"O passado não é passado, está sempre connosco"

Começámos a conversa falando em Tarantino: o cineasta como estrela pop destes anos aparece no filme daquele que foi o cineasta como estrela pop nos anos 70. Quem? Peter Bogdanovich. Nas salas, Ela é Mesmo... O Máximo, uma comédia cheia de passado.

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Peter Bogdanovich e Cybill Shepherd - sua "musa" em Daisy Miller Corbis

Quentin Tarantino aparece no final de Ela é Mesmo... O Máximo/She’s Funny That Way. Põe-se ao serviço de uma call girl (Imogen Poots) que quer ser actriz. Quentin entra assim pelo plano do filme e, cinéfilo de serviço, agarra em Imogen e atira duas ou três coisas ao ar para explicar a referência a Cluny Brown (o último filme de Ernst Lubitsch) e aquela coisa dos esquilos e das nozes. Foi isso que andou a ser citado pela personagem de Owen Wilson, um cineasta/encenador que aplica a mesma receita a todos os engates: fala-lhes em esquilos e nozes e cria nas raparigas a infalível ilusão das musas. Sem cinismo, Owen can’t help it.

Que tenha sido Peter Bogdanovich a convidar o amigo Quentin para ser guest star nesta screwball comedy (comédia maluca), o seu primeiro filme em mais de uma década, parece história exemplar, coisa de fábula: eis o cineasta-como-pop-star actual ao serviço do cineasta-como-pop-star dos anos 70, aquele que mal tinha começado e era já comparado a Orson Welles e a O Mundo a Seus Pés - foi o que se escreveu a propósito de A Última Sessão/The Last Picture Show.

New kid in town da Nova Hollywood, na verdade Bogdanovich, que começara como actor e aluno de Stella Adler, depois encenador, e, antes de realizar filmes, aprendendo sobre eles a escrever na Esquire e na Harper’s, permaneceu sempre ao lado. Ou em cima, se quisermos fazer coro com os que recordam a sua suposta arrogância nesses anos (filmes petulantes e magníficos, aliás, tremendamente nostálgicos). Em vez de andar a fazer grupo com Coppola, Friedkin ou Scorsese, pôs-se a acompanhar o fim da vida e de trabalho da Velha Hollywood – esteve na rodagem de Cheyenne Autumn, de John Ford, e de El Dorado, de Hawks.

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Peter Bogdanovich e Cybill Shepherd nos seus anos de maior fama - a queda estava iminente

Subiu lá acima, teve êxitos retumbantes, pavoneou-se com a sua musa, Cybill Shepherd (que também entra em Ela é Mesmo... O Máximo, filme, claro, sobre musas). Cary Grant avisou-os que fossem discretos, as pessoas não gostavam de gente tão feliz, e aconteceu: começaram a desejar-lhe a queda. Começou com Daisy Miller (1974), os planos e olhares de desafiante suspensão de Shepherd viraram-se contra o filme e formou a onda que levou aos insucessos seguintes do realizador – Billy Wilder, mauzinho como lhe era habitual, disse que Hollywood era uma comunidade dividida mas unida nos fracassos de Peter Bogdanovich. O desastre aconteceria com Romance em Nova Iorque (1981), que o levou à falência – que o levou a experimentar a sensação de bombardeamento, atirando-o ao chão com o assassinato da sua actriz, sua musa, seu amor, Dorothy Stratten. Esse filme, que desapareceu dos radares embora tenha ficado no fundo do coração de quem o viu, foi considerado um dos melhores de todos os tempos por... Quentin Tarantino. Era por ele que tínhamos de começar esta conversa ao telefone. Quando em Lisboa era quase meia-noite.

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Imogene Poots, call girl em She’s Funny That Way - como em Daisy Miller, uma rapariga às direitas

Queria começar pelo fim de Ela é Mesmo... O Máximo, quando Quentin Tarantino aparece à “musa”, a call girl interpretada por Imogen Poots. Vocês são amigos, cúmplices no despique de cinefilia. Escolheu-o como um aval, uma caução? Do estilo: "eis o tipo hoje que eu fui nos anos 70..."?
Não pensei dessa forma. Decidimos à última hora que a personagem interpretada por Imogen acabaria com alguém famoso. Pensei que teria de ser uma estrela de cinema, tipo DiCaprio ou Brad Pitt, ou então um realizador famoso. Alguém se lembrou: “E se fosse o Quentin?”. Decidi perguntar-lhe. Porque ele é um dos poucos cineastas hoje que as pessoas reconhecem. Ele disse que sim. Foi fácil. Conhecemo-nos há anos, isso não seria garantia de que aceitasse, mas foi muito fácil, e foi ao telefone. Foi pegar em alguém conhecido e esperar que as pessoas o reconhecessem.

Pergunto-lhe isto porque no recente documentário de Bill Teck sobre They All Laughed, One Day Since Yesterday: Peter Bogdanovich & The Lost American Film, Quentin Tarantino aparece e é ele que nos chama à atenção para os trailers de Que se Passa Doutor/What’s up Doc (1972): com eles, explica, não se queria saber o que andava a filmar a estrela desse filme, Barbra Streisand, mas o que andava a filmar o realizador Bogdanovich. Que naqueles tempos era um desses que as pessoas reconheciam na rua. Sinto que Tarantino estava a colocar-se nesse papel hoje, como se você tivesse sido uma versão anterior dele próprio.
É um ponto interessante, e é defensável. Mas como lhe digo não pensei dessa forma.

Vamos então à call girl. Há um momento em que ela diz que devemos esquecer o passado, ou ele sufoca-nos. Ela di-lo en passant, mas isso fica a ecoar em mim ficou ao longo do filme. Onde vejo passado em todo o lado. É uma screwball comedy melancólica, com fantasmas de Romance em Nova Iorque/They All Laughed (1981), o seu “desastre”, que foi rodado por ali, e de que sobra aquele grupo de detectives privados a atrapalharem-se com os seus fracassos amorosos... 
Sim, o passado... é muito difícil reconciliarmo-nos com ele. Já uma vez disse que o passado não é o passado porque está sempre connosco. É o meu sentimento. E penso que se pode fazer esse link com os detectives, sim. Romance em Nova Iorque era mais filme romântico do que screwball comedy tinha elementos da screwball. O que estava na minha cabeça agora era fazer uma screwball comedy. É evidente que há uma memória: nasci em Nova Iorque, filmei ali Romance em Nova Iorque e Ela é Mesmo... O Máximo é a primeira vez que filmo em Nova Iorque desde aquele filme.

Não querendo prolongar o jogo: sendo Cybill Shepherd a mãe da personagem de Imogen, tendo sido, em 1974, Daisy Miller [no filme que em português se chamou Uma Rapariga às Direitas] há como que um legado para a personagem: tal como Cybill no filme de 1974, Imogen é uma rapariga que reinventa a sua moral, o seu lugar de felicidade, não se importando com o olhar dos outros.
É totalmente válido e interessante o que está a dizer, sobretudo porque eu não estava nada consciente disso quando fiz as escolhas. Quando Louise [Stratten, argumentista e ex-mulher de Bogdanovich] e eu escrevemos o filme há anos, pensámos que a Cybill podia fazer o papel da esposa. O marido dela seria interpretado por John Ritter. Foi há muito tempo, e por isso quis tê-la no filme quando finalmente concretizámos o projecto. Já era mais velha, faz agora o papel da mãe de Imogen Poots.

Íamos fazer o filme com Cybill e John Ritter, que morreu subitamente. Perante o choque deixámos de ver razão para o fazer. Muitos anos depois conheci Owen Wilson, gostei dele porque é uma espécie de estrela de cinema à antiga, e reescrevemos a pensar nele. A partir desse momento, construímos o cast em redor dele [é Kathryn Hahn que interpreta agora a mulher].

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Quentin Tarantino, o cineasta como pop star destes tempos, Peter Bogdanovich, o cineasta como pop star dos 70s, Owen Wilson, um actor que, diz Bogdanovich, parece um actor à antiga Corbis

Noah Baumbach e Wes Anderson, cineastas que aparecem como produtores executivos, foram decisivos para concretizar o projecto?
Foram muito importantes, desde logo para conseguirmos o acordo financeiro. Porque são populares. E jovens. E são meus fãs.

O que acontece com esta geração de cineastas, fixados no cinema americano dos anos 70, é uma retribuição do que você, nos 70s, fez com os cineastas mais velhos que naquela altura estavam em fim de carreira...
Penso que isso é verdade. Fui muito próximo de gente como [John] Ford, [Howard] Hawks, Orson [Welles] e [Jean] Renoir, interessei-me sempre muito pouco pelos meus contemporâneos, sempre preferi os mais velhos. Sinto muito a falta deles. A minha geração não me interessa. Aqueles gigantes da indústria inspiraram-me e ainda me inspiram. De alguma maneira a relação que tenho com Noah e Wes é do mesmo tipo da que tinha com aqueles realizadores mais velhos.

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Daisy Miller, o início da desgraça

Nunca se sentiu próximo dos Coppola, Scorsese, Friedkin, pois não? Enquanto eles aterrorizavam a Velha Hollywood, no final dos anos 60, você cuidava desses cineastas amparando-os no seu fim de percurso e de vida.
Sim, porque aprendemos com os velhos filmes como é que se fazem os filmes. E fui amigo de muita dessa gente. Gostava deles e eles gostavam de mim.

Fazer um filme hoje é diferente. É menos agradável? É menos criativo?
Não foi nada desagradável filmar Ela é Mesmo... O Máximo. Gostei. A pós-produção é que foi difícil, porque os produtores não estavam de acordo com algumas das soluções - isto para dizer que o filme que viu é uma versão de compromisso. Mas brinca com os espectadores e é essa a experiência galvanizante: fazer os espectadores divertirem-se.

Há uma mecânica da screwball visível, alguém a querer mostrar: “Já não pego nisto há algum tempo mas não perdi o jeito. Como realizador, estou vivo.”
Sabe que acho que a imprensa especulou muito sobre o facto de eu não fazer uma longa-metragem há mais de uma década [desde O Miar do Gato/The Cat's Meow, 2001]. O que é verdade. Mas trabalhei muito nos anos 90 e nos anos 2000 - apenas não filmei longas-metragens. Fiz um documentário de quatro horas sobre Tom Petty [Tom Petty and the Heartbreakers: Runnin’ Down a Dream, 2007] que ganhou um Grammy, fiz uma nova versão do meu documentário sobre John Ford [Directed by John Ford, originalmente de 1971], que está agora muito melhor, dirigi dois especiais para TV, um sobre Natalie Wood [2004, The Mystery of Natalie Wood] outro sobre um jogador de baseball, Pete Rose [Hustle, 2004], e fui actor em episódios da série Os Sopranos e dirigi um deles. Estive muito activo. Não fiz filmes porque não tive tempo, estava a fazer outras coisas.

Então os tempos de arrogância, em que subiu demasiado alto, depois de A Última Sessão (1971) ter sido comparado a O Mundo a Seus Pés, de Welles, levando a uma previsível queda, é uma narrativa em que não se revê?
Não tentei sequer fazer filmes nestes últimos anos. Tinha o argumento de She’s Funny That Way, que não consegui fazer quando o escrevi pelas razões que expliquei. Houve filmes que chegaram até mim e por alguma razão não houve dinheiro para os fazer mas não houve um projecto pessoal que tivesse sido barrado. Tenho um argumento, misto de comédia e drama, Wait For Me, história de fantasmas, e hei-de fazê-lo. É um projecto de envergadura, precisa de um cast grande e de uma estrela a protagonizar. Estou a começar a escolher os actores, filmaremos a meio do próximo ano. She’s Funny That Way demorou a finalizar mais tempo do que pensava e mais tempo do que queria. Perdi mais de um ano aqui. Entretanto, tenho um compromisso para fazer a montagem final do último filme de Orson Welles [The Other Side of the Wind], começaremos daqui a duas semanas. Isso vai demorar alguns meses, esperamos mostrar o resultado em Cannes. E tenho ainda um argumento chamado One Lucky Move, uma espécie de western moderno.

Pergunto-lhe, a contar com a sua sinceridade: o que é que pensa dos filmes de Tarantino? Explico: é considerado uma figura tutelar de um certo cinema cinéfilo, Tarantino, Wes Anderson, Baumbach, cineastas que fazem filmes sobre filmes a possibilidade de pastiche não andará longe. Penso que o seu cinema é outra coisa, nada a ver com o pastiche, mas queria saber a sua opinião.
De facto não faço isso, filmes sobre filmes. Acho que Noah, Wes e Quentin fazem mais isso. Gosto dos três, pessoalmente, somos amigos, eles chamam-me papá, eu chamo-lhes filhos – bem, a Quentin não chamo filho [risos], mas somos muito amigos. Fazem filmes que são pessoais, não são cinematograficamente iletrados, isso interessa-me...

... mas?
Não há “mas”, gosto de alguns filmes, de outros menos. Sobretudo admiro as personalidades e a determinação deles. Todos têm talento.

Então aqui vai: o que você faz no final de She’s Funny That Way, mostrando aos espectadores o excerto de Cluny Brown, de que a personagem de Owen Wilson tanto fala é como um mágico a mostrar como se faz o truque. Isso era coisa que Tarantino nunca faria arrisco. Porque a cinefilia nele é, sobretudo, coisa dele.
É uma análise muito interessante.

Qual é o filme de Peter Bogdanovich que prefere?
Romance em Nova Iorque.

Claro! Os meus: Daisy Miller, They All Laughed, Saint Jack/Noites de Singapura [1979]...
Também gosto desses...

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John Ritter em They All Laughed - a sua morte, precoce, impediu que participasse em She's Funny That Way

Mas Daisy Miller é uma pedra no sapato...
Gosto. Cybill foi óptima e fomos completamentre fiéis ao livro [de Henry James]. É uma história sobre percepções erradas como você reparou. Não fez dinheiro, e isso prejudicou-me durante os filmes seguintes porque as pessoas perderam a fé em mim. Antes fiz três filmes bem sucedidos [A Última Sessão, 1971, Que se Passa Doutor, 1972, Lua de Papel, 1973] e achei que não fazia mal nenhum um filme que não fosse um sucesso - sempre achei que Daisy Miller não seria um sucesso. Queria fazê-lo, e nem custou muito dinheiro. Mas em Hollywood quando se faz uma coisa dessas... as pessoas achavam que eu estava tão apaixonado pela Cybill que perdera o sentido da realidade. Não é verdade. Eu estava apaixonado pela Cybill mas tinha o sentido da realidade [risos]. Ela era magnífica, aliás Orson Welles disse que ela tinha nascido para aquele papel. Agora outra coisa é perguntar: se pudesse voltar atrás faria Daisy Miller de novo? Não. É que de facto o fracasso do filme prejudicou-me. Isso e ter sido encarado como um veículo para a minha namorada. Por causa disso não consegui metê-la em O Vendedor de Sonhos/Nichelodeon [1976], e isso prejudicou o filme. Mas estou orgulhoso de Daisy Miller.

Sentia, antes do insucesso de Daisy Miller, que estava no topo, que era poderoso?
Não especialmente. Lembro-me de estar em Paris com Orson, depois de ter filmado Lua de Papel. Orson queria ver o filme, mas a cópia estava em Los Angeles. “Diz-lhes para te mandarem a cópia”. “Acho que não farão isso, Orson”. “Claro que sim, diz-lhes para o fazerem, não sabes quem és?”. Ele tinha razão, eu não sabia quem era. Porque lhes disse para mandarem, e imediatamente o fizeram. Não estava consciente do poder que tinha e que aliás me causava desconforto.

Pensa muito no passado.
Sim, penso. Demasiado.