O regresso do cinema italiano, agora em inglês
Nanni Moretti, Matteo Garrone e Paolo Sorrentino competem na 68.ª edição do Festival de Cannes. Celebra-se o regresso do cinema italiano. Garrone foi o primeiro a mostrar-se. Em inglês.
Por trás dessa foto, o cenário: baixa contínua da frequência dos espectadores nas salas, os cinemas a fecharem, a experiência de ir ao cinema como ritual em paisagem pós-apocalíptica (hoje há 58 salas em Roma contra 120 nos anos 1970, segundo uma reportagem do diário francês Le Monde, onde se conta que não há sessões antes das 15h ou depois das 21h). Se esta devastação à la Mad Max pode ser um pouco o cenário de toda a Europa, de Portugal inclusive, no caso italiano ela pinta-se de uma nostalgia imensa pelo fulgor do passado: foi esquecido pela memória, esta ficou anestesiada pelo espectáculo televisivo e publicitário que ocupou os míticos estúdios da Cinecittà. Por isso o cinema italiano, e não só os Antonionis, Fellinis ou Viscontis, mas todas as chamadas segundas e terceiras linhas, tudo o que aqueles “monstros” deixaram na sombra, é uma enorme arca perdida que nem sequer tem salteadores.
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Por trás dessa foto, o cenário: baixa contínua da frequência dos espectadores nas salas, os cinemas a fecharem, a experiência de ir ao cinema como ritual em paisagem pós-apocalíptica (hoje há 58 salas em Roma contra 120 nos anos 1970, segundo uma reportagem do diário francês Le Monde, onde se conta que não há sessões antes das 15h ou depois das 21h). Se esta devastação à la Mad Max pode ser um pouco o cenário de toda a Europa, de Portugal inclusive, no caso italiano ela pinta-se de uma nostalgia imensa pelo fulgor do passado: foi esquecido pela memória, esta ficou anestesiada pelo espectáculo televisivo e publicitário que ocupou os míticos estúdios da Cinecittà. Por isso o cinema italiano, e não só os Antonionis, Fellinis ou Viscontis, mas todas as chamadas segundas e terceiras linhas, tudo o que aqueles “monstros” deixaram na sombra, é uma enorme arca perdida que nem sequer tem salteadores.
Aquela foto, então, Moretti, Garrone, Sorrentino. Não se trata de uma passagem de testemunho, sequer. Dá conta de uma devastação. Mesmo com a imagem de unidade e de força. O discurso público, político, é esse: o regresso em força a Cannes, onde não há muito Moretti se passeava sozinho, nos anos em que teve a sua Palma de Ouro (O Quarto do Filho, 2001), está a ser anunciado como o regresso do cinema italiano. Algo que estaria a ser preparado com o Prémio Especial do Júri a Gomorra, de Garrone (2009), com o Urso de Ouro de Berlim a César Deve Morrer, dos irmãos Taviani (2012), com o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro para A Grande Beleza, de Sorrentino (2014) e, no ano passado em Cannes, com o Grande Prémio do Júri a O País das Maravilhas de Alice Rohrwacher.
Cannes, edição 2015: Mia Madre, de Moretti, Il racconto dei racconti, de Garrone, La giovinezza, de Sorrentino. Só o primeiro é falado em italiano, os outros dois têm super-casts internacionais e são falados em inglês: Michael Caine, Jane Fonda, Harvey Keitel estão no filme de Sorrentino; Salma Hayek, Vincent Cassel, John C. Reilly no de Garrone, o primeiro a ser exibido.
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A tendência é geral, e não há quem não tenha já reparado: cerca de metade dos filmes em concurso em Cannes são falados em inglês e, desses, dois terços foram rodados por realizadores originários de países não-anglófonos (o grego Yorgos Lanthimos, por exemplo, com The Lobster, o norueguês Joachim Trier, com Louder than Bombs, o mexicano Michel Franco, com Chronic...). Cada caso é um caso, vão avisando os produtores dos filmes, argumentando até que pode fazer parte das propostas artísticas de um cineasta transcender a sua língua natal – ou construir um território sem raízes definidas, procurar uma utopia, a paisagem sem referências. Mas o cenário é de globalização do cinema de autor (“brutal”, adjectiva o jornal francês Libération), com o risco de uniformidade, como uma fasquia a que os cineastas não se podem impedir de querer subir – para mais facilmente montarem a produção (todos, em reportagens no Le Monde e no Libération, admitem que um filme em inglês com estrelas internacionais é mais facilmente financiável) ou para mais facilmente... chegar a Cannes.
A “universalidade”, defende Jean Labadie, co-produtor de Il racconto dei racconti, foi o objectivo ao adaptar em língua inglesa as fábulas que Giambattista Basile (1566-1632) escreveu originalmente em dialecto napolitano, histórias sobre pulsões violentas, sangue, sexo e poder. Garrone dirá mesmo que é da natureza dos contos e das fábulas serem incessantemente (re)apropriadas, traduzidas, por isso o movimento em direcção ao inglês foi um desafio natural para a adaptação deste texto barroco.
Pode ser. Mas há um resultado, e a experiência de Tales of Tales, o título em inglês do filme, é feita caminhando-se em direcção a uma desterritorialização. Não porque se passa do italiano para o inglês, mas porque a memória e o património pré-existente - Fellini, sempre Fellini, ou o picaresco medieval de L'armata Brancaleone, de Monicelli (1966), por exemplo, que mais do que referências são o DNA deste cinema “fabuloso” - vão dando lugar ao fantástico e terror de fancaria (digital). Menos uma escolha, mais uma incapacidade: é aí que o filme se atola, em perda, esgotado desde o início, sem conseguir inebriar-se com o seu sangue ou com o movimento entre as histórias. Não há nada incessante aqui. Uma das coisas mais tristes de Il racconto dei racconti é mostrar a cada segundo que não consegue estar à altura da sua memória.
Agora vamos olhar de novo para a fotografia em que Nanni Moretti, Matteo Garrone e Paolo Sorrentino aparecem abraçados, fazem equipa, a imagem do anunciado regresso do cinema italiano.