As notícias sobre a morte de Lula podem ser prematuras

A inclusão do ex-Presidente brasileiro nas investigações da Lava Jato ameaça o seu maior capital político: ser um “cara” do povo. Lula decretou o fim da reconciliação de classes.

Foto
Lula adoptou o discurso de um mártir: "Vim ao mundo para viver adversidades" Paulo Whitaker/Reuters

No seu último ano como Presidente do Brasil, em 2010, Lula da Silva foi fotografado a carregar uma caixa térmica de esferovite sobre a cabeça, como um xerpa nos Himalaias, durante umas férias numa base naval da Bahia. Apesar de não ser assunto de Estado, foi notícia. “Na Bahia, Lula vai à praia e carrega isopor na cabeça”, foi o título do Estado de S. Paulo. (“Isopor” é o termo brasileiro para esferovite). A imagem do Presidente, de bermudas e camisa de alças, equilibrando uma caixa térmica usada para transportar cervejas e sanduíches, não passou despercebida a ninguém. Ela reforçou no imaginário colectivo a ideia de que Lula era o primeiro presidente brasileiro das classes populares. Em 2002, ele já personificara “o sonho brasileiro”, provando que um homem do povo, nascido pobre e sem estudos universitários, podia chegar à presidência. Oito anos depois, o Brasil confirmava que ele continuava a ser do povo, apesar do poder e da influência alcançados: um Presidente sem vergonha de fazer uma “farofada” na praia. “Farofada” no Brasil é “brega”, é coisa de pobre: um termo pejorativo que designa um grupo de pessoas ou uma família que levam a sua própria comida e bebida para um lugar público. Coisa de rico é jogar ténis ou golfe, é vestir fato e gravata. A imagem de Lula com uma caixa de esferovite na cabeça foi marcante porque ela enviou um sinal à sociedade brasileira: devia perder o seu sentimento de inferioridade e aprender a aceitar-se a si própria.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No seu último ano como Presidente do Brasil, em 2010, Lula da Silva foi fotografado a carregar uma caixa térmica de esferovite sobre a cabeça, como um xerpa nos Himalaias, durante umas férias numa base naval da Bahia. Apesar de não ser assunto de Estado, foi notícia. “Na Bahia, Lula vai à praia e carrega isopor na cabeça”, foi o título do Estado de S. Paulo. (“Isopor” é o termo brasileiro para esferovite). A imagem do Presidente, de bermudas e camisa de alças, equilibrando uma caixa térmica usada para transportar cervejas e sanduíches, não passou despercebida a ninguém. Ela reforçou no imaginário colectivo a ideia de que Lula era o primeiro presidente brasileiro das classes populares. Em 2002, ele já personificara “o sonho brasileiro”, provando que um homem do povo, nascido pobre e sem estudos universitários, podia chegar à presidência. Oito anos depois, o Brasil confirmava que ele continuava a ser do povo, apesar do poder e da influência alcançados: um Presidente sem vergonha de fazer uma “farofada” na praia. “Farofada” no Brasil é “brega”, é coisa de pobre: um termo pejorativo que designa um grupo de pessoas ou uma família que levam a sua própria comida e bebida para um lugar público. Coisa de rico é jogar ténis ou golfe, é vestir fato e gravata. A imagem de Lula com uma caixa de esferovite na cabeça foi marcante porque ela enviou um sinal à sociedade brasileira: devia perder o seu sentimento de inferioridade e aprender a aceitar-se a si própria.

Na sexta-feira Lula tornou-se o primeiro ex-Presidente da democracia brasileira a acordar com a polícia na porta. Foi levado sob escolta policial para ser interrogado sobre suspeitas de ter recebido gratificações de construtoras envolvidas no escândalo da Petrobras em troca da sua influência política. A ordem veio de Sergio Moro, o juiz que comanda a Operação Lava Jato, que desde 2014 investiga a rede de corrupção que vigorou na companhia petrolífera estatal, envolvendo as principais construtoras do país e um sem número de facilitadores e intermediários políticos.

Os juristas brasileiros estão divididos sobre a decisão de Moro de ter usado um mecanismo que está previsto na lei apenas para casos em que alguém foi convocado pelas autoridades para prestar depoimentos e se recusou a fazê-lo, de forma injustificada. Um juiz do Supremo Tribunal Federal e um ex-ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso criticaram o acto de Moro como um abuso de poder. Lula saiu da sede da Polícia Federal no Aeroporto de Congunhas, em São Paulo, onde foi interrogado, ao fim de três horas, mas durante todo esse tempo especulou-se que poderia ser levado para o estabelecimento prisional de Curitiba, onde estão os arguidos e condenados da Operação Lava Jato.

Apesar de só ter prestado depoimentos, o aparato policial em torno de Lula equivale, em termos de opinião pública, a uma condenação pública. Muitos analistas apressaram-se a anunciar o fim de Lula. “Mas é enterrá-lo meio cedo ainda. As provas cabais de incriminação ainda não foram apresentadas. Além de que muitos líderes políticos que foram acusados deram reviravoltas por cima e voltaram à actividade política”, nota o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, que foi professor de História do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris, entre 2000 e 2014.

Ninguém tem dúvidas de que o legado de Lula foi severamente abalado pelos acontecimentos dos últimos dias. Os simpatizantes de Lula e do PT pareciam estar entre a tristeza e a revolta. Continuavam a defender o ex-Presidente, seguros de que ele está a ser alvo de perseguição por parte de uma justiça aliada a meios de comunicação hostis a Lula e ao PT (em particular, a Rede Globo). Mas, para muitos, sexta-feira enterrou a probabilidade de Lula se candidatar – como tem vindo a sugerir publicamente – às eleições presidenciais de 2018. Uma parte da opinião pública já decidiu criminalizar Lula, apesar de nem sequer entender muito bem o que ele fez de errado, dizia uma eleitora do PT, chorosa, nessa noite, ao PÚBLICO.

No centro da investigação estão um apartamento triplex num condomínio de luxo em Guarujá, no litoral paulista, e uma quinta em Atibaia, no interior do estado de São Paulo. O Ministério Público suspeita que Lula é o proprietário real dos dois imóveis, apesar de não estarem em seu nome, e que estes lhe terão sido oferecidos por construtoras implicadas no escândalo da Petrobras em troca de serviços prestados. Lula nega ser dono de qualquer apartamento no Guarujá – apesar de a sua mulher ter tido opção de compra e só ter desistido dela em Novembro do ano passado, quando as notícias sobre o caso se avolumaram – e insiste que a quinta pertence a amigos e que se limita a frequentá-la.

Os brasileiros têm sido bombardeados quase diariamente com fugas judiciais e notícias sobre obras luxuosas num apartamento e uma quinta idílica.

A imprensa contabilizou o número de visitas da família Lula da Silva à quinta em Atibaia (111), sobrevoou o lugar, revelou barquinhos de pedais (“pedalinhos”) estacionados no lago com os nomes dos netos do ex-presidente. Na manhã em que Lula prestava depoimentos, algumas publicações divulgavam imagens em tempo real das buscas policiais. “Houve um estardalhaço, não há a menor dúvida. Foi uma operação montada em estreito contacto com os media”, diz Luiz Felipe de Alencastro.

É a imagem de um Presidente com uma caixa de esferovite na cabeça, um “cara” popular, que está a ser derrubada. “O apartamento e a quinta são símbolos relevantes num momento em que a economia piora, em que as pessoas perdem o emprego, etc”, diz Carlos Melo, professor de sociologia e política no Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa, em São Paulo.

“Quando você compara a quinta e o apartamento com os ricos de verdade, aquilo não é grande coisa. Mas para a população real, aquilo mostra um sujeito popular que não é tão popular e humilde assim. O sujeito é popular ou novo-rico?”, pergunta o cientista político. “Depois de 50 anos de trabalho, depois de ter sido presidente de sindicato, deputado, chefe de partido, Presidente da República, palestrante público de nível mundial, o Lula tem condições financeiras para ter um apartamento de classe média-alta e para ter uma quinta bonita. E aí eu pergunto: Por que não tem? Por que depende de amigos? Isso causa uma desconfiança muito grande. Se o Lula dissesse ‘esse apartamento é meu, as obras fui eu que mandei fazer, aqui estão os recibos’, ninguém poderia dizer nada. Ele tem o capital para isso. O problema é que não foi assim. Ficou uma zona nebulosa.”

Na sexta-feira, ao deixar a Polícia Federal, Lula adoptou o discurso de um mártir – com rouquidão nordestina. “Eu vim ao mundo para viver adversidades. Nunca na minha vida tive nada fácil.” Nas suas primeiras declarações públicas, de quase meia hora (não foi uma conferência de imprensa, mas uma emissão gravada pelo canal de TV do seu partido que foi disponibilizada para as televisões brasileiras), rodeado de militantes do partido, foi o velho Lula, exaltado, batendo na mesa, errando nas concordâncias gramaticais como o povo, fazendo piadas, contando histórias de gente pobre. Defendeu-se dizendo que está a ser vítima de perseguição política por causa do ressentimento das elites em relação aos avanços sociais que aconteceram no país durante os seus governos. Foi um discurso de acirramento classista, optando pelo “nós contra eles”. “Em política quando você tem de explicar alguma coisa, você já perdeu. A única alternativa para ele é partir para o ataque”, diz Carlos Melo. O último recado de Lula para quem quiser decretar a sua morte política: “Se quiseram matar a jararaca [serpente], não bateram na cabeça. Bateram no rabo e a jararaca está viva como sempre esteve.”