sorriso aberto e simpatia natural.
Na competição, uma coisa correu bem a Edwards. Não caiu em nenhum dos quatro saltos que fez. Mas foi último nas duas modalidades. Em pista normal, o seu resultado combinado dos dois saltos foi 69,2 pontos, menos de metade do penúltimo classificado (140,4 do espanhol Bernat Sola) e a uma enormidade do campeão olímpico, o finlandês Matti Nykanen (229,1). Em pista longa, foi a mesma coisa. Edwards foi último e Nykanen foi o primeiro, com 167 pontos entre os dois. O seu melhor salto foi de 71 metros, o melhor de Nykanen teve 118,5m.
Foi a primeira e única vez que Edwards participou nos Jogos Olímpicos porque, depois de 1988, o Comité Olímpico Internacional criou novas regras para a qualificação, dificultando a acesso à competição a atletas amadores como o estucador britânico. Mas, por ter sido um perdedor, Edwards deixou de ter problemas de dinheiro. Pagaram-lhe fortunas para fazer aparições públicas, escreveu livros, apareceu em programas de televisão (incluindo o programa do famoso apresentador norte-americano Johnny Carson) e até cantou músicas em finlandês, apesar de não falar uma palavra da língua.
Quatro anos depois dos Jogos, Eddie teve de declarar bancarrota, diz ele porque o fundo a quem tinha entregado os seus ganhos fez uma má gestão do dinheiro, e teve de voltar a trabalhar na construção civil, em Cheltenham. Mas a sua celebridade desportiva continuou a render ao entrar no circuito das palestras motivacionais e ao vender os direitos cinematográficos da sua vida. E aproveitou para fazer duas cirurgias, uma ao maxilar inferior e outra aos olhos. Adeus queixo proeminente e adeus miopia.
Comparado com o que aconteceu com Matti Nykanen, o duplo campeão olímpico em Calgary e considerado um dos melhores saltadores de sempre, Eddie só se pode dar por satisfeito. Depois de acabar a carreira, o finlandês ficou conhecido pelos seus problemas com o álcool, foi acusado de violência doméstica e chegou a estar preso. O pior que aconteceu ao britânico, que deixou o esqui em 1998, foi ter partido quase todos os ossos do corpo na sua vida de atleta: partiu duas vezes a cabeça, uma vez o maxilar, clavícula, costelas, joelho, dedos das mãos e dos pés e as costas.
Vida em comédia
Tal como os jamaicanos do bobsleigh, a história de Eddie também tinha potencial para filme, mas este foi um projecto de gestação longa. Os direitos passaram por várias mãos e até chegou a falar-se do comediante Steve Coogan para o papel principal e até de Rupert Grint. Mas quem avançou para o projecto foi Matthew Vaughn, também ele britânico, realizador de sucesso em Hollywood com “Stardust”, “X-Men: First Class”, “Kick-Ass” e “Kingsman”. Vaughn produziu, Dexter Fletcher realizou e Taron Egerton, que já fora um delinquente transformado em agente secreto, encarnou a “águia”.
O registo do filme é o de comédia e a principal preocupação não foi o rigor histórico. O retratado disse em várias entrevistas que só 15% do filme é que é baseado na sua vida. “Há uma boa dose de liberdades poéticas no filme. Se me mostrassem como um atleta soberbo, não encaixava na história, mas eu até era um bom atleta. É verdade que tive alguns percalços e eles preferiram focar-se neles”, conta o britânico ao The Guardian.
Tal como Eddie, houve muitos outros perdedores espectaculares com nome de animal. Houve Eric “a enguia” Moussambani, o nadador da Guiné Equatorial que quase se afogou nos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, ou Trevor “a tartaruga” Misipeka, o volumoso samoano que esteve nos Mundiais de atletismo de 2001, em Edmonton, para o lançamento do peso e acabou a correr os 100m. Eddie ficou como “a águia” porque voava durante breves segundos depois de se lançar da pista de saltos, mas é o próprio a reconhecer que talvez não fosse a ave mais adequada para o descrever. “Gostava de dizer que voava como uma águia, mas acho que estava mais perto de ser uma avestruz.”