Foi-se o medo, a incerteza e o sonho

A 25 de Novembro de 1975, Portugal viveu o momento definidor das incertezas da revolução de Abril. Para trás ficaram dias de medo, esperança e radicalismo. Chegou-se a temer a guerra civil. A democracia liberal ou burguesa triunfou, mas esse tempo de sonhos radicais deixou marcas.

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Assaltos a sedes, barricadas nas ruas, roubo de armas nos quartéis para serem distribuídas por civis, planos para revoluções e contra-revoluções, atentados à bomba, milícias populares, civis contra civis, militares contra militares, intimidação, medo, prisões arbitrárias e exílios forçados. Hoje, 40 anos depois, a memória do Verão Quente de 1975 diluiu-se na consolidação da democracia liberal, perdeu o seu dramatismo na integração europeia e está prestes a enterrar os seus derradeiros fantasmas no acordo político celebrado entre o PS, o PCP e Bloco de Esquerda. Ainda assim, esse Verão conturbado em que muitos se prepararam para a inevitabilidade de uma guerra civil continua a ser um dos momentos definidores do Portugal de hoje. Mais do que uma memória diluída, deixou um lastro que continua a determinar o rumo do país.

Talvez um Presidente mais conciliador e mais hábil politicamente fosse capaz de atenuar o clima de cisma iminente que se começa a desenhar na jovem democracia logo em Julho de 1974. O marechal António de Spínola não era nem uma nem outra coisa. Quando, em Setembro, dá conta de que é um Presidente acossado e diminuído, anuncia que “a maioria silenciosa do povo português terá de despertar e de se defender dos totalitarismos extremistas”. Do outro lado da barricada, Álvaro Cunhal responder-lhe-ia que estava na hora de se “partir os dentes à reacção”. Spínola promove uma manifestação da “maioria silenciosa” para 28 de Setembro, mas milícias do PCP e do Copcon, a polícia de Otelo Saraiva de Carvalho, respondem com barricadas e operações policiais nas quais mais de 200 pessoas são detidas. Sem o poder da polícia nem do exército, Spínola percebe o drama do seu isolamento e cede o lugar a Costa Gomes. O país entra no que o historiador António José Telo designa por “deriva comunista”.

Depois de Setembro, o PCP acentua a sua influência no Movimento das Forças Armadas (MFA), aumenta o controlo sobre a imprensa, estende o seu domínio no Governo e nas autarquias. As ocupações de casas aceleram, a vaga de prisões de gestores inicia-se sob o pretexto da “sabotagem económica”, as tomadas por assalto de terras no Alentejo multiplicam-se. Para Mário Soares e Francisco Sá Carneiro, só a legitimidade eleitoral poderia criar barreiras à legitimidade revolucionária do MFA, do Copcon ou da esquerda radical. Conseguir eleições o mais cedo possível tornou-se para o PS, mas também para o PSD, uma questão crucial para a sobrevivência.

Em Março de 1975, Spínola chegara à conclusão de que era a hora do tudo ou nada. As forças da esquerda mais radical tinham a mesma opinião: a reacção tinha de ser enterrada. Numa história com contornos ainda obscuros, começa a circular uma lista secreta com nomes a abater numa suposta “matança da Páscoa”, entre os quais o próprio Spínola. O general do monóculo e os seus apoiantes preparam então um golpe para assumir o poder. Como a 28 de Setembro, o 11 de Março é uma colectânea de erros de preparação e de comando. Em 24 horas, os sectores mais à esquerda liquidam a “ameaça” golpista que “ameaçava” reverter as conquistas de Abril, obrigam Spínola ao exílio (primeiro em Espanha, depois no Brasil) e reforçam a sua legitimidade.

A 25 de Abril, fazem-se as primeiras eleições livres em Portugal desde o golpe do 28 de Maio de 1928. Quase 92% dos portugueses vão votar. Os resultados contrariam em absoluto a relação de forças no Governo. O PS conquista 38,87% dos votos e o PSD obtém 26,39%. A força política dominante do processo, o PCP, não vai além dos 12,46%, o MDP conquista 4,14% e o partido mais votado da extrema-esquerda, a UDP, não vai além dos 0,79%. Mas, em vez de produzir um reequilíbrio na correlação de forças, os resultados da Constituinte levam a um extremar de posições. Álvaro Cunhal afirmaria a Oriana Fallaci, do jornal italiano Europeo: “Se pensa que o PS com os seus 40% e o PPD com os seus 27% compõem a maioria, está a cometer um erro” — estas citações seriam desmentidas pelo líder do PCP, mas Oriana ofereceu-se para pôr as cassetes à sua disposição.

Daqui para a frente, Mário Soares vai à luta. Após o caso República, um jornal ocupado pelos tipógrafos perante o apoio tácito do Governo, o PS sai do Governo, arrasta consigo o PSD e entra na contestação ao gonçalvismo. A ocupação da Rádio Renascença tira a Igreja Católica de uma posição cautelosa. O país partia-se. No Norte, o mundo sob a influência da Igreja e da pequena propriedade desenhava um bloco anticomunista que acabava em Rio Maior. O PCP promete erguer uma “verdadeira muralha de aço” em torno da capital. Mas as barricadas que organiza são incapazes de esvaziar um comício em Lisboa, onde, sob o pretexto do combate à unicidade sindical, o PS reúne, a 19 de Julho, 200 mil pessoas para pedir a demissão do Governo de Vasco Gonçalves. Depois desse comício da Fonte Luminosa (e do dia anterior, no Porto, que encheu o Estádio das Antas), o PS sabe que pode disputar o poder das ruas do PCP e da extrema-esquerda.

O Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), sob a égide de Spínola, entra em cena. O general de monóculo e pingalim ainda tenta obter da ditadura militar brasileira apoio para invadir Portugal, mas se a sua megalomania era vã, a sua inspiração serviu para que no terreno se instalassem grupos radicais como o Maria da Fonte ou o Exército de Libertação de Portugal. Garantida a cumplicidade da Igreja, quando não o apoio declarado de figuras gradas da arquidiocese de Braga, o terrorismo da direita cresce em espiral. Entre 29 de Julho e 5 de Agosto, Alpoim Calvão, um spinolista que liderou no terreno grupos operacionais, conta “27 incidentes, desde assaltos a sedes, incêndios e sabotagens e actos bombistas” que muitas vezes ocorriam “depois de manifestações de apoio ao bispo local”.

A 7 de Agosto, militares moderados como Melo Antunes, Vasco Lourenço ou Vítor Alves anunciam o Documento dos Nove, que acusava o MFA de manter um projecto político contrário “ao papel que dele esperava a maioria do país”. Nesse período, o músculo revelado pelo PS, a intervenção da Igreja e o ressurgimento da ala moderada do MFA eram garantia de que a “deriva comunista” podia ser contida. Vasco Gonçalves era agora o primeiro-ministro de um Governo que até Costa Gomes considerava “de passagem”. Em 19 de Setembro, é substituído pelo almirante Pinheiro de Azevedo. O volte-face no equilíbrio de poderes em favor da moderação exacerba as posições da extrema-esquerda. Uma série de acções levam o país à beira de um ataque de nervos. A 27 de Setembro, a embaixada da Espanha é assaltada e saqueada; a 3 de Outubro, no Porto, um tiroteio entre facções das forças armadas causa mais de 50 feridos; a 11 de Outubro, uma manifestação cerca a Assembleia e sequestra deputados e ministros. A 20, é o próprio Governo que auto-suspende a sua actuação, com Pinheiro de Azevedo a deixar de novo uma declaração original para a posteridade: “Não gosto nada de ser sequestrado, percebem? Chateia-me ser sequestrado.”

Com a temperatura política ao rubro, faltava apenas um detonador para que a bomba rebentasse. Numa manifestação de força do Grupo dos Nove, Otelo é afastado do Copcon e da chefia da Região Militar de Lisboa. Dois dos seus oficiais, Melo Antunes e Ramalho Eanes, estão já na liderança dos planos para suster o golpe que se anuncia. Em articulação com a Confederação dos Agricultores de Portugal, o Grupo dos Nove força os acontecimentos na noite de 24 de Novembro, colocando mais de 15 mil agricultores a barrar os acessos a Lisboa. Nessa noite, os militantes do PCP são convocados para se deslocarem para as sedes do partido e ficarem em estado de prevenção. Cunhal, porém, teria prometido a Costa Gomes que o partido não se envolveria num golpe que, com toda a probabilidade, arrastaria o país para a guerra civil.

Em poucas horas, Ramalho Eanes fica senhor da situação. O radicalismo militar, contagiado pelo PCP e pelos partidos da extrema-esquerda, é aniquilado. A moderação ganha músculo. A vertigem da democracia popular, nos seus diferentes matizes, tinha os dias contados. Para o romantismo da esquerda, o 25 de Novembro foi “quando a nossa festa se acabou”, como contaria a canção de José Mário Branco. As raízes desses meses imprevisíveis, cheios de angústia e ansiedade, mas também de esperança e sonho ficariam no ar, a pairar como a marca de um tempo em que o país esteve à beira do precipício.