Um país dividido entre Donald, o grande líder, e Trump, o demagogo
Donald Trump propôs que todos os muçulmanos sejam proibidos de entrar nos EUA e foi atacado por todos os lados. Um dos candidatos do Partido Republicano lançou uma petição contra ele, mas as sondagens sugerem outros sentimentos.
Poucas horas depois de ter feito uma das propostas mais extremistas das últimas décadas numa campanha para as eleições presidenciais dos EUA, o magnata do imobiliário, estrela da televisão e candidato pelo Partido Republicano Donald Trump exercitava o seu poder na rede social Twitter para promover um dos seus outros preciosos objectivos para 2016: "Estou a autografar cópias do meu livro Crippled America. Encomende o seu agora – dá um óptimo presente de Natal!"
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Poucas horas depois de ter feito uma das propostas mais extremistas das últimas décadas numa campanha para as eleições presidenciais dos EUA, o magnata do imobiliário, estrela da televisão e candidato pelo Partido Republicano Donald Trump exercitava o seu poder na rede social Twitter para promover um dos seus outros preciosos objectivos para 2016: "Estou a autografar cópias do meu livro Crippled America. Encomende o seu agora – dá um óptimo presente de Natal!"
Entre a mensagem partilhada na segunda-feira em que defendeu a proibição da entrada de todos os muçulmanos nos EUA – imigrantes ou turistas – e aquela em que promoveu o seu livro Crippled America: How to Make America Great Again, Trump dedicou mais tempo a destacar uma sondagem da CNN que lhe dá vantagem entre os candidatos do Partido Republicano no estado do Iowa do que a responder à acusação de que se tornou oficialmente num fascista racista. Ou, segundo a versão mais branda do também candidato pelo Partido Republicano Jeb Bush, um "desequilibrado".
Donald Trump is unhinged. His "policy" proposals are not serious.
— Jeb Bush (@JebBush) December 7, 2015
Mesmo para os padrões de Donald Trump, a ideia de fechar as portas dos EUA a um grupo da população mundial por causa da sua religião é "ridícula", disse o governador Chris Christie, outro candidato do Partido Republicano.
O senador Lindsey Graham, que também está na corrida dos Republicanos – e que é alvo de sátira em programas de entretenimento por fazer pouco mais nos debates do que sugerir declarações de guerra a todos os inimigos dos EUA – disse numa entrevista à CNN, esta terça-feira, que há uma forma de "devolver a grandeza à América": "Dizer ao Donald Trump que vá para o Inferno."
E a lista de puxões de orelha a Donald Trump no interior do próprio Partido Republicano continua. O governador John Kasich (correcto, mais um candidato à Casa Branca) lançou mesmo uma petição para "travar o Trump". "Já chega, Trump. A equipa de Kasich denunciou recentemente a retórica perigosa de Trump. Precisamos de um líder que nos una – e não que nos divida", lê-se no site da petição.
America needs a leader that will unite us, not divide us @realDonaldTrump -Sign if you agree https://t.co/cdx5VrKtMt pic.twitter.com/wmsALudrA8
— John Kasich (@JohnKasich) December 8, 2015
Até Ben Carson, o neurocirurgião reformado que até há bem pouco tempo surgia apenas atrás de Donald Trump nas sondagens, e que afastou completamente a ideia de os EUA virem algum dia a ter um Presidente muçulmano, torceu o nariz à proposta do magnata: "Todas as pessoas que visitam o nosso país devem ser registadas e monitorizadas durante a sua estadia, tal como acontece em muitos países. Nós não defendemos, nem defenderemos, uma selecção com base numa religião", disse o seu porta-voz, Doug Watts.
Se estas foram as reacções de outros candidatos do Partido Republicano, é fácil imaginar o que disseram os candidatos do Partido Democrata.
"Donald Trump afastou todas as dúvidas: ele está a concorrer para a Presidência como um demagogo fascista", escreveu no Twitter o antigo governador Martin O'Malley, o menos popular nas sondagens dos três candidatos oficiais do Partido Democrata.
Bernie Sanders, o candidato mais à esquerda dos três, dispensou o mesmo número de mensagens no Twitter à proposta de Donald Trump: "Os EUA são uma nação mais forte quando se une. Somos mais fracos quando permitimos que o racismo e a xenofobia nos divida"; "Ao longo da história, os demagogos tentaram dividir-nos com base na raça, no género, na orientação sexual ou nos países de origem"; "Agora, Donald Trump e outros querem que odiemos todos os muçulmanos."
Do alto da sua enorme vantagem nas sondagens, Hillary Clinton reagiu de uma forma mais institucional: "Declarar guerra ao islão e demonizar os muçulmanos americanos não vai apenas contra os nossos valores – vai ao encontro dos objectivos dos terroristas."
Mentiras e divisões
Esta não é a primeira vez (e por esta altura é relativamente seguro afirmar que não será a última) que Donald Trump provoca uma gigantesca polémica na campanha para as presidenciais nos EUA.
Quando anunciou a sua candidatura, em Junho, começou por hostilizar os imigrantes que entraram nos EUA sem documentos, em particular os mexicanos, descrevendo-os como violadores, traficantes e outros criminosos empurrados pelo Governo do México para fora do seu país de origem. Depois disso, já fez vários comentários jocosos – sobre a doença de um jornalista do The New York Times; sobre o aspecto físico de Carly Fiorina, outra candidata do Partido Republicano; sobre o comportamento da jornalista da Fox News Megyn Kelly durante a condução de um debate, sugerindo que ela estaria menstruada.
Mas principalmente desde os atentados terroristas de 13 de Novembro em Paris, que fizeram 130 mortos e foram reivindicados pelo autodesignado Estado Islâmico, Donald Trump transformou-se num camião desgovernado de declarações contra os muçulmanos, sem fazer qualquer distinção entre a religião e a ideologia fundamentalista defendida e praticada por organizações como os vários braços da Al-Qaeda ou o Estado Islâmico.
Primeiro deixou em aberto a hipótese de criar uma base de dados para registar os muçulmanos norte-americanos (dizendo depois que estava a referir-se apenas aos 10 mil refugiados sírios que a Administração Obama se mostrou disponível para receber em 2016 – um número que Trump resolveu fixar em entre 200 mil e 250 mil sempre que fala em público); depois, disse que "milhares e milhares" de muçulmanos festejaram nas ruas do estado de Nova Jérsia os atentados terroristas contra o World Trade Center, a 11 de Setembro de 2001 – uma alegação que não passa da repetição de um rumor nascido logo no dia dos atentados, e que vários responsáveis da polícia e políticos, tanto do Partido Democrata como do Partido Republicano, já desmentiram.
Não são as suas declarações que têm surpreendido o eleitorado norte-americano – afinal, Donald Trump batalhou durante muito tempo, embora sem sucesso, para provar que Barack Obama nasceu no Quénia, e sugere regularmente que o actual Presidente dos EUA é muçulmano e que tem ligações à Irmandade Muçulmana. O que tem surpreendido vários analistas é que não há meio de o magnata cair nas sondagens – aliás, é precisamente quando os seus números descem ligeiramente que Donald Trump lança uma declaração bombástica, para agarrar o seu eleitorado fiel, que vê nele o homem que decretou o fim do discurso politicamente correcto, e o único que pode "devolver a grandeza à América", de preferência ao pontapé.
"Campanha de um demagogo"
É por isso que o magnata aposta quase tudo nos comícios e nas redes sociais, palcos privilegiados para as suas expressões e sound bites tão simples e directos que chegam a roçar a infantilidade.
Quando lhe perguntam como é que conseguirá identificar, juntar e expulsar os cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos que se estima estarem a viver nos EUA (e convencer o Congresso a passar a factura), limita-se a responder: "Eu consigo fazê-lo, chama-se gestão." Quando lhe perguntam como é que conseguirá construir um muro ao longo da fronteira com o México (e convencer o Governo do México a pagar por isso), responde: "Eu consigo fazê-lo. Vai ser um muro grande e lindo."
Também agora, Trump terá dificuldades para explicar como é que os serviços de imigração vão perceber que uma determinada pessoa é muçulmana, mas há poucos curiosos a suster a respiração até que o candidato apresente um plano exequível – e que jornais como o The New York Times e Washington Post se deram ao trabalho de tentar perceber se teria alguma possibilidade de ser aprovado (a resposta é não: mesmo que o Congresso aprovasse, o Supremo reprovaria).
O grande trunfo de Donald Trump na actual campanha não é a capacidade para implementar medidas fantásticas, mas sim a capacidade para convencer uma parte do eleitorado que está farta da política tradicional e para quem ser-se politicamente correcto é, muitas vezes, o mesmo que ser apenas cortês ou sensível ao sofrimento alheio.
"O poder negro das palavras tornou-se a característica definidora da corrida de Trump à Casa Branca num grau raramente visto na política moderna, já que ele evita as habituais armadilhas das campanhas – as políticas, os apoios, os anúncios publicitários, as doações – e em vez disso usa uma linguagem poderosa para se ligar, e muitas vezes para alimentar, os medos e o sentimento de injustiça dos americanos", escreveu o The New York Times no fim-de-semana passado, num texto em que são analisados vários discursos de Donald Trump.
Jennifer Mercieca, especialista em discursos políticos e professora na Universidade Texas A&M, disse ao jornal norte-americano que o sucesso do candidato explica-se com a divisão clara que ele estabelece com as suas palavras.
"Toda a sua campanha é gerida como a campanha de um demagogo – a linguagem de divisão, o culto da personalidade, a forma de categorizar e de difamar pessoas em traços largos. Se és imigrante ilegal, és um perdedor. Se és capturado numa guerra, como John McCain, és um perdedor. Se tens uma incapacidade, és um perdedor. E depois há os vencedores, especialmente ele próprio, com repetidas referências à sua fortuna e ao seu sucesso e inteligência."