GermanExit

A história demonstra-nos que a semi-hegemonia alemã sempre esteve associada ao despontar de algum tipo de conflitualidade no quadro europeu.

Talvez essa seja a única forma de a Alemanha colectivamente discutir se está ou não a regressar ao período 1871-1945, em busca de uma via alemã, ou se continua empenhada na construção de uma via europeia de desenvolvimento.

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Talvez essa seja a única forma de a Alemanha colectivamente discutir se está ou não a regressar ao período 1871-1945, em busca de uma via alemã, ou se continua empenhada na construção de uma via europeia de desenvolvimento.

Todos sabemos que o euro foi, literalmente, a “moeda de troca” oferecida pela França, e restantes membros da Comunidade Europeia, para que a Alemanha pudesse avançar com a reunificação após a queda do muro de Berlim.

Essa moeda de troca surgiu porque na década de 1990 as palavras proferidas em 1953 pelo escritor alemão Thomas Mann, sobre o anseio de uma Alemanha europeia em vez de uma Europa alemã, continuavam actuais para uma geração de dirigentes políticos que havia vivido pelo menos uma guerra mundial iniciada pela Alemanha.

Muitos de nós também se lembram do sociólogo alemão Ulrich Beck ter argumentado, nos seus últimos anos de vida, que a prática política europeia da chanceler Merkel e, de uma parte da actual classe política alemã, se constituía numa doutrina que o sociólogo cunhou de Merkiavelismo.

Beck lembrava que o Merkiavelismo não é um mero conceito mas sim a caracterização de uma prática. Uma prática que, acrescentaria eu, pode ser ilustrada pelas palavras do filósofo alemão Jurgen Habermas quando questionou um diplomata alemão em Lisboa sobre “por que é que a chanceler apela ao que de pior há em nós e não àquilo que de melhor há em nós?” numa referência às palavras de Merkel sobre a idade de reforma no Sul da Europa.

Também é do conhecimento geral que a crise europeia preocupa mas também beneficia a Alemanha porque, em primeiro lugar, um euro como o actual, de valor baixo, é preferível a um marco alemão demasiado caro para ser sustentáculo de uma economia exportadora. E, em segundo lugar, a Alemanha nunca obteve nos últimos 100 anos, de modo continuado, um tão baixo custo para o financiamento da sua dívida nacional como com as actuais situações criadas pelas baixas taxas do BCE.

Temos dissecado até à exaustão os gregos e as suas dificuldades, os seus erros, a gestão política interna da crise e a intervenção da troika na Grécia mas, porque temos estado demasiado preocupados com a Grécia, não temos podido ajudar a Alemanha a não se deixar tentar por um exercício de poder que torne a Europa demasiado alemã e a Alemanha muito pouco europeia.

É a esse paradoxo que se refere Hans Kundnani no seu livro The Paradox of German Power quando argumenta que a “questão alemã”, e consequentemente a história, regressou ao debate europeu.

Uma parte substancial dos alemães, incluindo diplomatas, políticos e analistas, sente-se ofendida por essas percepções de regresso da história, pois são muitos os que acham que a história do seu país no pré-1945 é irrelevante para a actual crise europeia. O seu argumento é que não pode haver de novo um problema do “poder alemão” pois conceitos como o de hegemonia alemã são parte do passado e que tanto os alemães quanto a Europa mudaram.

A ideia de que hegemonia alemã é um conceito anacrónico é verdade, mas isso não quer dizer que não haja de novo uma “questão alemã” que leve a comparações com a história e permita, pelo menos questionar, se o longo caminho de aproximação da Alemanha ao ocidente europeu, que teve o seu auge com a República Federal Alemã, não estará a ser comprometido pela própria evolução económica alemã da pós-reunificação?

O argumento é poderoso porque permite encontrar uma explicação para a prática do Merkiavelismo e para o esbater de posições entre CDU e SPD a troco de uma política alemã comum para a Europa.

Hans Kundnani argumenta que os desenvolvimentos ocorridos desde que a crise do euro se iniciou, em 2010, podem em grande parte ser explicadas pela transformação da identidade nacional e da economia alemã que ocorreram nas duas décadas que mediaram entre a reunificação das duas Alemanhas e a crise do euro.

A crise impulsionou a Alemanha para uma posição de extraordinário poder que lhe permitiu impor as suas preferências ao resto da Europa. No entanto, ao invés de criar estabilidade, a abordagem alemã à crise criou, essencialmente, instabilidade na Europa – tal como estamos nesta mesma semana a assistir com a possibilidade de Grexit.

Ou seja, a Alemanha é hoje, tal como no período 1871-1945, suficientemente forte para tentar impor a sua vontade através de regras mas, ao mesmo tempo, não é suficientemente forte para o fazer.

A história demonstra-nos que a semi-hegemonia alemã sempre esteve associada ao despontar de algum tipo de conflitualidade no quadro europeu. No entanto, o perigo que hoje vemos surgir não é o de conflito militar mas sim uma versão geo-económica dos conflitos que grassaram na Europa no seguimento da unificação alemã de 1871.

A Alemanha, ao insistir em continuar este caminho, está a colocar uma pressão impossível nos seus parceiros da União Monetária- a qual deixou de poder ser considerada uma área de moeda única para ser uma área monetária construída em torno de um país central, a Alemanha, que estruturalmente absorve liquidez.

À medida que as regras exportadas pela Alemanha não surtem efeito, vamos aproximando-nos, cada vez mais, do imperativo de ter de criar novas coligações para tentar resolver a conflitualidade existente e, assim, somos cada vez mais empurrados para um regresso às dinâmicas de formação de coligações entre os grandes poderes na Europa anteriores a 1945.

Por enquanto, como esta é uma crise que envolve dívidas, os devedores tentam diferenciar-se uns dos outros, tornando-se assim mais fracos perante os credores, e uma nova solução vai sendo sempre adiada  – a situação tipo de que “Portugal não é a Grécia” e a França não é a Itália e, esta última, não é a Espanha e assim sucessivamente.

No entanto, a questão central é saber quantos conflitos mais no seio do euro serão necessários para resolver esta dinâmica na Europa e vermos surgir coligações já não na zona euro mas no todo da EU, opondo-se àquelas conduzidas pela Alemanha?

Estaremos condenados a regressar ao “pesadelo das coligações” abandonando a ideia de que a Alemanha está rodeada de parceiros da União para passar a estar rodeada por “aqueles que querem irresponsavelmente um euro fraco”?

Sendo o euro simultaneamente uma moeda europeia e um depositário simbólico do orgulho alemão no seu desaparecido marco, pois permite o “milagre exportador”, estaremos condenados a que a crise do euro não se resolva até que um colapso à escala europeia ocorra?

A Europa vive nestes últimos anos uma situação de crise que, em parte, não foi por si causada, mas onde as actuações dos diferentes políticos e bancos centrais (incluindo o BCE) criaram as condições para que historicamente ela venha a ser lembrada como tendo o seu epicentro aqui e como marcando o início de um lento definhar da União Europeia.

Precisamos de um referendo alemão sobre a manutenção da Alemanha no euro porque, para além de ser uma possível solução para a crise do euro como propôs George Soros, é a única maneira de criar um curto-circuito na dialéctica entre devedores e credores e de fazer um restart à dinâmica europeia para que tudo não termine num enorme shutdown.

Só contrapondo um GermanExit ao Grexit poderemos aspirar a fazer a actual Alemanha regressar, por sua iniciativa, a uma clara via de construção europeia em parcerias construtivas e não em coligações conflituais. A escolha é sua chanceler Merkel.

Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris