Miracolo, miracolo!, é Mario Monicelli
Efervescente, triste, eufórica, terminal - eis a "comédia à italiana" versão Mario Monicelli. Nove filmes, muitos deles gloriosos, na Cinemateca. Começa sexta-feira.
Chama-se O Ladrão Apaixonado/Risate di Gioia (1960). Haverá outros planos, outras sequências, que podem exemplificar a “comédia à italiana” – género que dominaria os ecrãs mundiais entre os anos 50 e 70 – no tom Monicelli. Mas há uma tocante síntese do cinema do grande Mario na abertura de Risate di Gioia (quinta-feira, dia 18, 19h): uma explosão de balões num baile de final de ano, Roma em 1960, coisa efervescente, triste, eufórica, terminal – é champanhe. Monicelli deu sinais de irritação, um dia, numa entrevista, quando lhe falaram dos diálogos divertidos. O filme não era divertido, obstou, estava cheio de falhados, de gente que não encontra o seu lugar – nem na cidade, essa Roma que por aqueles anos estava a ser mitificada como La Dolce Vita. Era isto, concluía, a “comédia à italiana”: nada a ver com diálogos ou com piadas, mas com um fôlego capaz de respirar ferocidade (riso, também) e de ser abalroado pela tristeza e pela morte. Isso podia cobrir qualquer “género”, ensopar um filme de guerra (La Grande Guerra/A Grande Guerra, 1959) ou um film noir (Gangsters Falhados/I Solitti Ignoti, 1958). Era isso, finalmente, o “à italiana”.
Entre os dias 12 e 24 de Junho, entre Gangsters Falhados e Um Herói do Nosso Tempo/ Un eroe dei nostri tempi (1955) – os filmes que abrem e fecham o ciclo –, vamos encontrar gente a caminhar da merda à glória sem sair da merda, como os miseráveis cavaleiros medievais comandados pela impostura de Vittorio Gassman em O Capitão Brancaleone/ L’Armata Brancaleone, de 1966 (dia 22, 21h30). Vamos encontrar gente colocada na periferia, a vida escravizada perante um frigorífico e outros acenos do boom económico italiano.
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Chama-se O Ladrão Apaixonado/Risate di Gioia (1960). Haverá outros planos, outras sequências, que podem exemplificar a “comédia à italiana” – género que dominaria os ecrãs mundiais entre os anos 50 e 70 – no tom Monicelli. Mas há uma tocante síntese do cinema do grande Mario na abertura de Risate di Gioia (quinta-feira, dia 18, 19h): uma explosão de balões num baile de final de ano, Roma em 1960, coisa efervescente, triste, eufórica, terminal – é champanhe. Monicelli deu sinais de irritação, um dia, numa entrevista, quando lhe falaram dos diálogos divertidos. O filme não era divertido, obstou, estava cheio de falhados, de gente que não encontra o seu lugar – nem na cidade, essa Roma que por aqueles anos estava a ser mitificada como La Dolce Vita. Era isto, concluía, a “comédia à italiana”: nada a ver com diálogos ou com piadas, mas com um fôlego capaz de respirar ferocidade (riso, também) e de ser abalroado pela tristeza e pela morte. Isso podia cobrir qualquer “género”, ensopar um filme de guerra (La Grande Guerra/A Grande Guerra, 1959) ou um film noir (Gangsters Falhados/I Solitti Ignoti, 1958). Era isso, finalmente, o “à italiana”.
Entre os dias 12 e 24 de Junho, entre Gangsters Falhados e Um Herói do Nosso Tempo/ Un eroe dei nostri tempi (1955) – os filmes que abrem e fecham o ciclo –, vamos encontrar gente a caminhar da merda à glória sem sair da merda, como os miseráveis cavaleiros medievais comandados pela impostura de Vittorio Gassman em O Capitão Brancaleone/ L’Armata Brancaleone, de 1966 (dia 22, 21h30). Vamos encontrar gente colocada na periferia, a vida escravizada perante um frigorífico e outros acenos do boom económico italiano.
Roma, de Monicelli
Risate di Gioia, adaptado a partir de duas novelas de Alberto Moravia, é uma liturgia pelos que não vão ganhar. Anna Magnani e Totò não cabem na cidade, como não cabia o par de recém-casados e sem casa de Renzo e Lucianna, o lírico episódio de Monicelli para Bocaccio 70 que na altura foi retirado da distribuição internacional por não se adequar ao conjunto formado por Visconti, Fellini e DeSica, e que afinal era o melhor deles todos e é uma obra-prima.
Roma e os seus fogos-de-artifício de réveillon expulsam Magnani e Totò. Ele vive de expedientes, tem uma sabedoria clássica que o desenrasca (mal). Ela é figurante na Cinecittà. Acabam por se juntar numa noite em que apenas servem para fazer número num cortejo pela cidade.
Roma começava a ser “Hollywood no Tibre”, invadida por turistas, estrelas e carros americanos. Magnani e Totò, resistentes, pedem licença para participar da festa. Pode ver-se Risate di Gioia como um La Dolce Vita dos pobres, comentário ao fim de um tempo, retrato nostálgico, para acabar com a nostalgia, de uma cidade. Monicelli contava que com a rodagem aconteceu pela última vez a possibilidade de filmar Roma pela noite e madrugada fora sem incómodos; a cidade podia ainda ser experimentada vazia. Com o que veio depois, La Dolce Vita, deixou de ser possível. O filme de Fellini estreou em Fevereiro de 1960, Monicelli começou a filmar o seu em Maio desse ano. Não é de espantar a picardia do underdog de uma segunda linha do cinema italiano perante os pavões de uma primeira linha, Fellini, Antonioni, Visconti e etc, que faziam sombra – há outro exemplo desta luta de classes, a irresistível referência à noia e à incomunicabilidade antonionianas em A Ultrapassagem, de Dino Risi (1962).
A Roma de Risate di Gioia é um espectáculo a céu aberto com o fim. Quando o filme vai buscar a personagem de Magnani, porque alguém se lembra dela para integrar o grupo de convivas do último dia do ano, ela está nos estúdios da Cinecittà a gritar “Miracolo, Miracolo” num peplum. É uma súbita “passagem" para a antiguidade que investe Risate di Gioia de uma potência épica, apesar do maravilhoso tom que tira hipóteses a qualquer gigantismo: uma arena sobre as movimentações e a História do cinema popular italiano. Há um momento de arrepiar, quando as personagens vão dar a uma mansão de milionários alemães: os “penetras” são identificados pela luz que irrompe de uma porta que se abre e os paralisa, como se os encostasse à parede – encostando à parede aquela que fora a protagonista de Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini, 1945), o filme sobre a cidade tomada pelos nazis. Eis então Roma, em 1960, cidade novamente ocupada. Magnani há-de gritar de novo “miracolo, miracolo”, mas ninguém acredita, nem ela, em milagres.
Uma das razões que fizeram Monicelli apreciar só mais tarde o filme foi a memória da difícil Magnani: as imposições em relação à forma como permitia ser enquadrada, a implicação com Totò, presença que considerava desprestigiante. Não é nada que se sinta em Risate di Gioia. Pelo contrário, um dos momentos mais tocantes é o de uma milagrosa sintonia entre os dois – quando improvisam uma canção, por exemplo, permitindo-se e ao filme uma viagem feliz e dolorosa ao passado de ambos como artistas de revista.
É uma viagem dentro do ciclo: Vida de Cão/Vita da Cani, de 1950 (segunda-feira, dia 15, 19h), é um nada edulcorante retrato de um grupo a fugir da miséria (mais uma vez), troupe a correr, ofegante, de um espectáculo ao outro, Milão-Roma-Milão, sem sair do mesmo sítio (mais uma vez). É um dos oito filmes que Monicelli dirigiu com Steno, com quem formara logo no pós-guerra uma dupla de argumentistas. Um dos títulos emblemáticos dessa colaboração vai ser exibido, Polícia e Ladrão/ Guardie e ladri, de 1951 (terça-feira, dia 16, 21h30).
Viagem, então, ao “antes” de Monicelli: na sua autobiografia, L’Arte della commedia, dá conta desses tempos em que, primeiro com os argumentos com Steno, depois nos filmes co-realizados e que serviram de veículo a Totò, documentava o quotidiano nascido do pós-guerra, “a mimetização do fascismo, a falsa democracia”, o clientelismo e a corrupção... aquilo que mais tarde tornaria Alberto Sordi vulnerável e abjecto, arrivista e rastejante, em Um Herói dos Nossos Tempos/Un Eroe dei Nostri Tempi, de 1955 (dia 24, 19h).
No pós-guerra, Monicelli e Steno corriam, então, de espectáculo de revista em espectáculo de revista para respirarem o que estava no ar. Assim se demarcavam do neo-realismo, que “continha uma seriedade que não era a do povo italiano” – Monicelli diz que a Itália não se reconhecia nos filmes do neo-realismo, “não eram assim os camponeses e os operários”, a Itália tinha mais a ver com os seus “canalhas”. Polícia e Ladrão foi um “caso”: esteve um ano suspenso pela censura antes de estrear, era demasiado ver um polícia (Aldo Fabrizi) perceber que pouco o separava do ladrão (Totò). A “tese” de Monicelli é que o humor foi uma conquista de maturidade para o espectador italiano, que no pós-guerra era “muito ingénuo”, estava refém dos dramalhões religiosos de Raffaello Matarazzo, Catene (1950), Tormento (1951) ou I figli di nessuno (1951), que constituíam a narrativa oficial democrata-cristã – como ele diz, naqueles anos a democracia cristã ganhava com a ajuda de senhoras que choravam e com milagres, com a ajuda de paróquias e de padres.
Humor e morte
E Monicelli conta, em L’Arte della commedia, como o humor podia ser, afinal, a temperatura de um medo, o medo da passagem do tempo, ou um filtro para conseguir enfrentá-lo. Para tactear a morte, em suma.
Gostava de ir aos funerais para, com os amigos, dizer coisas divertidas sobre o defunto – está na cena final de Amici Miei (1975). Esse encontro do humor com a morte, Monicelli lutou para o impor a Gangsters Falhados, retrato de desajeitados ladrões que preparam um golpe maior do que as suas capacidades: a meio do filme, umas das personagens é atropelada por um eléctrico, momento brutal que oficializou a morte na comédia à italiana (o filme vai ser editado em DVD pela Festa do Cinema Italiano, em versão restaurada). Monicelli lutou também para impor Gassman, actor de teatro com créditos firmados que ninguém imaginava em comédia. Orgulhava-se de ser responsável pela panache kamikaze deste actor, tal como se orgulhava de outra “anomalia”, ter resgatado Monica Vitti à incomunicabilidade de Antonioni para a comédia La Ragazza con la pistola (1968) e, dois anos depois, para o seu episódio, Il frigorifero, de Le coppie.
Há um momento em Gangsters Falhados em que os ladrões se inspiram no cinema americano para o golpe. É como um autoretrato de Monicelli e dos seus argumentistas, Suso Cecchi D’Amico, Age & Scarpelli, que começaram por pensar numa paródia a Rififi (Jules Dassin, 1955) que se chamaria Rufufú. Perante a hipótese de algo maior do que eles, a do “filme de Hollywood”, desatam num prodígio de pantomima, malabarismos e acrobacias, um jogo de identificações e de distanciações várias, como se a barraca da commedia del’arte tivesse sido montada para o film noir.
Foi um sucesso, mas mesmo assim não foi caução suficiente para sossegar os incrédulos perante a associação de Monicelli, Age & Scarpelli, argumentistas de filmezinhos da comédia à italiana, ao gigantismo de um projecto de Dino de Laurentiis, A Grande Guerra (quarta-feira, dia 17, 21h30). Como colocar os valores do soldado italiano na mão destes três, e com comediantes da estirpe canalha de Sordi e Gassman, que interpretam homens que fazem tudo para não fazer a guerra?, polemizou-se nos jornais.
É verdade, reconheceu o cineasta: escrever um argumento a pensar naqueles dois actores correria o risco de sabotar a ideia inicial de um filme sobre a massa anónima, os soldados, os operários – e sobre a lama, o frio, os cigarros, a ração, os botões... Mas, à medida que A Grande Guerra vai serenando as suas hipotéticas contradições (é filme de guerra ou comédia, é filme sobre dois indivíduos ou sobre uma personagem colectiva?), vai deixando também ouvir o seu cântico – as legendas introduzem em surdina o lamento, o individual funde-se com a aventura colectiva, como nos píncaros do lirismo melodramático de Frank Borzage ou King Vidor (A Hora Suprema, A Multidão, essa é a filiação). Um monumento, A Grande Guerra recebeu o Leão de Ouro de Veneza, ex-aequo com O General della Rovere, de Rossellini – para quem estava tudo preparado, foi reviravolta de última hora. É o Non ou a Vã Glória de Guerrear de Monicelli. Milagre, milagre!