O marfinense Laurent Gbagbo é o primeiro ex-Presidente a ser julgado no TPI
Réu declarou-se "não culpado" dos crimes de guerra e contra a humanidade. Para provar até onde pode ir, o tribunal de Haia arrisca a sua credibilidade.
O julgamento de Laurent Gbagbo representa um teste em várias frentes para o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelas Nações Unidas em 2002 para responsabilizar os líderes mundiais por conflitos e crimes. Além de ser o primeiro ex-Presidente que se senta no bando dos réus, é mais um africano (da Costa do Marfim) visado pelo TPI, o que tem levado algumas nações deste continente a acusarem o tribunal de Haia de perseguição aos seus líderes.
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O julgamento de Laurent Gbagbo representa um teste em várias frentes para o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelas Nações Unidas em 2002 para responsabilizar os líderes mundiais por conflitos e crimes. Além de ser o primeiro ex-Presidente que se senta no bando dos réus, é mais um africano (da Costa do Marfim) visado pelo TPI, o que tem levado algumas nações deste continente a acusarem o tribunal de Haia de perseguição aos seus líderes.
Nesta quinta-feira, na primeira sessão em que foi lida a acusação, Gbagbo considerou-se "não culpado" de crimes de guerra e contra a humanidade — por sua causa e em seu nome, diz a acusação, foram cometidos assassínios, violações, tentativas de homicídio e perseguições políticas. Acusações idênticas pesam sobre um segundo réu, que era chefe de uma milícia pró-Gbagbo, Ble Goude, que também se declarou "não culpado".
Os dois homens são os únicos acusados no processo relativo ao conflito armado que eclodiu na Costa do Marfim em Novembro de 2010, quando se realizaram eleições presidenciais. Gbagbo perdeu, mas recusou ceder o poder ao vencedor, Alassane Ouattara. Nos cinco meses que se seguiram, as forças armadas e, sobretudo, as milícias de cada campo transformaram o país numa terra sangrenta. Três mil pessoas morreram, e muitos milhares foram perseguidos devido à sua cor política. Segundo a documentação apresentada pela acusação, Gbagbo mandou bombardear o bairro muçulmano da cidade de Abidjan — pró-Ouatarra —, assim como manifestações a exigir a tomada de posse deste; num destes comícios, num mercado, as bombas mataram dez pessoas e as milícias violaram 38 mulheres.
Os juízes que investigaram os crimes cometidos na Costa do Marfim foram os primeiros a reconhecer que ambos os lados cometeram atrocidades. Porém, apenas Gbagbo e o chefe da milícia foram acusados, o que levou a que a imparcialidade do tribunal fosse questionada.
"A minha equipa vai virar todas as pedras à medida que avançarmos, de forma a garantir que é feita justiça e que todos os lados serão responsabilizados", disse esta quinta-feira o chefe da equipa de acusação, Fatou Bensouda.
Há, implícita, a ideia de que ao não aceitar sair do poder foi Laurent Gbagbo quem precipitou a violência.
Quando Laurent Gbagbo chegou à presidência, em 2000, a estabilidade política era coisa que já não existia na Costa do Marfim. Tinha havido um golpe de Estado militar e o seu líder, o general Robert Guéï, aceitou ir a votos para legitimizar o poder — perdeu por escassos votos para Gbagbo, que conseguiu instalar-se no palácio presidencial. Dois anos depois, porém, o país estava virtualmente partido em dois, com o Norte de maioria muçulmana dominado por grupos rebeldes que tentaram depor o Presidente mas falharam. Nas eleições de 2010, o Norte apoiou Ouattara, um muçulmano cuja família é originária do Burkina Faso.
Para Gbagbo e seus apoiantes, o Norte, cuja população tem origem em étnias de diversos países vizinhos, não representa a identidade marfinense, que só existe verdadeiramente no Sul cristão. Durante o seu governo, Gbagbo retirou o direito a voto a muitos dos habitantes do Norte e Ouattara foi impedido de se candidatar até 2010.
O conflito armado que se seguiu só acabou com uma intervenção francesa (a antiga potência colonizadora). Gbagbo, que chegou a entricheirar-se no palácio presidencial, foi preso e, depois, extraditado para Haia.
O que os partidários do ex-Presidente — juntamente com alguns líderes africanos — contestam é que só um lado do conflito foi acusado pelo TPI. Perguntam também de que forma foram procuradas, e encontradas, as provas que sustentam este julgamento — foram recolhidas (ou cedidas) num ambiente desfavorável ao réu. A oposição na Costa do Marfim diz ainda que Alassane Ouattara está a usar o TPI para a silenciar.
Países da União Africana têm acusado do TPI de ser uma entidade hostil para com o continente africano e de ter sistematicamente os líderes regionais na mira enquanto ignora crimes cometidos noutras partes do mundo. Em 2013, numa resolução aprovada por uanimidade, a UA alertava para este desiquilíbrio e exgia que Haia anulasse as acusações contra o recém-eleito Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta; o julgamento não se realizou, sobretudo depois de se saber que algumas das testemunhas tinham sido intimidadas.
Para o TPI, este primeiro julgamento de um antigo chefe de Estado — o liberiano Charles Taylor também foi julgado em Haia mas num tribunal especial — é a afirmação de que é capaz de cumprir o objectivo para que foi criado. Até agora, só conseguiu condenar dois senhores da guerra congoleses. Mas para mostrar o seu alcance, corre riscos. "Veremos o que acontece a seguir, se vai atrás do outro lado, ou se acaba perdendo a sua credibilidade", resumiu à BBC o advogado Habiba Toure, que representa as vítimas.