Uma história oral de 25 anos de moda (Lisboa) em Portugal
A ModaLisboa faz 25 anos em 2016 e a sua primeira edição foi um ponto onde se encontraram e de onde irradiaram vários elementos-chave do sector em Portugal. Estórias que são partes da história dos últimos 25 anos da moda no país.
Em 1991, sem telemóveis, apenas dois canais de televisão e uma loja recente, a Zara, no Porto e em Lisboa, esse novo evento chamado ModaLisboa candidatava-se a ser um momento charneira na moda em Portugal. Como escrevia o PÚBLICO a 18 de Abril desse ano, “se tudo correr como se espera, pode ser a primeira vez que em Portugal se vai poder falar em ver colecções”. Começava a Guerra no Golfo e Portugal tornava-se bicampeão de futebol no Mundial de sub-20. Três anos antes, tinham nascido as edições portuguesas das revistas Máxima, Elle e Marie Claire, com directoras como Maria Elisa, Margarida Marante, Madalena Fragoso e chefes de redacção como Maria Antónia Palla.
A primeira ModaLisboa juntou Ana Salazar, num desfile coreografado por Paulo Gomes, a Nuno Gama, Luís Buchinho, José António Tenente, Alves / Gonçalves ou Manuela Gonçalves, entre outros, com direcção de produção de Isabel Branco. Anos mais tarde, uma polémica em torno da vinda de John Galliano causou tensões e a suspensão da ModaLisboa por dois anos. Depois, parte da equipa mudaria, o evento também. Em 1995 nascia no Porto o Portugal Fashion, com supermodelos e a expandir-se para o estrangeiro e para a capital, e só mais tarde viriam a Vogue (2002) e um Museu do Design e da Moda (2009), bem como os blogues, novas profissões e a moda na cultura popular na era das redes sociais.
O PÚBLICO recolheu testemunhos de quem esteve no Teatro São Luiz naqueles dias 18, 19 e 21 de Abril de 1991 – apenas alguns nomes entre muitos outros protagonistas que criaram, noticiaram, vestiram, pentearam ou maquilharam a ModaLisboa. As suas histórias são as de alguns momentos da primeira aproximação a uma fashion week portuguesa, mas são também partes da história dos últimos 25 anos da moda em Portugal. Como evoluiu e o que há ainda por fazer.
Ana Salazar
Pioneira da moda de autor portuguesa, abriu a Loja Maçã em 1972 e em 1985 a sua loja em Paris. Inaugurou a 1.ª ModaLisboa
“Era um espaço fantástico e o Manuel Reis é que o encenou e transformou. Já tinha feito cerca de 15 acontecimentos de moda em Lisboa. Autofinanciava-me e não fazia apresentações sazonais para ter a vantagem de vender logo nas lojas que tinha. As pessoas esperavam muito das minhas apresentações, eram um happening, vestiam-se para a ocasião. Estive em Paris até 1996, foi um grande salto. Tive clientes no mundo inteiro e comecei a achar que era importante fazer o que muitos criadores de fora faziam – todos estão ligados a um grupo. Vendi a marca em 2009, abri muitas lojas. Foi tudo feito com as melhores intenções. As coisas não correram pelo melhor e agora tenho a Ana by Herself.
Hoje em dia a calendarização dos desfiles é relativa – por causa da tecnologia, há casas como a Burberry ou a Tom Ford que estão a mudar [a colecção que apresentam é a que vai imediatamente para as lojas]. Nos desfiles quem está na primeira fila, as celebrities, é mais importante do que o próprio desfile. Estas duas questões têm de ser pensadas e revistas. E continuo a achar que é pena que as pessoas vão aos desfiles e depois não comprem moda portuguesa.”
Eduarda Abbondanza
Directora da Associação ModaLisboa, fundadora, com Mário Matos Ribeiro, da ModaLisboa e da marca Abbondanza/Matos Ribeiro
Em 1990 o vereador com o pelouro do Turismo da Câmara de Lisboa, Vítor Costa, convidou-me e ao Mário Matos Ribeiro para fazer um evento nas Festas da Cidade, no Jardim do Tabaco. Foi um teste que misturava indústria, designers, estilistas. Na época existia uma corrente, mas não uma área da moda em Portugal. Éramos designers [da marca Abbondanza/Matos Ribeiro] e achámos que seria importante criar uma plataforma em que nós e outros pudéssemos trabalhar de forma séria. Tudo é uma explosão na altura e o acelerador é claramente a ModaLisboa, porque para a plataforma funcionar precisava que os vários serviços, como os bastidores ou desenho de salas de desfiles, o styling, por exemplo, se profissionalizasse.
Era preciso massa crítica e a primeira licenciatura em Design de Moda em Portugal arranca em 1993 na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, muito imbuída desse espírito – comecei a leccionar nessa altura. Nesta licenciatura estava um conjunto de pessoas muito activas na área da moda, muito ligadas ao que se estava a passar. Hoje temos 13 escolas e muitas licenciaturas mestrados e doutoramentos e centros de investigação pelo país.
Eu e o Mário Matos Ribeiro fomos formados [em 1984] na única escola que existia, o CITEM. Em 1996 dissolvemos a marca. Vestíamos muitas figuras públicas, tínhamos trabalho de atelier, mas queríamos desenvolver a marca e, no meu caso, não podendo fazê-la crescer como queria, decidi parar. Nos últimos quatro anos fui também consultora e directora criativa da Pelcor, trabalhei o seu rebranding e novos produtos.
Acho sempre que podíamos estar muito mais à frente na moda em Portugal se houvesse uma política do país em vez de haver um pensamento de organizações, e um majorar das valências das organizações que trabalham nesta área – um pensamento mais junto.
[Mário Matos Ribeiro já não é associado da ModaLisboa e é professor e Coordenador da Licenciatura de Design de Moda na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa]
Xana Nunes
Directora da agência XN Brand Dynamics e da Actu, que com a Câmara de Lisboa produz a LisbonWeek. Desfilou na 1.ª ModaLisboa
“No São Luiz foi uma loucura. Estávamos na época alta em que as pessoas iam ver os criadores mas também a nós. Batiam-nos palmas. E quase todas as pessoas em cima do palco e fora dele se conheciam. Trabalhávamos muito e divertíamo-nos muito, era um family affair. Hoje é sobretudo um evento. Antes da ModaLisboa não havia nada igual, era a FIL Moda e a [feira] Portex, mais indústria. A ModaLisboa deixou que a moda portuguesa fosse mais viva e criava condições que não devem existir em muitos outros sítios, em que se oferecem modelos, cabelos, maquilhagem aos criadores.
Mas quando me perguntam se há moda portuguesa, eu acho que há criadores portugueses. Se um criador quiser ter uma voz muito grande internacional, tem de ir para fora. Se o lado mais da indústria e o lado mais da criação, este Porto/Lisboa, tivesse sido mais uno, juntando forças, as coisas tinham sido diferentes.
Como modelo, retirei-me relativamente cedo, aos 26 anos. Sempre gostei do backstage, já fazia coreografias de eventos e desfiles e fiz assessoria de imprensa e relações públicas na ModaLisboa. Foi uma aprendizagem intensa, cresci com a evolução da ModaLisboa. A minha empresa nasceu em 1997 e na altura as marcas de luxo começam a chegar a Portugal. O meu primeiro cliente foi a Cartier. Acabei por trabalhar mais marcas internacionais do que nacionais, também porque muitas marcas nacionais não têm capacidade financeira para manter um gabinete de imprensa. O meu tempo divide-se entre a XN e o novo evento que criei, o Lisbon Week, que não faz uma homenagem à moda mas uma homenagem a Lisboa.”
Tó Romano
Ex-manequim e director da Central Models, agência que fundou com Mi Romano em 1989
“A primeira edição da ModaLisboa foi feita com praticamente todos os modelos a trabalhar. Não havia muitas agências, o boom da publicidade só aconteceria depois com o aparecimento das televisões privadas. Os criadores faziam catálogos de imagens para cada colecção e havia uma correria no início de cada desfile para ficar com o que estava nas cadeiras.
O nascimento da moda em Portugal coincide com o aparecimento da ModaLisboa. Até aí o país tinha fortes tradições na produção de roupa, no Vale do Ave, na indústria têxtil. No final da década de 1980 houve uma preocupação nacional para termos design nacional. Abriram no Porto e em Lisboa escolas de estilismo de onde saíram os primeiros criadores de moda. Antes disso houve projectos e Ana Salazar, a mãe da moda portuguesa. Coincide também com o movimento do Bairro Alto, onde convivem todos os artistas; a casa onde se juntam é o Frágil. Os primeiros criadores de moda abrem lojas no Bairro Alto.
Hoje há cerca de oito agências de modelos a trabalhar a um nível muito elevado, idêntico às maiores capitais de moda. E é difícil nascer uma menina super bonita sem ser detectada por uma destas agências.
A década de 1990 foi a era dourada da moda e que deu a conhecer mais de 50 supermulheres, então designadas top models. Depois do 11 de Setembro de 2001, foi o descalabro, o início de crises e receios sucessivos. E o mundo da publicidade não queria continuar a usar o conceito de ideal de beleza inatingível, deixa a super-mulher e o super-homem pelo que chamamos real people, e passa a usar nos anúncios grupos, situações do dia-a-dia; na moda, podemos falar dos corpos super magros e da androgenia. De 50 top models passámos a ter só uma, que se chama Gisele Bündchen.
Ao modelo contemporâneo só é permitido ser modelo profissional se também trabalhar no mercado internacional. Com tanta oferta, os clientes não querem repetir caras. Se algum modelo trabalhar para a Vodafone, a Nos ou o Meo, nesse ano não vai fazer nenhum dos outros.
Quando começámos, o meu sonho e da Mi Romano era projectar uma top model nacional. E a maior cereja no topo do bolo chama-se Sara Sampaio.”
Nuno Eusébio
Como designer de moda participou na 1.ª edição da ModaLisboa. Hoje é sócio da Eusébio Rodrigues, que faz produção técnica de eventos de moda
“Eram os anos do boom da moda, em que apareceram o Nuno Gama, o Luís Buchinho… Não havia nada e de repente começou a aparecer tudo. Os eventos tinham muito mais significado, trabalhava-se seis meses para a ModaLisboa, era quase uma cerimónia. A Eduarda, o Mário, o Paulo Gomes tinham uma visão muito diferente da moda, como um movimento mundial.
Acabei o curso na [escola de moda portuense] Gudi, ganhei um prémio internacional e fui convidado pela Eduarda Abbondanza e pelo Mário Matos Ribeiro para a ModaLisboa. Durante anos continuei a desenhar colecções, comecei a dar aulas na Academia de Moda do Porto mas enveredei pela área de produção. Trabalho na moda, mas com tudo o que é o cenário, iluminação, bastidores, som. Estou com o Portugal Fashion desde a sua 2.ª edição e agora novamente com a ModaLisboa.
Acabei por ter como alunos o Miguel Flor ou o Pedro Pedro. Quando acabei o curso, aos 22 anos, ninguém me conhecia. Mas quando os nomes apareciam na ModaLisboa passavam quase a ser de uns deuses, algo com que não me dei muito bem. Sentia sempre que a minha colecção era um conjunto de erros e depois parecia surgir uma fama fácil.”
Pedro Cláudio
Fotógrafo
“Comecei na fotografia de moda mas rapidamente me alarguei a outras áreas, nomeadamente à música. Na primeira ModaLisboa estava a fazer reportagem para a revista K. Fiz alguns catálogos para o Manuel Alves, o Nuno Gama, e alguns trabalhos para a própria ModaLisboa, como um livro [Map, em 1999]. Tive a sorte de apanhar esse boom do final dos anos 1980 e do início dos 1990 no princípio e para quem queria viver da fotografia e da fotografia de moda havia muitas oportunidades. Estávamos todos a começar. As edições portuguesas das revistas muitas vezes tinham representantes franceses que nos vinham ensinar, porque ninguém sabia nada sobre revistas de moda. Trabalhei em todas. No final do grunge, a indústria deixou de ter uma atitude mais questionadora e as marcas passaram a ter um papel muito importante na apresentação do status pessoal e mesmo nas revistas. Só o trabalho de algumas revistas com alguns produtores, como a Isabel Branco ou o Paulo Gomes, me proporcionava algum prazer. Alguns anunciantes tinham de estar nas produções e lembro-me da desagradável surpresa de aparecer um relógio no pulso de uma manequim que eu não tinha fotografado, uma colagem, na Elle portuguesa. Fui-me afastando gradualmente da produção de moda [trabalhando esporadicamente para a Vogue Portugal].
A fotografia de moda não existe, a moda é que utiliza a fotografia e utiliza tudo enquanto ideário para a produção de imagens – o cinema, a música, a literatura. Olho para a produção fotográfica que faço com a música da mesma forma. Acabo por ter a influência de todo o trabalho que fiz na moda no que faço hoje em dia.”
Cristina L. Duarte
Socióloga e ex-jornalista, investigadora de Estudos de Género e autora de vários livros sobre criadores portugueses
“Ia aos desfiles ou às passagens, que era o termo mais habitual na época, como as Manobras de Maio na Rua do Século. Escrevia para o Blitz e para o semanário Se7e, era uma espécie de tradutor do acontecimento para um público jovem. Na moda em Portugal há um antes e depois do 25 de Abril e a ModaLisboa enquanto calendário tem também um efeito de antes e depois num país pequeno. Há um aspecto colegial, uma certa escola que a própria organização desenvolveu.
Antes de chegarem as revistas internacionais, os semanários já tinham suplementos com espaço para os novos nomes da moda. E a imprensa de moda em Portugal não é tardia, têmo-la desde o século XIX sob a forma de revistas dirigidas a mulheres como o jornal O Toucador, dirigido por Almeida Garrett, de 1807.
Colaborei com a Elle entre 1994 e 2001, e mais recentemente e esparsamente com a Vogue. Escrevi um livro sobre Ana Salazar (Temas e Debates, 2002), fiz um livro com o José António Tenente (2009), um sobre trajes regionais, outro sobre 15 criadores (2003) e Moda Portuguesa (CTT, 2005). No prelo está o livro sobre Nuno Gama.”
Luís Pereira
Coordenador de bastidores e casting de eventos de moda, ex-modelo e responsável da agência Showpress
“Em 1991 era tão diferente de hoje. Havia muito poucas pessoas especializadas. Ia aos castings da ModaLisboa e não me contratavam – achavam-me demasiado clássico – mas depois era convidado por alguns criadores. Vivia no Porto e vim para Lisboa, trabalhava à noite e de moda só fazia ModaLisboa. Comecei a fazer organização de desfiles em centros comerciais, fins de curso de escolas de manequins.
Havia uma falta muito grande de organização de bastidores, de condições para os manequins, os maquilhadores, cabeleireiros estarem lá tantas horas, e em 1996, depois da interrupção da ModaLisboa, passei a coordenar bastidores, contratar aderecistas, fazer a ponte com os criadores e a trabalhar com o Paulo Gomes, responsável pelo casting. Quando saiu, comecei a fazer a direcção de casting; já trabalhava com o Portugal Fashion desde 1996 e em 1997 comecei a ter a meu cargo a organização de bastidores.
Trabalhei como assistente do Paulo Gomes no [programa de TV de moda] 86-60-86 e fazia shopping nas lojas [requisição de peças para uso editorial, que depois são devolvidas às marcas] e percebi outra falha: algumas marcas não faziam comunicação, não havia showrooms para os produtores de moda trabalharem e em 2002/3 abri a Showpress, uma agência de comunicação especializada em moda. O que mais queria era apoiar as marcas portuguesas. Hoje trabalho tanto com marcas internacionais quanto com portuguesas, embora estas tenham margens muito mais pequenas.”
Testemunhos recolhidos e editados a partir de entrevistas
Notícia corrigida às 16h56 - Maria Antónia Palla foi chefe de redacção da revista Máxima e não sua directora.