Laurie Anderson, esquece esta história
Lidando com fantasmas íntimos, amigos, família – e a cadela Lolabelle –, o fluxo de impressões que é Heart of a Dog está livre de narcisismo. “A razão do título é a empatia", diz Laurie Anderson ao Ípsilon. "Os cães são criaturas empáticas. Como artista aspiro a ser empática".
O avô Anderson veio de Estocolmo aos oito anos. Atravessou o Atlântico sozinho, pôs um pé em Toronto, outro em Chicago, começou um negócio de cavalos aos 10, e muitos anos depois uma família Anderson fazia de Glen Ellyn, Illinois, e do céu imenso do Midwest americano, a sua terra. Foi aí que nasceu Laura Philips Anderson, a 5 de Junho de 1947. Laurie não teve televisão, estava sempre a fazer coisas, música e puppetshows, lia livros, nunca ninguém lhe perguntou “e agora, o que vais fazer?”, ela nunca fazia a mesma coisa, ela estava sempre a fazer coisas.
Provavelmente aquilo é mentira – isto é, a história do avô paterno. Se calhar Axel Ephraim Anderson era mentiroso.
“Se calhar a história dele é, na verdade, demasiado triste para ser contada. Se calhar ele fugiu quando era miúdo, se calhar ele roubou, foi corrido de casa, não sei... Sei que não foi uma história feliz, ou não teria ido sozinho [para a América] e por isso inventou outra, que era melhor, que o fazia sentir-se bem consigo próprio” – é a neta Laurie que conta. “Todos temos histórias que nos representam enquanto crianças: aquela coisa de sermos rebeldes, isolados, de fazermos patifarias, o que quer que seja, porque ninguém quer saber a nossa história verdadeira. As nossas histórias verdadeiras são demasiado longas, usamos de preferência versões curtas.”
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O avô Anderson veio de Estocolmo aos oito anos. Atravessou o Atlântico sozinho, pôs um pé em Toronto, outro em Chicago, começou um negócio de cavalos aos 10, e muitos anos depois uma família Anderson fazia de Glen Ellyn, Illinois, e do céu imenso do Midwest americano, a sua terra. Foi aí que nasceu Laura Philips Anderson, a 5 de Junho de 1947. Laurie não teve televisão, estava sempre a fazer coisas, música e puppetshows, lia livros, nunca ninguém lhe perguntou “e agora, o que vais fazer?”, ela nunca fazia a mesma coisa, ela estava sempre a fazer coisas.
Provavelmente aquilo é mentira – isto é, a história do avô paterno. Se calhar Axel Ephraim Anderson era mentiroso.
“Se calhar a história dele é, na verdade, demasiado triste para ser contada. Se calhar ele fugiu quando era miúdo, se calhar ele roubou, foi corrido de casa, não sei... Sei que não foi uma história feliz, ou não teria ido sozinho [para a América] e por isso inventou outra, que era melhor, que o fazia sentir-se bem consigo próprio” – é a neta Laurie que conta. “Todos temos histórias que nos representam enquanto crianças: aquela coisa de sermos rebeldes, isolados, de fazermos patifarias, o que quer que seja, porque ninguém quer saber a nossa história verdadeira. As nossas histórias verdadeiras são demasiado longas, usamos de preferência versões curtas.”
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ARTIGO_SIMPLES
A história de Axel Ephraim Anderson não aparece contada em Heart of a Dog, um filme - antestreia no Lisbon & Estoril Film Festival, sábado, 14, 21h30, CCB; estreia marcada apenas para 2016 - sobre o que acontece às histórias quando nos agarramos a elas e as repetimos vezes sem conta: vamos esquecendo um bocado mais de cada vez que as contamos. Mas é contada a história de Mary Louise Anderson, a mãe de Laurie, das suas últimas palavras no leito de morte. A reunir a família para se despedir – “It’s been... it’s been... Oh, thank you very much”. É a voz de Laurie que em Heart of a Dog modula a teatralidade feita de luz e de sombras – espectáculo de um cérebro a desagregar-se – nesse último dia de uma mãe que uma filha não conseguiu amar. A voz de Laurie repete a história em Veneza, durante o festival de cinema – contou-a na conferência de imprensa que marcou a estreia europeia do filme, contou-a nos encontros com os jornalistas, ou seja, vezes sem conta, e de cada vez que se apossou dela certamente se esqueceu dela mais um pouco.
“A minha mãe está a morrer, está à espera de oito pessoas que a rodeiem, e está como se estivesse em frente a um microfone” – a voz de Laurie posiciona-se também frente a um microfone imaginário, oiçam-na, agarrem, mas não vão ter hipótese, é maravilhosa essa impossibilidade, como nos desaparecidos dias da rádio. “‘Obrigada a todos por terem vindo, foi um prazer’... e depois a minha mãe começa a falar com os animais, vê-se claramente que no cérebro algo começa a fechar, rapidamente... ‘Muito obrigado por...’”
“Sentimos a linguagem a desagregar-se e o esforço incrível por se expressar em palavras”, diz Laurie, a voz recuperando uma velocidade de cruzeiro, como se saída de um imperceptível sonho. “Isso está presente de forma obsessiva no filme”. Está. “Como diz Wittegenstein, quando não se consegue descrever uma coisa, essa coisa não existe.” Estão os filósofos, Wittegenstein e Kirkegaard. E os mortos de Laurie, Gordon Matta-Clark, artista plástico, David Foster Wallace, escritor, Lou Reed, músico. É a partir deles que se desenrola o mini-ensaio, todo em modo de captura e fuga, que é Heart of a Dog. Isso quererá dizer algo sobre a relação entre as (nossas) histórias e a morte.
Lições sobre a empatia
Lidando com material tão íntimo, fantasmas, amigos, família – e a cadela Lolabelle –, este fluxo não linear de impressões e associações é surpreendentemente livre de narcisismo. (“Ah yes”, ouve-se de Laurie ainda a meio da nossa observação.) “Este filme não é sobre mim”, responde. “Uso histórias da minha vida, histórias da vida de Gordon Matta-Clark, histórias da minha mãe, do meu cão, mas é um filme sobre histórias, sobre como elas funcionam, sobre o que é que acontece quando nos esquecemos delas, sobre como nos projectamos no futuro com elas. A razão do título, claro, é a empatia. Os cães são criaturas empáticas. E como artista aspiro a ser empática” – foram lições práticas de empatia as que deu na cidade de Veneza.
“O que peço às pessoas que vêem o filme é que se identifiquem com os seus vários níveis, não só comigo. ‘Por favor vejam isto através dos olhos deste cão’. Os jornalistas também sabem que precisam de sair deles próprios para olhar para as coisas sobre que escrevem. Nem todas as histórias têm um bom remate, às vezes é preciso impô-lo. Nem todas as vidas têm um plot, a minha não tem, é uma confusão, as coisas acontecem, vou por aqui, depois por ali, não faz sentido algum. Como documentarista o que quero é captar essa complexidade da história sem fazer um remate. Por isso muito deste filme é sobre a falibilidade da linguagem, o que acontece quando nos esquecemos ou quando repetimos vezes demais. Ou quando apenas não temos as palavras.”
É preciso, então, falar de Lolabelle, o rat terrier de que um casal se quis desenvencilhar durante a sua separação e que Laurie e o marido Lou Reed adoptaram. Lolabelle já morreu, mas nos seus últimos anos de vida foi uma pequena estrela da música, tendo aprendido a tocar piano com a treinadora Elizabeth Weiss (foi a partir dos vídeos que registam essas performances que o canal Arte começou por contactar Anderson para que ela fizesse um filme de vinte minutos sobre a sua “filosofia de vida”; Heart of a Dog, que dura hora e um quarto, é e não é esse filme).
Lolabelle começa por ser enxertada, no início de Heart of a Dog, no corpo da dona, num sonho que ela teve - história que Laurie talvez crie para poder dar à luz Lolabelle, para a luz do filme poder vir de Lolabelle. O que triunfa não é a narrativa do fenómeno animal, o cão é um alibi para o triunfo da empatia.
“Estes cães supostamente entendem 500 das nossas palavras. Mas na verdade utilizei Lolabelle pela empatia. Os cães são criaturas empáticas e a minha aspiração como artista é cultivar a empatia: ver as coisas através do ponto de vista do outro para escapar ao meu. Não sou novaiorquina – sou, antes de tudo, mulher e artista – mas vejo o mundo dessa maneira. Isso pode ser claustrofóbico. Como é que será o mundo de outro ponto de vista? Um cão é um símbolo de empatia e de divertimento. Eles admiram-nos, ao contrário dos gatos. Porque inventámos os carros” – ri-se.
“Arrependo-me de ter levado Lolabelle à Califórnia” – para fugir de Nova Iorque, coberta de cinzas e de medo nos dias de Setembro 2001. “Porque era um cão do West Village, habituado a socializar, a ir às compras, a cruzar-se com pessoas, e quando chegou à Califórnia havia falcões a pairar no céu.” Em Nova Iorque as câmaras de segurança começavam a olhar toda a gente de cima. “No seu cérebro de cão Lolabelle não precisou que lhe dissessem o que eles estavam ali a fazer, ela sabia que eles matavam cães. A ideia não foi fazer do cão uma coisa ‘gira’, mas envolver o espectador nesse espírito de empatia.”
Sigamos os fios que procuram a consistência de um tecido. O que é que isso tem a ver com isto? Poderá ser aquilo? “O que é que acontece quando nos esquecemos das histórias, o que acontece quando repetimos as histórias vezes demais, o que acontece quando não temos palavras para as histórias? Ou quando alguém impõe uma história para dizer quem somos - por exemplo, quando compramos um livro na Amazon e dois minutos depois recebemos a informação: ‘se comprou esse então vai gostar deste’. Somos o cliente, num mundo corporativo, e às vezes começamos a agir e a vestir segundo a história que nos querem impor.” O que é que isso tem a ver com o episódio em que Laurie salva os irmãos de morrerem afogados no buraco no lago gelado em que patinavam? E qual o papel do mestre budista de Anderson, que lhe diz: “Tenta praticar ser triste sem te sentires triste”?
“Tentei, algumas vezes consegui, outras não”, testemunha. “É uma coisa útil. Há imenso sofrimento no mundo, imensa tristeza, a ideia é reconhecer isso e não ficar imobilizado, não nos tornarmos nos sofrimento e na tristeza. Porque essa filosofia é um sistema diferente daquele que avalia a vida, por exemplo, só através do trabalho que fazemos: estamos aqui para nos divertirmos imenso, mesmo. Valorizo muito esta filosofia porque no meu trabalho tenho de lidar com muitas coisas que não são boas. Passa-se o mesmo com os advogados, com actores ou com os cantores que estão incessantemente a cantar canções sobre si próprios - pode-se endoidecer. É preciso desenvolver habilidades de distanciamento.”
Afinal, Laurie, filosofia de vida. “Pediram-me para fazer um filme sobre a minha filosofia de vida. ‘No way’, não tenho e não iria torturar as pessoas com um filme sobre filosofias de vida. Eles responderam: ‘mas há essa coisa dos cães e das histórias”... Heart of a Dog expandiu a partir daí. Acabou por ser um filme sobre a minha filosofia de vida. Há material que só entrou numa fase muito tardia”, caso da história do lago de patinagem. “Aconteceu só porque um irmão me pediu para transferir home movies para video, e quando peguei neles, lá estavam os meus irmãos, o lago, e a história. O mais louco foi perceber que os meus irmãos se lembravam do episódio mas de acordo com a versão deles fui eu que quase os deixei afogar – não se lembravam que também os tinha salvo, que eu tinha sido a heroína, uma grande nadadora naquela tarde. Foi doloroso por eles. Para mim foi uma história em que estava envolvido alguém, eu, que disse a si própria: ‘és uma óptima nadadora’, sem mencionar: ‘mas quase afogaste os teus irmãos’.
Isto, Laurie, serve de remate.