A reforma de David Letterman, o líder de uma revolução na comédia
Um reinado de 33 anos chega ao fim esta quarta-feira. Os convidados e as estórias de comédia confundem-se com a história da televisão americana. “David Letterman foi uma revolução cómica”, escreveu Conan O’Brien.
Numa semana e num ano de despedidas da televisão norte-americana, uma das mais internacionais e influentes do planeta, esta será talvez a mais sentida – não foram oito anos, como a série Mad Men, que domingo terminou no canal AMC, nem 16 como os de Jon Stewart no Daily Show que em Setembro se despede. David Letterman, o apresentador de talk show que se sentou na cadeira mais tempo do que o adorado Johnny Carson, diz boa-noite pela última vez esta quarta-feira na CBS. Depois de ter anunciado a sua reforma em 2014, rios de tinta e pixéis de caracteres foram escritos nas últimas semanas sobre a sua importância. E uma geração de comediantes é-lhe particularmente grata e devedora.
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Numa semana e num ano de despedidas da televisão norte-americana, uma das mais internacionais e influentes do planeta, esta será talvez a mais sentida – não foram oito anos, como a série Mad Men, que domingo terminou no canal AMC, nem 16 como os de Jon Stewart no Daily Show que em Setembro se despede. David Letterman, o apresentador de talk show que se sentou na cadeira mais tempo do que o adorado Johnny Carson, diz boa-noite pela última vez esta quarta-feira na CBS. Depois de ter anunciado a sua reforma em 2014, rios de tinta e pixéis de caracteres foram escritos nas últimas semanas sobre a sua importância. E uma geração de comediantes é-lhe particularmente grata e devedora.
Foram 1810 programas no Late Night com David Letterman na NBC (1982−1993), mais 4124 programas no Late Show With David Letterman na CBS (1993–2015), sempre com Bill Murray como primeiro convidado. Dezasseis Emmy depois, rodeou-se de convidados de luxo para as suas derradeiras noites. Do Presidente Barack Obama - também ele um homem à espera do fim do seu mais famoso cargo - à lenda Bob Dylan (na noite de terça-feira), passando pelos populares actores Tom Hanks e George Clooney, Tom Waits pelo vocalista dos Pearl Jam Eddie Vedder. E houve também Oprah Winfrey, Julia Roberts, Tina Fey… mas o eterno rival Jay Leno ficou de fora (que se retirou de cena em 2014) – pelo menos até ver, porque o elenco da noite desta quarta-feira é segredo.
A tensão entre ambos tem mais de duas décadas - em 1992, quando Johnny Carson abandonou o Tonight Show depois de 30 anos na televisão americana, foi Jay Leno o seu substituto quando muitos esperavam que Letterman fosse o sucessor do mais amado apresentador de talk show dos EUA. Letterman apresentava o Late Night Show desde 1982, que ia para o ar a seguir ao Tonight Show e ser preterido pelo comediante do queixo protuberante e visto como representante da América blue-collar, das classes trabalhadoras, foi uma frustração que admitiu publicamente.
Em Portugal e nos anos pré-Internet, Letterman não teve a presença que os canais generalistas e por subscrição deram ao seu rival Jay Leno, à poupa ruiva de Conan O’Brien ou até à pantomima mais recente de Jimmy Fallon. Com o streaming online, a coisa pode ter mudado de figura, apesar de serem ainda os nomes de Fallon ou ainda de Jimmy Kimmel, mais formatados para os sketches com potencial de viralidade, a ganhar a corrida das probabilidades.
É o cenário que, perante os muitos ecrãs de que se faz a vida contemporânea e os hábitos de consumo pulverizados em pequenos excertos ou sketches ao invés de programas de uma hora, Letterman também deixa na sua esteira – o audiovisual como um grande bolo, a programação como um conjunto de fatias e algumas dentadas de sabor intenso e pouco interesse pela receita completa.
O seu substituto, em Setembro, é uma figura de transição e não tanto um pedaço de algo novo: Stephen Colbert, feito nas escolas do Daily Show e figura de proa do seu Report homónimo, uma figura que tem um pé na televisão por subscrição e outro no lastro dos clips da web. E que ajudou a criar esta paisagem que contribuiu para a gradual desvalorização de um formato tão americano que, em Portugal, teve eco na criação recente de formatos como 5 para a Meia-Noite. “Há mais foco nos singles do que nos álbuns”, comparou Jimmy Kimmel sintomaticamente no New York Times.
Antes vendiam-se dezenas de milhões de álbuns, Johnny Carson era visto por 15 milhões em directo e agora quatro milhões de espectadores fazem a festa com Letterman.
A fórmula L
Uma bola de praia cheia de guacamole atirada de um telhado para a rua de Manhattan. Os monólogos de abertura do programa. A queda do Muro de Berlim, os atentados de 11 de Setembro de 2001, Madonna e Sandra Bernhard aos pulos e em pouca roupa no palco em 1988, Cher a chamar-lhe “imbecil”, o adorável desconforto de Andy Kaufman no início da mesma década. E os números que hoje consideraríamos altamente “partilháveis” ou isco para cliques e “gostos” - as rubricas fixas do Top Ten às irónicas Stupid Pet Tricks. Drew Barrymore a levantar a camisola e a mostrar-lhe o peito porque era o seu aniversário. David Letterman foi isto. “Nunca soube se as coisas mais estúpidas que fizemos ou as mais tradicionais iriam funcionar. Não sabia se as coisas estúpidas alienariam pessoas. Não sabia se as coisas tradicionais seriam mais apelativas. E no fim contas, quando olho para trás, claro que a resposta é – o que se quer é fazer as coisas estranhas”, reflectiu Letterman em entrevista ao New York Times.
Tentou avisar a América que a cultura de celebridades era um balão de ar com o seu quê de divertido mas muito pouco conteúdo. Foi palco de uma longa actuação de Joaquin Phoenix quando este fingiu um esgotamento público para o filme I'm Still Here. E agora “já não resta ninguém de quem ter medo” ao fim da noite na televisão americana. “Agora é só afabilidade”, lamentou Tina Fey na Rolling Stone.
“David Letterman foi uma revolução cómica”, atesta Conan O’Brien num texto de tributo na revista Entertainment Weekly. O apresentador surgiu numa altura em que havia Carson, “o tipo que víamos com o nosso pai”, o bastião semanal Saturday Night Live, mas em que não havia amadores no YouTube, canais dedicados apenas à comédia, ecrãs a debitar gargalhadas. “E então aconteceu.” Conheceu David Letterman como um tipo com um cabelo esquisito, uma falha nos dentes, ténis e um cenário “que parecia errado” nas manhãs televisivas da NBC. “O seu sorriso não era inspirador de simpatia, mas sim malicioso.”
Tina Fey também se lembra de o ver, aos 10 anos, e depois de o acompanhar no final das noites dos EUA. Em vez de conforto, havia estranheza, escreve ainda O’Brien. “Uma epifania incrível”, resumiu no seu Daily Show na semana passada Jon Stewart – o homem que seria a primeira escolha de Letterman para o substituir, como disse o quase-reformado ao New York Times. “Nos últimos 35 anos, não houve um único argumentista ou performer que tenha tido o impacto sísmico de Dave na comédia”, reitera O’Brien.
Essa inovação e estranheza que levou até à televisão americana pronta para ir para a cama transformou-se ao longo dos anos. Quando se estreou tinha 34 despenteados anos, passaram-se outros 33 - o período mais longo alguma vez ocupado por um apresentador no late night dos EUA -, e a irreverência transformou-se em algo mais contemplativo. Como lembra o cronista do Los Angeles Times Robert Lloyd, a sua deferência para com as convidadas, cujo aspecto nunca lhe escapava, tornavam-no antes “no tio fixe que momentaneamente era o tio arrepiante”. Letterman tem agora 68 anos, cresceu.
Lutou com e para as audiências como um soldado na guerra televisiva, amargando muitas vezes com as vitórias dos adversários (Leno outra vez), viu-se envolvido num sonoro escândalo sobre a sua vida sexual com colegas de trabalho. Admitiu problemas com álcool, hipocondria, teve um enfarte, debateu-se com um plano de rapto do seu filho e foi chantageado. Brian Lowry, crítico de TV da Variety, cria a imagem definitiva: “Se Hollywood é mesmo ‘o liceu, mas com dinheiro’, Letterman era o gajo fixe, mas não o mais popular – o palhaço da turma e não o rei do baile”.