Suu Kyi e os labirintos que lhe travam a chegada ao poder
As eleições deste domingo vão certamente dar uma esmagadora vitória à Liga Nacional para a Democracia liderada pela histórica dissidente birmanesa. O que se segue é uma incógnita
Não há sondagens na Birmânia, onde este domingo já se realizaram as primeiras eleições verdadeiramente multipartidárias, e as mais livres, em 25 anos. Todos os indicadores apontam para uma vitória esmagadora da Liga Nacional para a Democracia, da histórica dissidente e Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. Mas não é automático que consiga governar.
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Não há sondagens na Birmânia, onde este domingo já se realizaram as primeiras eleições verdadeiramente multipartidárias, e as mais livres, em 25 anos. Todos os indicadores apontam para uma vitória esmagadora da Liga Nacional para a Democracia, da histórica dissidente e Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. Mas não é automático que consiga governar.
O momento em que os resultados forem anunciados, explicou ao jornal The Guardian o historiador birmanês Thant Myint-U, marca o arranque de “um processo labiríntico” e de desfecho incerto. Apesar de ser esperado que a Liga consiga ocupar a maior parte dos lugares que estão em disputa nas duas câmaras do Parlamento, a Constituição aprovada pelos militares que têm lugar cativo no órgão legislativo vai dificultar a chegada de Suu Kyi ao poder na Birmânia.
Na origem do processo labiríntico de que fala o historiador está a Constituição birmanesa, construída ao longo de 50 anos de ditadura militar e alterada à medida das circunstâncias, sempre que surgiam obstáculos no caminho do regime.
A última dessas alterações é recente e diz que um cidadão que tenha filhos estrangeiros não pode ser Presidente da Birmânia — uma lei à medida de Aung San Suu Kyi, que tem dois filhos de nacionalidade britânica.
Outro problema: apesar de a Birmânia não ser um país de sistema presidencialista, quando a Junta Militar decidiu iniciar o caminho da transição e passou parte do poder a um dos seus, o ex-general Thein Sein, ficou decidido que seria este quem governaria o país. Thein Sein iniciou um programa de reformas políticas destinadas a acabar com o isolamento político da Birmânia, e algumas sanções foram levantadas — libertou alguns dissidentes (não todos), pôs fim à censura nos meios de comunicação, implementou um pacote de reformas económicas. Mas nas mãos dos militares ficaram decisões estratégicas e é ao chefe do Estado Maior das Forças Armadas, não ao Presidente, que cabe escolher os ministros da Defesa, Interior e Fronteiras. A lei diz que não é possível alterar a Constituição neste capítulo sem a aprovação dos militares.
São tantos os novelos na Birmânia que dificilmente estas eleições conseguirão desfazer todos. Muito vai depender de como se comportarem os actores políticos e das negociações que estiverem dispostos a fazer. Um dos primeiros problemas a surgir será saber-se quem manda. O Presidente, o primeiro-ministro? Apesar do papel desempenhado por Thein Sein, a Constituição não atribui claramente ao chefe de Estado a função governativa.
Muito vai depender de quem for escolhido para ocupar esse lugar, dizem os analistas. A escolha do Presidente é indirecta na Birmânia. Neste domingo, o que os 30 milhões de eleitores vão fazer é eleger os seus representantes para parte dos lugares das duas câmaras do Parlamento; um quarto é ocupado por militares.
Quando o Parlamento estiver constituído, os deputados das várias forças políticas representadas (há candidatos de 90 partidos) escolhem dois candidatos ao cargo de Presidente e os militares um terceiro. O novo chefe de Estado será eleito pelos deputados em Março e, por causa dos deputados militares, a Liga de Suu Kyi terá que obter pelo menos 67% dos votos (eleger quase todos os lugares em disputa) para conseguir que o seu candidatos se torne Presidente.
"Vou ser a líder"
Nos comícios e nas entrevistas que deu ao longo desta campanha, Suu Kyi disse estar segura da vitória. A sua referência, e a de todos, é o resultado que a Liga obteve em 1990 — 81% dos votos (392 dos 492 lugares) numa eleição que foi anulada pela Junta Militar; Suu Kyi foi detida e esteve quase 15 anos em prisão domiciliária, tendo saído recentemente desse regime mas tendo ainda os movimentos vigiados. As intercalares de 2012 também foram favoráveis à Liga (que boicotou as eleições gerais de 2010), que elegeu 43 dos 44 lugares em disputa.
A tendência dos números parece favorável a Suu Kyi e à sua Liga para a Democracia. Mas o muito poder ainda nas mãos dos militares não permite que se perceba o que se segue. Com maioria no Parlamento, Suu Kyi deveria poder chefiar um governo e conseguir aprovar mudanças na Constituição que retirassem os militares da paisagem política. Mas os generais — e a elite empresarial a eles ligada — turvam a imagem sobre o futuro.
“Vamos ter que esperar para ver se ganho com 100% dos votos, nessa altura ficaremos a saber o que pretendo fazer a seguir”, disse Suu Kyi numa entrevista recente a uma televisão japonesa, citada pelo Guardian. “A Constituição tem que mudar de forma a permitir que as autoridades civis tenham a autoridade democrática necessária para se sobrepor às Forças Armadas”, disse.
Num comício na quarta-feira em Rangum, a “dama Suu”, como é tratada na Birmânia, revelou um pouco mais as suas intenções. “Se ganhar, vou estar acima do Presidente. É esta a mensagem”.
Está decidida a governar. “Se [a Liga] vencer e formarmos governo, eu vou ser a líder desse governo quer seja Presidente ou não”, disse a candidata de 70 anos.
Há mais obstáculos no caminho de Suu Kyi além dos militares. A começar pelo seu próprio partido, onde há sectores que receiam a idolatria de parte do eleitorado para com Suu Kyi — é tão adorada, relata o Le Monde numa reportagem, que domina as primeiras páginas dos jornais desde que a censura acabou, em 2012, e os directores dizem que vendem menos quando “a dama” não aparece.
O choque de facções na Liga pode perturbar a escolha do próximo Presidente, dizem os analistas, que neste caso apontam a demora do processo como uma vantagem — até Março, há muito tempo para pacificar sectores.
O boicote dos monges
Os monges budistas — sobretudo do movimento Ma Ba Tha, a maior e mais poderosa força política da Birmânia apesar de não ter representantes, diz a BBC — apelaram ao boicote a Suu Kyi e à sua Liga para a Democracia. Os influentes monges que já este ano conseguiram fazer aprovar pelo Parlamento legislação sobre a família (proibindo os muçulmanos de terem mais do que uma mulher e os casamentos entre budistas e muçulmanos, tudo para impedir “a invasão muçulmana”), acusam-na de querer destruir os valores budistas.
Por causa dos monges, a Liga não tem um único muçulmano nas listas de candidatos e a líder que venceu um Prémio Nobel da Paz pela sua luta em defesa dos direitos humanos tem sido acusada internacionalmente de ignorar o drama dos rohingyas, minoria muçulmana sem direitos e perseguida no país. “Há que não exagerar este assunto”, disse Suu Kyi.
Tantos labirintos nas eleições da Birmânia. Por isso, o historiador Thant Myint-U acautelava que não é possível resolver todos os problemas com uma eleição. A Birmânia, explicou, está num processo de transição que está longe de poder ser encerrado. O próximo governo, diz, deveria ser ainda de compromisso entre a classe política eleita e os militares, para não se correrem riscos de hostilidade e retrocesso. “Se as eleições forem livres e justas, teremos um Parlamento que será pelo menos 75% eleito e o governo tem que ser fruto de um acordo entre os deputados eleitos e os militares — e este será um passo muito importante por comparação ao que tivemos durante meio século”, disse.