Bébel, o salteador do tesouro perdido
Apanhem-nos, se puderem: Jean-Paul Belmondo e Philippe de Broca, com L'Homme de Rio e com as outras bolhas de felicidade em que criaram Bébel. Coisa fugaz, coisa melancólica. Sejamos salteadores deste cinema perdido.
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Os quem têm menos de 30 anos podem reconhecer o gesto do polegar no lábio inferior com que o delinquente Michel Poiccard se filiou no Bogart de The Harder they Fall (A Bout de Souffle é filme de poster), mas não associam necessariamente Jean-Pierre Melville, Alain Resnais, Claude Chabrol, Claude Sautet ou Louis Malle ao espaço natural de evolução do ex-boxeur. Os que têm mais de 50 querem esquecer os cartazes cheios de auto-irrisão (mas ainda assim gordurosos) que chamaram milhões às salas francesas nos anos 70: iam ver um actor prescindir de cascadeur e a fazer ele próprio as acrobacias – o marketing centrava-se na cascade, e durante dez anos, com início a meio dos anos 70, cada filme de Belmondo valia 3,5 milhões de espectadores franceses.
E no entanto, Costa-Gravas disse que ele podia interpretar tudo.
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Para Jean-Pierre Melville (Léon Morin Prêtre, 1961, Le Doulos, 1962, L’Ainé des Ferchaux, 1963) ele foi o actor mais extraordinário da sua geração.
Alain Resnais falou dele como de um bailarino - exactamente: a dançar flamenco insinuou-se perante Jean Gabin em Un Singe en Hiver (Henri Verneuil, 1962), naquele que alguns antecipavam ser um explosivo desencontro geracional, e conquistou o velho lobo que fez suas as palavras da sua personagem ao dirigir-se à de Belmondo: “Viens, je t’embrasse, t’es mes vingt ans.” Houve encontro – mais do que isso: reconhecimento, “tu és os meus vinte anos”.
O cascadeur Gil Delamare, que o dobrou em alguns filmes, comparou-o a Nureyev.
Michel Audiard, argumentista e autor de diálogos, descreveu-o assim: “O campeão da descontracção, o prémio Nobel do ‘estou-me nas tintas’ [le prix Nobel du je-m’en-foutisme].”
É verdade que há um momento de ruptura na carreira de Belmondo. Chamou-se Stavisky (1974), de Alain Resnais - um daqueles momentos “e se...?”, como se a partir daí nada tivesse sido o mesmo. E se o filme não tivesse sido desancado em Cannes e depois pela crítica, que há cinco anos esperava por uma longa de Resnais? E se não tivesse sido recebido friamente pelo público? Irritado perante a hostilidade, convencendo-se que o “cinema de autor” era beco sem saída, Bateu com a porta. Alguém escreveu que Stavisky foi o seu “último acto de cinefilia” – e investira nele também como produtor. No ano seguinte Peur sur la Ville (1975), de Henri Verneuil, colocava-o já em cima de telhados, em perseguições, versão francesa do americano Dirty Harry. Iniciava-se a reconversão, o cascadeur a tomar conta do actor – em versões cada vez mais grandguignolescas.
O que se propõe aqui, todavia, é qualquer coisa da ordem do sossego perante a angústia ou as dificuldades de um retrato uno. Uma pacificação: a narrativa talvez possa ser unificada, como se se encontrasse as peças em falta num puzzle. Sim, é possível cruzarmo-nos neste momento, através do DVD, com um filme chamado L’Homme de Rio (1963), de Philippe de Broca – uma daquelas edições de “clássicos” que inundam o mercado com títulos em espanhol, embora com a possibilidade de legendas em português. Pode ser uma descoberta ou um reencontro, conforme for o caso de cada um, apanhem se puderem este tesouro. Pode fazer figura de elo que falta - no caso de a memória ter sido injusta –, falando de forma eloquente de um momento em que Belmondo habitava com panache, talvez já sentido de autoirrisão, vários cinemas, como se eles fossem um território natural de expansão que não corria o risco de aprisionamento. Afinal, talvez seja a mesma iconoclastia, que se afirmara na passagem do actor pelo Conservatório e que serviria de bandeira a gerações com o A Bout de Souffle ou com o Pierrot le Fou (1965), a prolongar-se, com dose extra do tal je-m’en-foutisme, pelo L’Animal (1977), de Claude Zidi, que até pode fazer figura de um Last Action Hero (John McTiernan, 1993) avant la lettre.
É uma possibilidade de felicidade regeneradora, L’Homme de Rio, e a felicidade é coisa fugaz. Ali tudo parece possível, o espectáculo para o grande público e a construção de um universo pessoal efervescente mas delicado que foi o do cinema de Philippe de Broca (definitivamente, a memória talvez tenha sido injusta para com ele). Vamos a correr atrás e o filme pode desintegrar-se pelo toque, tal como uma bolha de sabão (assim alguém descreveu a experiência). Com essa segunda colaboração entre o actor e o realizador, depois de Cartouche (1962), filme de capa e espada, e antes Les Tribulations d’Un Chinois en Chine (1965), Jean-Paul e Philippe criaram Bébel, a parte de Belmondo que passou a pertencer a todos, que passou para o lado de cá do ecrã, permitindo que os espectadores franceses tratassem afectuosamente essa irreverência e descontracção por “tu”. Pertenciam todos ao bando – ainda hoje, quando Belmondo tem 82 anos, o afecto perdura, como se viu em Cannes 2013, na homenagem proposta por Thierry Frémaux, a quem se deve, agora, a homenagem do Festival de Lyon, dia 13, com a apresentação do documentário Belmondo par Belmondo.
Fizeram seis filmes em cerca de 40 anos, Jean-Paul e Philippe. L’Homme de Rio é o opus magnum dessa colaboração. O encontro fez o cinema do realizador descolar, definitivamente, dos valores da nouvelle vague (começara como assistente de Chabrol e de Truffaut) em direcção a uma verdade mais convencional e clássica que era a sua, encontrando na pujança de um corpo a elasticidade que a fragilidade de Jean-Pierre Cassel, primeira figuração dos homens em movimento no seu cinema, ainda não permitia – são as primeiras cascades a que Belmondo se atira como um atleta a respirar. E tornou o actor uma figura global naqueles anos. Os franceses não tinham visto divertimento assim, os americanos também se deslumbraram. A publicidade americana, aliás, usou e abusou de um fait divers: Robert Kennedy, o procurador-geral, estava a ver um filme quando a mulher entrou na sala a chamá-lo para ir ver outro, uma coisa estrangeira que deitava uma outra sala abaixo de excitação. Mais relevante, talvez: nesse ano, em Cincinnatti, um jovem chamado Steven Spielberg descobria L’Homme de Rio e décadas depois escrevia a Philippe de Broca a assumir que essa era a inspiração para Os Salteadores da Arca Perdida (1981). Foi-o em sequências inteiras (o final entre grutas), na forma como a música comenta ironicamente a acção mas fundamentalmente na (pós-)modernidade de um herói blasé, o magala interpretado por Belmondo, que nos seus dez dias de licença é arrastado até ao Brasil porque a sua “dama” (Françoise Dorléac) está em apuros por causa de uma estátua perdida.
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Começou por ser um projecto de adaptação de Tintim, que antes passara pelas mãos de Resnais. Passou a ser a hipótese de um filme respirar o espírito de Hergé. No movimento incessante da personagem “au milieu des merveilles” brasileiras, o exotismo é contornado pela elegância e pudor de De Broca, que faz da natureza do Rio de Janeiro e da arquitectura de Brasília, cidade que acabava de nascer, uma aventura de descobertas cinematográficas, experiência da pura emoção das formas.
A sequência de Brasília é um deslumbre de abstracção, o frémito da aventura a tocar um silencioso susto, e a deixar-se tocar por ele: Belmondo, como o Cary Grant no campo de milho em Intriga Internacional, de Hitchcock, a (des)equilibrar-se perante uma espécie de vertigem metafísica, como se o absurdo da acção fosse o rosto da inquietação sobre o que andamos aqui a fazer.
A gravidade acaba por assentar sempre no cinema de Philippe de Broca. Uma parte da sua biografia - o ter sido testemunha das atrocidades cometidas na Argélia, quando trabalhou no departamento cinematográfico do exército – levou-o a decidir que a fantasia passaria a ser a forma de sobreviver ao mundo. Consciente do perigo de superficialidade, disse, utilizou como contraponto a música de Georges Delerue (uma colaboração extensa, embora sempre se associe Delerue a Truffaut e Godard, quase nunca de Philippe de Broca). Mas entra pelos olhos dentro que o cineasta está sempre em guarda perante a sua própria ligeireza. L’Homme de Rio tem um final tão pouco deslumbrado com o seu fogo-de-artifício, com as suas proezas como filme de aventuras, que parece um convite à humildade e ao recolhimento. Com Belmondo, como antes com Cassel e como depois, em tonalidades mais misantrópicas, com Jean Rochefort (o fabuloso Le Cavaleur, de 1979) ou Philippe Noiret, os filmes acabavam sempre por inquietar a correria destas personagens em fuga de si mesmas. Descobrindo na sua insustentável leveza (como se elas quisessem ser apenas corrente de ar...) uma protecção contra o tempo e a decepção dos sentimentos. “Il faut s’emmerder Victor, si on veut faire durer le temps”, dizem a Belmondo em L’Incorrigible (Philippe de Broca, 1975), um filme em que ele muda de guarda roupa, de bigode e de máscara mil vezes. Que é um cinema encantado com elas basta ver Tendre Poulet (1978), com um par inacreditavelmente encantador, Annie Girardot e Philippe Noiret.
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Pode ser uma descoberta ou um reencontro, conforme for o caso de cada um, apanhem se puderem estes tesouros.