O maior partido de França? A Europa gela
1. Pouco interessa o número de regiões que Marine Le Pen venha a ganhar na segunda volta das eleições regionais francesas. O aviso está dado. Hoje, muitos responsáveis europeus vão ser obrigados a pensar no que aconteceria se Marine Le Pen, a líder do “maior partido de França”, viesse a entrar no Eliseu na Primavera de 2017. Não pode haver pesadelo maior. A França está no coração da integração europeia, construída a partir da sua aliança com a Alemanha depois da II Guerra Mundial. O cenário é tão assustador que a tentação será tentar minimizá-lo. O problema é que a FN se colocou no centro político da França e vai provavelmente condicionar as agendas dos outros partidos, à direita e à esquerda. É o culminar de uma estratégia bem conseguida cujo objectivo foi despir a FN da truculência do velho nacionalismo francês anti-semita e antidemocrático, dando-lhe as cores mais suaves de um partido do sistema, mesmo que antieuropeu (Marine falou pouco da Europa na celebração da vitória, o que os analistas consideram o início da sua estratégia presidencial), xenófobo e oportunamente virado contra o “islamismo radical”. Agora ficou demonstrado que os franceses passaram a considerar normal votar nela. A FN deixou de ser um partido contra o sistema, mas no centro do sistema.
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1. Pouco interessa o número de regiões que Marine Le Pen venha a ganhar na segunda volta das eleições regionais francesas. O aviso está dado. Hoje, muitos responsáveis europeus vão ser obrigados a pensar no que aconteceria se Marine Le Pen, a líder do “maior partido de França”, viesse a entrar no Eliseu na Primavera de 2017. Não pode haver pesadelo maior. A França está no coração da integração europeia, construída a partir da sua aliança com a Alemanha depois da II Guerra Mundial. O cenário é tão assustador que a tentação será tentar minimizá-lo. O problema é que a FN se colocou no centro político da França e vai provavelmente condicionar as agendas dos outros partidos, à direita e à esquerda. É o culminar de uma estratégia bem conseguida cujo objectivo foi despir a FN da truculência do velho nacionalismo francês anti-semita e antidemocrático, dando-lhe as cores mais suaves de um partido do sistema, mesmo que antieuropeu (Marine falou pouco da Europa na celebração da vitória, o que os analistas consideram o início da sua estratégia presidencial), xenófobo e oportunamente virado contra o “islamismo radical”. Agora ficou demonstrado que os franceses passaram a considerar normal votar nela. A FN deixou de ser um partido contra o sistema, mas no centro do sistema.
2. A derrota dos socialistas de François Hollande (que detinham todos os governos regionais menos um) é a demonstração de que o apoio dos franceses à determinação do seu Presidente para combater o terror dentro e fora da França não é suficiente para alterar as suas escolhas políticas. Foi Le Pen quem mais beneficiou com a tragédia. Os ingredientes estavam lá todos, uns recentes e outros mais antigos. A ameaça terrorista, a vaga dos refugiados (que a FN apresenta como duas faces da mesma moeda), a vasta comunidade muçulmana que há dez anos “incendiou” os banlieues de Paris alimentam o medo dos franceses de todas as classes sociais e dão “razão” a Marine. Outros males já vêm de longe. O desemprego elevado não é de agora mas não desaparece: a taxa verificada no terceiro trimestre (10,4%) é a mais alta desde 1997. A velha Frente Nacional tratou de alimentar o ódio dos franceses aos que lhes vinham roubar os empregos, mas também a um sistema económico que “deslocalizava” as fábricas francesas para outros países de mão-de-obra muito mais barata. Foi ainda com Jean-Marie que se assistiu a uma transferência directa de votos da classe operária proveniente da velha indústria pesada do Partido Comunista para a Frente Nacional. Hollande comprometeu-se com reformas que visam liberalizar a economia e animar o crescimento, aceitando (mais ou menos) a receita da austeridade. Os resultados não têm sido os melhores. Marine falou para os marginalizados da globalização e os que têm apenas medo de ver a sua vida invadida por gente estranha. É na região do Norte, que foi a base industrial da França, que os seus ganhos são maiores.
3. Não é a primeira vez que François Hollande tem pela frente um Le Pen. Nas presidenciais de Abril de 2002, a França também entrou em choque, quando a FN ainda de Jean-Marie passou à segunda volta, deixando o candidato do PS e então primeiro-ministro Lionel Jospin fora da corrida. Jospin demitiu-se. Coube ao actual Presidente, então secretário-geral do PSF, aguentar o sismo político. Nessa altura não hesitou: “Chirac é o nosso adversário na democracia, Le Pen é um perigo para a República”. A disciplina republicana funcionou em pleno.
Hoje, Nicolas Sarkozy, líder do mesmo partido de Chirac que rebaptizou “Os Republicanos”, já anunciou que não vai obedecer à disciplina da República. O seu objectivo é regressar ao Eliseu e o seu método é, como sempre, o “vale tudo”. Em 2007, o então candidato presidencial conseguiu a proeza de “roubar” votos à FN, mostrando-se duro com os imigrantes, crítico em relação à Europa e defensor dos “franceses que trabalham”, tocando a França profunda. Não lhe resta outro caminho, mesmo que a sua aposta tenha falhado, porque não foi ele a colher os frutos da impopularidade de Hollande. E desta vez não tem à sua frente um PS com uma fatal tendência para ignorar a realidade, mas Manuel Valls, um primeiro-ministro que também sabe ser duro com as comunidades imigrantes e liberal quanto às reformas económicas. Foi ele que disse que a FN levantava problemas reais, para os quais tinha as más soluções.
4. A França adaptou-se mal à globalização, da qual chegou a acreditar que a Europa a protegeria, e ainda não conseguiu encontrar o seu lugar numa Europa que deixou há muito de ser construída à sua imagem e semelhança. O problema não é de agora. François Mitterrand ganhou por uma unha negra o referendo ao Tratado de Maastricht, em 1992, que teve no centro do debate a unificação alemã. Jacques Chirac viu o seu país matar à nascença a Constituição europeia num referendo em 2005, redigida sob a batuta de outro Presidente francês, Valery Giscard d’Estaing, que se viu a si próprio como George Washington no Congresso de Filadélfia. Metade dos socialistas desertaram para o lado do “não”.
A paisagem política europeia continua a mudar aceleradamente num sentido que pode vir a ser fatal. A vitória de Le Pen é a antevisão catastrófica dessa mudança. O melhor seria não ignorar os avisos. Nesta segunda-feira ainda prevalecia o silêncio na maioria das capitais da União. Matteo Renzi acabou por quebrá-lo, avisando que a Europa tem de mudar: “Sem uma visão estratégica sobretudo no que respeita à economia e ao crescimento, as forças populistas vão ganhar”.