Os meus dias de espião... (antes da minha vida sexual)
Lembram-se do Paul Dédalus, assistente de filosofia em dieta de adultério, de Comment Je Me Suis disputé...(ma vie sexuelle)? Não? Agora vejam os primeiros passos desse misógino, enquanto jovem espião na URSS da Guerra Fria: Três Recordações da Minha Juventude.
Nos finais dos anos 90, Arnaud Desplechin não sabia o que era um filósofo. A figura oferecia-lhe possibilidades de mistério e de espectáculo como as que se abrem perante o desastrado paleontólogo (a braços com os ossos de dinossauro) que Cary Grant interpretava em As Duas Feras, de Howard Hawks. Arnaud não sabia também o que era Paris, ele que vinha de Roubaix, Norte de França, onde nasceu em 1960 (números deprimentes nas estatísticas de desemprego e violência urbana). Correu atrás de gente da filosofia, porque era necessário nomear os livros correctos. E como todo o nado e criado numa cidade de província, inventou Paris. O resultado, Comment Je Me Suis Disputé...(ma vie sexuelle) (1996), foi reconhecido como retrato geracional e de uma cidade. A verdade é que foi filme fundador das ficções que passariam a alimentar os corpos de Mathieu Amalric (passámos a vê-lo sempre com livros debaixo do braço, mesmo quando não os tinha), Emmanuelle Devos (narcisismo devorador), Jeanne Balibar (loucura pouco mansa)...
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Nos finais dos anos 90, Arnaud Desplechin não sabia o que era um filósofo. A figura oferecia-lhe possibilidades de mistério e de espectáculo como as que se abrem perante o desastrado paleontólogo (a braços com os ossos de dinossauro) que Cary Grant interpretava em As Duas Feras, de Howard Hawks. Arnaud não sabia também o que era Paris, ele que vinha de Roubaix, Norte de França, onde nasceu em 1960 (números deprimentes nas estatísticas de desemprego e violência urbana). Correu atrás de gente da filosofia, porque era necessário nomear os livros correctos. E como todo o nado e criado numa cidade de província, inventou Paris. O resultado, Comment Je Me Suis Disputé...(ma vie sexuelle) (1996), foi reconhecido como retrato geracional e de uma cidade. A verdade é que foi filme fundador das ficções que passariam a alimentar os corpos de Mathieu Amalric (passámos a vê-lo sempre com livros debaixo do braço, mesmo quando não os tinha), Emmanuelle Devos (narcisismo devorador), Jeanne Balibar (loucura pouco mansa)...
Foi nesse filme que nasceu Paul Dédalus. Tinha 29 anos, era assistente de Filosofia na periferia parisiense. Estava à espera da sua vida de homem e ela não chegava — queria ser escritor, queria escrever uma história de aventuras à la Stevenson a partir da sua biografia. Há dez anos que tentava desembaraçar-se de Esther (Devos): a história entre duas pessoas é feita para um dia terminar, Paul assegurava-lhe, a questão estava apenas em imaginar quando isso iria acontecer.
Enquanto isso... screwball comedy com Adorno, Kierkegaard, Ibsen e misoginia, Stevie Wonder e hip-hop, guerra de sexos afiada e dieta de adultério a fazer sangue, diálogos anti-naturalistas a colocarem as personagens em reconstrução. E a escrita de Desplechin a colocar o espectador numa plataforma vertiginosa, porque a obra, a personagem, está em eterno movimento. É nessa incompletude que o filme se constrói de forma eufórica, como um fresco — fresco sombrio, note-se.
Paul Dédalus tinha dificuldade em sentir que existia. Ainda tem. Melhor, sempre teve: Três Recordações da Minha Juventude (César para o melhor realizador, há semanas, em Paris) regressa ao passado de Paul Dédalus, como uma “prequela”.
O primeiro plano de Comment Je Me Suis Disputé mostrava-o a acordar. Era um sinal: se calhar o filme nunca despertava do sonho, devíamos ter prestado atenção, como podia ser retrato geracional? (Uma das explicações pode ser o facto de uma personagem que precisa dos outros para existir ser ela própria tela em branco disponível para o que o espectador projecta.) Mas com Três Recordações da Minha Juventude não há hipótese de o espectador não perceber: eis Paul Dédalus como jovem espião na URSS da Guerra Fria (o jovem Quentin Dolmaire).
Desplechin abre o jogo, isto é, dá à personagem a possibilidade de romancear a sua vida (lembram-se que Paul queria escrever a sua biografia como um romance de aventuras...?) e o próprio realizador romanceia com uma dieta musical à base de The Specials e The Jam. Coloca Paul em trânsito entre Dushanbe (Tajiquistão) e Minsk, Roubaix e Paris, fá-lo abandonar a casa familiar como quem sacode, para sobreviver, a austeridade de Fanny e Alexandre (Ingmar Bergman, 1982), a sua pouca admiração pelo pai e o seu desgosto pela mãe, fá-lo atravessar um túnel de duplos como num romance de John Le Carré, perder a infância com a queda do Muro de Berlim e encontrar o filme de adolescentes — encontrar Esther (agora interpretada por Lou Roy Lecollinet), de quem, como se verá, nunca se vai desembaraçar.
Em Comment Je Me Suis Disputé os géneros movimentavam-se no escuro como fantasmas. Ao explicitar agora o romanesco, o onirismo, a aventura, Desplechin não tira completamente Paul da zona de sombra (afinal, assistimos aos passos iniciais de um misógino que se inquieta por não saber quem é), mas a luz é menos misteriosa do que a escuridão. O gesto de cinema mais criativo do que o resultado. Nesse aspecto, numa cinematografia que tem como um dos seus patrimónios o direito de “paternidade” assumido de François Truffaut sobre Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel, Paul Dédalus é bem singular: tem mais do que um pai... mais de dois, até. Por aqui começámos a conversa.
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A quem pertence a personagem de Paul Dédalus: a si, a Mathieu Amalric, a Quentin Dolmaire?
É curioso: a personagem nasceu mesmo durante a rodagem de Comment Je Me Suis Disputé. Parte dela nasceu durante a escrita, a outra na rodagem. Na escrita, por mim: história de um tipo que é orfão e que não sabe chorar a morte da mãe. Por isso dei o nome de Dédalus, lembrando-me do início de Ulisses [o Stephen Dedalus do romance de James Joyce], a esta personagem que perde a mãe, não sabe como chorá-la e fica encerrado na sua cólera. É isso que está na origem do seu rancor pelas mulheres, é isso que está na origem da sua forma de viver. Na ligação com as mulheres, há um lado tímido, um lado misógino. Mas há uma coisa de que gosto muito em Paul, na performance de Quentin e obviamente na de Mathieu: é que Paul Dédalus gosta das pessoas que estão à volta dele, é um bom espectador. É alguém que coloca em valor as mulheres, que gosta de admirar. Em Comment Je Me Suis Disputé... ele pensa nos amigos, valoriza-os.
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Ele diz mesmo que o primeiro dever da amizade é pensar o amigo...
Esse lado de ser o espectador dos outros, de ser bom público... lembro-me como se tivesse sido ontem, apesar de ter sido há 20 anos: nos ensaios, Mathieu estava a dar réplica a uma série de actrizes diferentes, a câmara estava nas suas costas a filmar de frente as actrizes. Como Mathieu tem formação de realizador, não de actor, a interpretação mudava consoante a rapariga que tinha à frente, e como olhava de frente para cada uma delas, de cada vez era sempre diferente. Estava concentrado no jogo das partenaires, não estava constrangido pelo seu jogo. Trabalhámos nesse dia bastante tempo, para aí três horas, ele contente por dar a réplica, e foi nesse momento que percebi esse aspecto de Paul de reflectir os outros. Portanto, quem trouxe isso foi Mathieu.
Alguém que gosta de reflectir os outros pode ser alguém que não sabe se existe — ou não sabe o que existe dentro de si...
Sim, aliás em Três Recordações da Minha Juventude Paul entrega os seus papéis de identidade na Rússia, esse jovem, sim, não sabe bem quem é. Quentin trouxe esse heroísmo à personagem. Isso vem do argumento, é claro: um tipo de herói que parte a cara. Sabe que vai partir a cara com Esther, é a sua forma de ser heróico. Essa virilidade doce, afinal quase feminina, pertence a Quentin.
Houve algo de possessivo em Mathieu Amalric? Porque, afinal, a personagem também é criação dele e houve outro corpo que se intrometeu.
É curioso, porque fizemos uma projecção do filme logo depois das misturas, antes das últimas correcções, estavam só os actores. Mathieu e Quentin não se conheciam, tinham-se cruzado na rodagem durante uma hora, apenas, e Mathieu estava estupefacto. “Mas ele tem a mesma elocução que eu." Não é a mesma, e no entanto eles partilham de facto alguma coisa. É claro que a maneira de falarem tem a ver com a minha escrita. Mathieu perguntava: “Mas como é que fizeram?” Não tenho memória de alguma vez ter pedido a Quentin que imitasse Mathieu. O fraseado de Paul é muito particular. Durante a rodagem, varias vezes dizia a Quentin: “imita-me, imita-me”. E eu interpretava para ele. Mas a verdade é que quando interpreto não sei se não estarei a imitar Mathieu e por isso quando Quentin me imita ele está a imitar Mathieu. Mathieu diz que ele é que me imita a mim... Não sei, tenho a impressão de que isto é um triângulo em que cada um imita o outro sem saber exactamente quem está na posse da personagem. É dessa partilha, dessa dança, que nasce Paul Dédalus.
Comment Je Me Suis Disputé... foi recebido como retrato de geração e de cidade. A etiqueta funcionou. Revendo-o agora, depois do explicitamente aventureiro e romanesco Três Recordações da Minha Juventude, fica explicitada a invenção. Mas já estavam lá os sinais de uma ficção onírica: no primeiro plano de Comment Je Me Suis Disputé, Paul está a dormir e se calhar não acorda nunca. Esta coisa de Arnaud Desplechin ter feito um filme sobre Paris e sobre uma geração existe ou é um sonho?
Era um filme de uma geração... fiquei estupefacto com uma conversa que tive com jornalistas do Libération. Confesso que não tenho uma relação fácil com esse jornal. Disseram-me: “É um filme de geração." Respondi: “Vocês vêem rapazes que vivem como solteirões, todos vestidos de negro, e que falam do Talmude e de textos de Emmanuel Levinas e acham que isso representa uma geração? Não representa absolutamente nada, é gente minoritária, só se representam a si mesmos. Mas é esse o poder do cinema: ao longo dos anos houve gente que se apoderou desse filme como se os representasse ou como se representasse alguma coisa — quando afinal escrevi sobre personagens singulares. Desconfio sempre dessa carácter geracional. Falo de pessoas singulares, de gente que se parece com si própria.
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A Paris destes filmes é um sonho de um tipo da província. Woody Allen não vivia na província, mas a sua Nova Iorque também é inventada. Há um lado onírico, como dizia. Há também um desejo de fazer elegia. Como Comment Je Me Suis Disputé... (ma vie sexuelle) é longo, queria fazer o regime de narrativa que se faz habitualmente com os filmes que se passam no campo, mostrar as estações a passar, o frio e a neve, depois as piscinas e o Verão, misturar todas essas épocas e mostrar gente que não quer mais sair dali. Chegámos da aldeia, entrámos em casa em Paris e não quisemos mais sair da cidade. Como em Annie Hall ninguém queria ir a Los Angeles, também aqui ninguém quer sair de Paris. Havia o desejo de mostrar um lado muito sensual e elegíaco na pintura da cidade, gente que chegou e não quer sair mais.
Aquele era um filme feroz, pela relação entre os casais. Havia sangue. Pergunto se Três Recordações da Minha Juventude nasce do desejo de permitir aventura às personagens antes de o filme se dirigir, de novo, para a claustrofobia, Quando começa parece Bergman, é Fanny e Alexandre, depois abre-se à espionagem...
Em Comment Je Me Suis Disputé... Paul escrevia a sua autobiografia e dizia que gostaria de escrever um romance à la Stevenson. Há um desejo de aventura. Este filme é essa possibilidade. A juventude de Lou Roy Lecollinet e de Quentin traz uma luz, um optimismo, um inocência, uma maneira de estar no mundo que é muito diferente da daqueles trintões que se analisavam e que falam de si próprios.
Quando comecei a escrever, não sabia se o filme estaria ligado a Comment Je Me Suis Disputé, mas sabia é que queria trabalhar com pessoas muito jovens, gente que não teria forçosamente a experiência do cinema. Queria encontrar os modos de um diálogo com gente de uma idade diferente da minha. Sempre trabalhei com pessoas da minha idade, e queria preencher o fosso geracional em termos artísticos. Disse a mim próprio: “Tenho de escrever para personagens jovens." Sei que não sou mau nos diálogos, sei que consigo escrever coisas que ficam bem aos actores dizerem, mas são sempre pessoas da minha geração e actores experimentados. Era importante que pessoas de outra geração pudessem dizer: “Sim, com esses diálogos consigo falar da minha vida.”
Lembro-me, com orgulho, de uma entrevista em que um jornalista perguntava “...mas nos seus filmes as pessoas escrevem cartas enquanto a nova geração manda SMS e emails”. E lembro-me de Louise responder, “Sim, a forma é o SMS ou o Twitter, mas é exactamente isto que queremos dizer, tem a minha cara.” O desejo do filme nasce do desejo de trabalhar com as pessoas que ainda não tinham 20 anos.
Nos filmes os diálogos fixam “o lugar” das personagens. Nos seus há um diálogo, um pensamento, e na sequência seguinte tudo recomeça, tudo se contradiz. O que coloca o espectador sempre perante o movimento. Paul diz que Esther é a sua solidez, logo a seguir assume-se misógino, a inteligência das mulheres revolta-o.
Paul Dédalus é um disfarce. Eu mascaro-me de Paul Dédalus, para Mathieu foi também um disfarce que mudou a sua vida. Tem poucos acessórios, duas máscaras, um tecido velho para servir de capa, isso serve. A perturbação em Paul, e pedi aos actores para reproduzirem isso, é que se trata de alguém que não tem a certeza de existir. Por isso diz a Esther que ela é como uma montanha, porque ele não sabe quem é.
Não gosto das personagens arrogantes que têm a certeza do que são. Dédalus, para retomar o título de [Robert] Musil, é um homem sem qualidades. E para mim isso é muito elegante, tocante. Ele tem a sua moral sexual que é bastante estranha, mas é um ser frágil que existe na vertigem de não saber quem é. Há um certo cepticismo que o marca.