Eles atiraram bombas, eles fizeram filmes
Alguns dos acontecimentos do próximo DocLisboa, que se realiza entre Outubro e Novembro, vão ser anunciados na quinta-feira. Um ciclo sobre a representação do terrorismo no cinema é uma das armas da edição 2015.
Quando Elephant, de Alan Clarke, produção da BBC Northern Ireland, foi exibido pela BBC2, em Janeiro de 1989, David Leland, escritor, realizador, argumentista e colaborador de Clarke (escreveu Made in Britain, filme de 1983 que daria a Tim Roth um papel de skinhead), estava na cama e pensou em voz alta: “‘Pára, Alan, não podes continuar a fazer isto’. E com o efeito cumulativo dizemos a nós próprios: ‘Isto tem de parar. A matança tem de parar’. De forma instintiva, sem processo intelectual, torna-se uma reacção visceral”.
No seu último filme para televisão (nascido em 1935, Clarke morreria de cancro em 1990), o cineasta armava o seu realismo social com um minimalismo de chumbo e trazia o “elefante” para a sala de estar dessensibilizada dos anos Thatcher – o título do filme (que haveria de inspirar Gus Van Sant, e os movimentos da steadycam, no filme que o americano realizou em 2003 sobre a matança nos liceus americanos) citava uma afirmação do escritor de Belfast Bernard MacLaverty que descrevia os “problemas” na Irlanda do Norte como “um elefante na sala de estar” que todos ignoravam, ruído de fundo para a anestesia colectiva.
Foi esse filme, que é um back to basics de gestos, rituais e de iconografia à espera do que possa deflagrar durante a experiência de visão do espectador, que inspirou os directores e programadores do DocLisboa para um ciclo que está em pensamento há três anos e que se concretizará nesta edição – novidades a apresentar em conferência de imprensa, dia 15, 17h, na sala 3 do Cinema São Jorge, em Lisboa. “É um momento importante para debatermos este assunto”, justifica Cíntia Gil, da direcção do Doc (com Davide Oberto e Tiago Afonso). “Estamos numa nova vaga de exuberância dessa palavra. Mas também de regulamentação do termo ‘terrorismo’ nos sistemas jurídicos dos vários estados para assentarem um sentido da palavra” – tal como foi preciso os programadores fixarem um sentido da palavra antes de decidirem, por exemplo, se documentos sobre os Black Panthers cabiam ou não num ciclo sobre “terrorismo” (não cabiam, decidiram).
O ciclo tem por título Terrorismo, Representação. Porque, diz Cíntia, os filmes a apresentar não são “um testemunho”, são “uma representação”. Não é também “um ciclo jornalístico” com ambição enciclopédica. É um percurso pelas formas como o cinema representou o terrorismo e como com isso representou – por exemplo – uma ideia de revolução. Se o filme de Alan Clarke desencadeou o ciclo, ele desenrola-se sob a égide de Rainer Werner Fassbinder. Um pós-título poderá ser “Não atiro bombas, faço filmes”. Era a frase do cartaz de A Terceira Geração (1979). Não é esse o filme do cineasta alemão que se exibe – os programadores decidiram excluir títulos mais conhecidos em favor de obras desconhecidas ou com menor visibilidade. Dele (e de Volker Schlondorff, e de Alexander Kluge, e de Edgar Reitz, e de outros...) se verá, antes, o filme colectivo Alemanha no Outono (1978). Era dessa forma que o Novo Cinema Alemão reagia a quente aos actos dos Baader-Meinhof e à retaliação do Estado alemão – o episódio de Fassbinder, em que ele discute com a mãe à mesa, quando acaba de saber do suicídio colectivo dos elementos da Facção do Exército Vermelho na prisão de Stammheim, é produto de um choque mas lança para a mesa familiar temas com uma lucidez que galgou décadas e que se transformou em presente: é assunto dos nossos dias e formulado como nos nossos dias, tal como o é a reverberação das ondas de choque públicas na esfera privada.
Eram militantes de extrema-esquerda, eram cineastas, atiraram bombas e fizeram filmes: Holger Meins e Ulrike Meinhof. Excertos dos seus filmes puderam ser vistos há meses no documentário de Jean-Gabriel Périot, Une Jeunesse Allemande, exibido no IndieLisboa: o pedaço com a estafeta da bandeira da revolução pertence a um filme de Meins, a conversa entre duas raparigas que querem sair de uma instituição que as encerra e “partir tudo”, é de Bambule, de 1970, filme que a jornalista Ulrike, ainda não no underground, escreveu para Eberhard Itzenplitz e para a TV. No Doc teremos, então, essas “bombas”. Assim como The State I Am In, primeiro filme para o grande ecrã de Christian Petzold (Phoenix), história de um casal de ex-terroristas que vê o seu disfarce de 15 anos ser exposto pela filha. Ou United Red Army, de Koji Wakamatsu (2007), três horas, três actos, com material de arquivo a explicar os movimentos radicais estudantis japoneses dos anos 1960/1970, do documental ao thriller. Ainda, Colpire al Cuore (1982), de Gianni Amelio, título que parte de uma expressão do fraseado revolucionário da extrema esquerda italiana dos anos 70 e 80 – atingir o coração do Estado capitalista – para contar a história de um golpe no coração familiar: um filho entrega o pai (Jean-Louis Trintignant) à polícia.
A relação entre um pai, industrial (Ugo Tognazzi), e o seu filho que foi raptado - vítima das Brigadas Vermelhas ou instrumento delas? –, está no centro daquele que talvez seja o maior filme de Bernardo Bertolucci, A Tragédia de um Homem Ridículo (1981). Obra sobre uma realidade ilegível, filme de um desgosto insanável sobre a fealdade que cobria a Itália dos anos de chumbo, é irrespirável, continua por deslindar, e depois desse paroxismo Bertolucci só podia fugir para longe, a China, e intoxicar-se pela “beleza”, com aconteceu no seguinte O Último Imperador.
É um dos títulos programados para o ciclo, mas ainda à espera de confirmação. Tal como Messer im Kopf/Knife in the Head, de Reinhard Hauf (Bruno Ganz é um cientista afásico, acusado pelas autoridades de ter esfaqueado um polícia, de ser terrorista, e elevado pelos radicais a vítima da brutalidade policial – campo aberto à exploração temática deste ciclo); Les Ordres, de Michel Brault, docuficção (e prémio de realização em Cannes 1975) a partir das histórias da prisão de cidadãos sem culpa formada durante semanas, em resultado das acções de rapto da denominada Frente de Libertação do Quebec.
No alinhamento da conferência de quinta-feira, e para criar clima no anúncio do ciclo, será exibido Running on Empty, de Sidney Lumet (1988), com River Phoenix. Será ainda anunciado o desaparecimento da secção Investigações, que constituía uma quota para os documentários que privilegiavam a pesquisa temática sobre o trabalho formal, abordagem com a qual a actual direcção do Doc nunca se identificou – mas o prémio Investigações permanece, o júri terá de o atribuir a partir de uma única secção competitiva que, também a partir desta edição, deixará de separar as curtas das longas-metragens, porque, dizem os directores, o festival interessa-se sem distinção de géneros ou durações pela relação dos cineastas com o real, seus protocolos e métodos.
A retrospectiva dedicada ao sérvio Želimir Žilnik, cineasta cuja obra nasce com a sublevação estudantil na Checoslováquia, depois da invasão soviética de 1968, debate-se com a censura no Jugoslávia e acompanha a reconfiguração territorial, com a implosão do Leste, vai ser uma descoberta para os espectadores, assegura o Doc. Para já está a ser uma descoberta para os programadores – Tiago Afonso, da direcção, fala em “coisas dilacerantes, de uma liberdade incrível”. Programada por Augusto M. Seabra (crítico do PÚBLICO), a secção Riscos vai radicalizar os seus pressupostos: ficções do real, auto-retratos, trabalho sobre o arquivo e a found footage. Seabra anuncia um autor em foco, “um nome fundamental do cinema etnográfico”, Robert Gardner (1925-2014), ciclo em colaboração com o Harvard Film Archive – entre 1957 e 1997, Gardner dirigiu o Film Study Center de Harvard. É com o Harvard Film Archive que a secção Riscos do próximo Doc apresenta ainda um dos acontecimentos do festival: Five Year Diary (1981-1997), um dos “arquivos” deixados por Anne Charlotte Robertson (1949–2012), que enfrentou a desordem mental com a ajuda do Super 8: exposição, terapia, catarse e... a existência.
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Quando Elephant, de Alan Clarke, produção da BBC Northern Ireland, foi exibido pela BBC2, em Janeiro de 1989, David Leland, escritor, realizador, argumentista e colaborador de Clarke (escreveu Made in Britain, filme de 1983 que daria a Tim Roth um papel de skinhead), estava na cama e pensou em voz alta: “‘Pára, Alan, não podes continuar a fazer isto’. E com o efeito cumulativo dizemos a nós próprios: ‘Isto tem de parar. A matança tem de parar’. De forma instintiva, sem processo intelectual, torna-se uma reacção visceral”.
No seu último filme para televisão (nascido em 1935, Clarke morreria de cancro em 1990), o cineasta armava o seu realismo social com um minimalismo de chumbo e trazia o “elefante” para a sala de estar dessensibilizada dos anos Thatcher – o título do filme (que haveria de inspirar Gus Van Sant, e os movimentos da steadycam, no filme que o americano realizou em 2003 sobre a matança nos liceus americanos) citava uma afirmação do escritor de Belfast Bernard MacLaverty que descrevia os “problemas” na Irlanda do Norte como “um elefante na sala de estar” que todos ignoravam, ruído de fundo para a anestesia colectiva.
Foi esse filme, que é um back to basics de gestos, rituais e de iconografia à espera do que possa deflagrar durante a experiência de visão do espectador, que inspirou os directores e programadores do DocLisboa para um ciclo que está em pensamento há três anos e que se concretizará nesta edição – novidades a apresentar em conferência de imprensa, dia 15, 17h, na sala 3 do Cinema São Jorge, em Lisboa. “É um momento importante para debatermos este assunto”, justifica Cíntia Gil, da direcção do Doc (com Davide Oberto e Tiago Afonso). “Estamos numa nova vaga de exuberância dessa palavra. Mas também de regulamentação do termo ‘terrorismo’ nos sistemas jurídicos dos vários estados para assentarem um sentido da palavra” – tal como foi preciso os programadores fixarem um sentido da palavra antes de decidirem, por exemplo, se documentos sobre os Black Panthers cabiam ou não num ciclo sobre “terrorismo” (não cabiam, decidiram).
O ciclo tem por título Terrorismo, Representação. Porque, diz Cíntia, os filmes a apresentar não são “um testemunho”, são “uma representação”. Não é também “um ciclo jornalístico” com ambição enciclopédica. É um percurso pelas formas como o cinema representou o terrorismo e como com isso representou – por exemplo – uma ideia de revolução. Se o filme de Alan Clarke desencadeou o ciclo, ele desenrola-se sob a égide de Rainer Werner Fassbinder. Um pós-título poderá ser “Não atiro bombas, faço filmes”. Era a frase do cartaz de A Terceira Geração (1979). Não é esse o filme do cineasta alemão que se exibe – os programadores decidiram excluir títulos mais conhecidos em favor de obras desconhecidas ou com menor visibilidade. Dele (e de Volker Schlondorff, e de Alexander Kluge, e de Edgar Reitz, e de outros...) se verá, antes, o filme colectivo Alemanha no Outono (1978). Era dessa forma que o Novo Cinema Alemão reagia a quente aos actos dos Baader-Meinhof e à retaliação do Estado alemão – o episódio de Fassbinder, em que ele discute com a mãe à mesa, quando acaba de saber do suicídio colectivo dos elementos da Facção do Exército Vermelho na prisão de Stammheim, é produto de um choque mas lança para a mesa familiar temas com uma lucidez que galgou décadas e que se transformou em presente: é assunto dos nossos dias e formulado como nos nossos dias, tal como o é a reverberação das ondas de choque públicas na esfera privada.
Eram militantes de extrema-esquerda, eram cineastas, atiraram bombas e fizeram filmes: Holger Meins e Ulrike Meinhof. Excertos dos seus filmes puderam ser vistos há meses no documentário de Jean-Gabriel Périot, Une Jeunesse Allemande, exibido no IndieLisboa: o pedaço com a estafeta da bandeira da revolução pertence a um filme de Meins, a conversa entre duas raparigas que querem sair de uma instituição que as encerra e “partir tudo”, é de Bambule, de 1970, filme que a jornalista Ulrike, ainda não no underground, escreveu para Eberhard Itzenplitz e para a TV. No Doc teremos, então, essas “bombas”. Assim como The State I Am In, primeiro filme para o grande ecrã de Christian Petzold (Phoenix), história de um casal de ex-terroristas que vê o seu disfarce de 15 anos ser exposto pela filha. Ou United Red Army, de Koji Wakamatsu (2007), três horas, três actos, com material de arquivo a explicar os movimentos radicais estudantis japoneses dos anos 1960/1970, do documental ao thriller. Ainda, Colpire al Cuore (1982), de Gianni Amelio, título que parte de uma expressão do fraseado revolucionário da extrema esquerda italiana dos anos 70 e 80 – atingir o coração do Estado capitalista – para contar a história de um golpe no coração familiar: um filho entrega o pai (Jean-Louis Trintignant) à polícia.
A relação entre um pai, industrial (Ugo Tognazzi), e o seu filho que foi raptado - vítima das Brigadas Vermelhas ou instrumento delas? –, está no centro daquele que talvez seja o maior filme de Bernardo Bertolucci, A Tragédia de um Homem Ridículo (1981). Obra sobre uma realidade ilegível, filme de um desgosto insanável sobre a fealdade que cobria a Itália dos anos de chumbo, é irrespirável, continua por deslindar, e depois desse paroxismo Bertolucci só podia fugir para longe, a China, e intoxicar-se pela “beleza”, com aconteceu no seguinte O Último Imperador.
É um dos títulos programados para o ciclo, mas ainda à espera de confirmação. Tal como Messer im Kopf/Knife in the Head, de Reinhard Hauf (Bruno Ganz é um cientista afásico, acusado pelas autoridades de ter esfaqueado um polícia, de ser terrorista, e elevado pelos radicais a vítima da brutalidade policial – campo aberto à exploração temática deste ciclo); Les Ordres, de Michel Brault, docuficção (e prémio de realização em Cannes 1975) a partir das histórias da prisão de cidadãos sem culpa formada durante semanas, em resultado das acções de rapto da denominada Frente de Libertação do Quebec.
No alinhamento da conferência de quinta-feira, e para criar clima no anúncio do ciclo, será exibido Running on Empty, de Sidney Lumet (1988), com River Phoenix. Será ainda anunciado o desaparecimento da secção Investigações, que constituía uma quota para os documentários que privilegiavam a pesquisa temática sobre o trabalho formal, abordagem com a qual a actual direcção do Doc nunca se identificou – mas o prémio Investigações permanece, o júri terá de o atribuir a partir de uma única secção competitiva que, também a partir desta edição, deixará de separar as curtas das longas-metragens, porque, dizem os directores, o festival interessa-se sem distinção de géneros ou durações pela relação dos cineastas com o real, seus protocolos e métodos.
A retrospectiva dedicada ao sérvio Želimir Žilnik, cineasta cuja obra nasce com a sublevação estudantil na Checoslováquia, depois da invasão soviética de 1968, debate-se com a censura no Jugoslávia e acompanha a reconfiguração territorial, com a implosão do Leste, vai ser uma descoberta para os espectadores, assegura o Doc. Para já está a ser uma descoberta para os programadores – Tiago Afonso, da direcção, fala em “coisas dilacerantes, de uma liberdade incrível”. Programada por Augusto M. Seabra (crítico do PÚBLICO), a secção Riscos vai radicalizar os seus pressupostos: ficções do real, auto-retratos, trabalho sobre o arquivo e a found footage. Seabra anuncia um autor em foco, “um nome fundamental do cinema etnográfico”, Robert Gardner (1925-2014), ciclo em colaboração com o Harvard Film Archive – entre 1957 e 1997, Gardner dirigiu o Film Study Center de Harvard. É com o Harvard Film Archive que a secção Riscos do próximo Doc apresenta ainda um dos acontecimentos do festival: Five Year Diary (1981-1997), um dos “arquivos” deixados por Anne Charlotte Robertson (1949–2012), que enfrentou a desordem mental com a ajuda do Super 8: exposição, terapia, catarse e... a existência.