Apocalypse Now versão Netflix

Beasts of No Nation, com Idris Elba, não acrescenta nada à coexistência da infância e da guerra.

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Segundo Barbera, as formas de aceder aos filmes mudaram, os festivais têm de mudar sob pena de ficarem para trás - é por isso que as sessões de imprensa estão já longe de estarem cheias no Lido, como se algo tivesse mesmo acontecido durante uma noite e a realidade se descobrisse, numa manhã, irreconhecível?

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Segundo Barbera, as formas de aceder aos filmes mudaram, os festivais têm de mudar sob pena de ficarem para trás - é por isso que as sessões de imprensa estão já longe de estarem cheias no Lido, como se algo tivesse mesmo acontecido durante uma noite e a realidade se descobrisse, numa manhã, irreconhecível?

Beasts of No Nation, de Cary Fukunaga, é o título que, agora citando a produtora Amy Kaufman, “tem o potencial de mudar a percepção das pessoas em relação à forma como os filmes e a arte lhes chega”. Que seja um filme sobre um estado de guerra enche a coisa de ressonâncias – tudo para potenciar ainda mais o perfil mediático que os envolvidos na produção querem trabalhar, até porque não podem ainda passar sem a clássica exibição em sala, ou não haverá candidatura a Óscares.

O Festival de Veneza tenta adequar-se – a Netflix chega a Itália em Outubro, tal como em Portugal, a “coexistência” tem de ser o tom. Já deu para fazer do pequeno Abraham Attah uma das “personalidades” desta edição: interpreta a personagem de Agu, a criança de um país africano que, tal como no livro do escritor de origem nigeriana Uzodinma Iweala, perante a devastação que a guerra civil causou na sua família, deixa-se converter à mística sedutora de um senhor da guerra, o Comandante (Idris Elba). Que o perverte, que o violenta, que o transforma numa máquina de matar. Imagine-se a implacabilidade da criança de O Tambor, de Volker Schlondorff (o filme de 1979 adaptado da obra de Günter Grass) trabalhada pelo Kurtz de Apocalypse Now, o filme de Coppola…Na verdade, Beasts of No Nation não acrescenta nada à coexistência da infância e da guerra, que é uma fasquia, marcada por exemplos tão cinematograficamente eloquentes (ainda Rossellini, ainda Elem Klimov…), a que o filme de Fukunaga está longe de chegar. A reiteração é a única possibilidade. Por exemplo, fazer fogo-de-artifício com a voz off de quem (re)ordena o seu mundo ou com os rituais de sedução do mal (Idris Elba parece estar a fazer o mesmo que Forest Whitaker fez como Idi Amin em The Last King of Scotland). E tratar tudo isso como puro mecanismo repetitivo, provocando danos de insensibilização e de cansaço – por isso a palavra “pornografia” saltou várias vezes num diálogo entre jornalistas à saída da sessão para a imprensa.

Cary Fukunaga vem do milieu da ciência política, a sua área de investigação são os conflitos africanos numa realidade pós-colonial. A sua entrada no departamento de cinema da New York University fez-se com um tratamento de argumento baseado nas suas pesquisas. Foi esse conhecimento que, contou ele, permitiu que uma obra muito esquiva como é a de Uzodinma Iweala fosse concretizada no filme: deu-lhe pormenores, contexto. Valeu ter ido à conferência de imprensa do filme ouvi-lo, para aliviar o odor que Beasts of No Nation deixa connosco: o cinema tem um potencial de desumanização, tal como a violência, abusando de tudo aquilo em que pega. Porque aí, ao ouvir-se Cary e Abraham falarem da décalage imposta por uma rodagem à realidade, ao contarem como algumas cenas foram filmadas – uma sequência de massacre não passava, por exemplo, para os envolvidos, de uma possibilidade de jogo – houve como que uma restituição de humanidade.

Sem Grace

A competição de Veneza mostra-se então ainda longe de atingir a graça. Mas há quem procure Grace. O último plano de Looking for Grace, da australiana Sue Brooks, quer possibilitar uma miragem, um reencontro, depois de ter havido uma morte numa família. Mas custa tanto chegar lá, os caminhos são tão ínvios, que não resta crença para esse plano e não se acredita na forma como o filme acreditou.

Começará a perceber-se cedo que a história de um casal que procura a filha adolescente desaparecida após ela ter roubado o cofre familiar não era isso, na verdade, não era a história da busca de Grace (Odessa Young). Era a história de uma família em busca de si própria. O filme parece querer fazer corpo com esse vazio, negando a possibilidade de centro narrativo, criando pontos de vista diferentes, os de três ou quatro personagens que se cruzam no dia em que os pais resolvem ir à procura de Grace – entra ainda na estrada que atravessa o deserto australiano um detective que não se consola com a pasmaceira da sua reforma. Essa multiplicação, que atribui a cada personagem o seu pedaço de história dentro da história, nunca deixa o filme estabilizar num registo e há muitas vezes a sensação de que realizadora (longe de ser inexperiente, esta é a sua quinta longa-metragem) e actores flutuaram ao sabor da indecisão, entre a intensidade e o anedótico. O filme também não tem Grace para procurar, porque se procura a si mesmo. Mas nunca se reencontra, a promessa final de horizonte é miragem.