A história esquecida de Bruce Jenner
Como o herói dos anos 70 se prepara para ser uma mulher.
Um dia, cerca de um ano depois de ter quebrado um recorde mundial e ganho a medalha de ouro de decatlo nos Jogos Olímpicos de Montreal de 1976, Bruce Jenner encontrou-se com o seu amigo e jornalista desportivo Barry McDermott, para um jogo de ténis em Nova Iorque.
McDermott tinha sugerido uma partida no seu clube privado, mas isso não era muito o estilo de Jenner. A privacidade nunca foi a sua prioridade. Os dois acabaram por ir para o Central Park, onde rapidamente se espalhou a notícia de que Bruce Jenner (Bruce Jenner!) estava a jogar no court público. McDermott recorda-se de como a multidão começou a crescer, tal como sabia que iria acontecer, com os mirones a comprimirem-se contra a rede do campo, observando todos os movimentos daquela atraente superestrela do atletismo.
Não foi um golpe publicitário, insiste McDermott: Jenner, tão célebre naquela altura como Michael Phelps ou Lance Armstrong no auge da sua fama, já tinha publicidade em quantidades suficientes. “Foi mais: ‘Vamos confraternizar com o povo e não com os elitistas’”, recorda o amigo.
Quatro décadas depois, Jenner ainda confraterniza com o povo: com os milhões de espectadores que assistem ao Keeping Up with the Kardashians, o célebre reality show do canal E! com a despudorada e célebre família americana. Jenner, que já chegou a ser o mais famoso do clã, é sobretudo um personagem secundário do programa e dos seus quatro congéneres, o pai cansado e de olhos arregalados perante a sua exuberante ex-mulher Kris, o autoproclamado “momager” (uma junção de mãe e manager), e os seus vários filhos fotogénicos.
Mas, agora, o menino querido da era do disco está novamente no centro das atenções, de uma forma que poucos fãs conseguiriam imaginar em 1976. As primeiras fotos de tablóide apareceram no Outono: Jenner com o cabelo comprido com madeixas loiras. Jenner com unhas coloridas e brincos e com as pernas depiladas. Em Dezembro, confirmou ao TMZ que iria submeter-se a uma cirurgia para atenuar a maçã de Adão.
Já em Fevereiro, depois de a enteada Kim Kardashian West ter quebrado o silêncio da família durante uma entrevista em que referiu delicadamente a sua “viagem”, as notícias explodiram na imprensa de celebridades: Jenner, de 65 anos, irá brevemente surgir como um transgénero.
Apesar de Jenner não ter ainda feito um comentário oficial (a razão pela qual nos referimos aqui a “ele”), as notícias dos seus projectos surgiram em órgãos como o Us Weekly e o TMZ, conhecidos por terem uma relação próxima e simbiótica com a família.
A prova mais clara que surgiu até agora veio de uma entrevista da Associated Press com a mãe, Esher Jenner. Quando lhe perguntaram sobre a transformação do filho, Esther, de 88 anos, comentou: “Nunca imaginei que me pudesse orgulhar mais do Bruce do que quando ele conseguiu a medalha de ouro em 1976, mas agora estou ainda mais orgulhosa. É preciso muita coragem para se fazer o que ele está a fazer.”
Uma entrevista com Diane Sawyer da ABC estará a ser preparada — tal como o próprio reality show de Jenner a mostrar a sua transição.
A transformação poderá ser surpreendente, mas a decisão de a tornar pública já não. Muito antes de ser engolido pelo vórtex Kardashian, Jenner já vivia para as câmaras. Foi assim que o mundo o viu a triunfar naquela penosa modalidade olímpica multifacetada, conquistando uma vitória enquanto os rivais exaustos se contorciam com dores. Foi assim que ganhou a vida depois disso: anúncios a cereais, filmes, séries de comédia, documentários comerciais, emissões desportivas e tudo o que anda por aí.
Por isso, claro que as câmaras estarão com ele quando fizer a escolha pessoal mais radical que uma pessoa pode fazer.
Para perceber o Bruce Jenner de hoje, temos de perceber os Kardashians. E, às vezes, nem mesmo Bruce Jenner percebe os Kardashians.
Pelo menos, é isso que nos mostra o personagem sempre desesperado que ele desempenha no programa da E!. Ele é como um pingo de realidade num grupo de sitcom, o patriarca marginalizado que é arrastado para lições de culinária e descobre na imprensa local que a enteada está noiva. Jenner e Kris — a socialite de Los Angeles cujo primeiro marido, o falecido Robert Kardashian, advogado de O.J. Simpson — e as suas crias loiras mantêm-se no topo das audiências desde 2007, quando a estrela dos tablóides Kim Kardashian inexplicavelmente atingiu a fama depois de uma gravação sexual com um estrela menor do R&B ter ido parar à Internet.
O seu primeiro reality show, lançado nesse ano, mostrava as birras dos filhos de Kris — Kim, Kourtney, Khloe e Rob — e as dos filhos então pré-adolescentes do casal, Kendall e Kylie.
À medida que o clã Kardashian-Jenner se tornava um império multimilionário, com vários programas paralelos, contratos publicitários e livros, a família ia partilhando cada pedacinho da sua vida. O casamento de 72 dias de Kim com o jogador de basquetebol profissional Kris Humphries; o casamento de Kloe com a estrela de Los Angeles Lamar Odom e o seu divórcio subsequente; a recusa de Kourtney em casar-se com o pai dos seus três filhos; e até a separação de Jenner e Kris no ano passado. Kim tem raios-x para provar que não fez implantes mamários. Kourtney fez uma depilação às virilhas de Khloe à frente das câmaras. Não há limites.
(O canal E! recusou-se a fazer comentários para este artigo e não disponibilizou Jenner nem qualquer outro membro da família para entrevistas. O seu agente também recusou um pedido de entrevista.)
O domínio improvável da família na cultura pop não é só medido pelos seus níveis de audiências. Eles namoram com estrelas pop e atletas profissionais; influenciam a moda de rua; as suas caras estão todas as semanas nas capas dos tablóides. As cinco irmãs têm em conjunto 72 milhões de seguidores no Twitter. O Presidente Barack Obama brincou com Kim no seu discurso no jantar dos correspondentes na Casa Branca.
“Eles não param de fazer coisas interessantes... e já não são apenas famosos por serem famosos”, diz Elizabeth Currid-Halkett, professora na Universidade do Sul da Califórnia e autora de Starstruck: The Business of Celebrety, referindo o último casamento de Kim com a superestrela Kanye West e a carreira florescente de Kendall como modelo. “Na verdade, eles têm mesmo talento: têm carreiras a sério, têm negócios. Não os vejo a abrandar.”
Apesar de Jenner fazer frequentemente parte das deixas, ele raramente desencadeia a acção. No máximo, fica a olhar divertido para as disputas familiares, desejando em voz alta estar antes a jogar golfe.
Para aqueles que o viram a conquistar o mundo do desporto e do entretenimento na década de 1970 e 80, é um papel que não faz sentido. Bruce Jenner à margem? Nunca.
Perguntem aos seus velhos amigos e eles descreverão um Jenner alegre, com uma personalidade eléctrica, simpático e com carisma natural.
“O Bruce era como uma criança grande”, diz Vince Stryker, o seu parceiro de treino de decatlo dos anos 70. “Ele só queria divertir-se e gozar a vida. Gostava de competir, mas era mesmo um tipo de bem com o mundo.”
No fundo, Jenner também estava obcecado com as vitórias, como diria mais tarde em discursos sobre motivação. Tendo crescido nos subúrbios de Nova Iorque e do Conneticut, batalhava na escola; acabaram por lhe diagnosticar dislexia. Descobrir uma aptidão para o desporto mudou-lhe a vida. Quando chegou a Graceland College na pequena cidade de Iowa com uma bolsa, já ambicionava desafios mais altos. Um treinador levou-o para o decatlo.
É um desporto brutal que testa todos os músculos do corpo. Os competidores têm de ser exímios não numa mas em dez modalidades, incluindo salto em comprimento, salto com vara, corrida de velocidade, salto de barras, lançamento de disco e lançamento de dardo. É tão exigente que o vencedor olímpico é frequentemente chamado “o maior atleta do mundo”.
Jenner atirou-se para a competição e, aos 22 anos, conquistou um lugar na equipa americana de decatlo para os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique. Ficou em décimo lugar. Mais tarde recordava-se de ter olhado para o vencedor no pódio, ardendo de inveja. No avião de regresso a Iowa, jurou voltar para conquistar a medalha de ouro.
Depois da licenciatura, em 1973, Jenner e a mulher, Chrystie Crownover, mudaram-se para San Jose. Ela trabalhou como hospedeira para pagar as contas, enquanto ele vendia seguros. Na maior parte das vezes, treinava entre seis e oito horas por dia, com uma barra no apartamento de duas assoalhadas para treinos extra.
Jenner chegou aos Olímpicos de Montreal praticamente como um desconhecido. Mas, no pico da Guerra Fria, o jovem americano de sorriso aberto, vestido de vermelho, branco e azul rapidamente chamou a atenção no seu desafio ao campeão soviético que lutava para manter o título, Nikolai Avilov.
Durante a corrida dos 100 metros, Jenner quebrou o seu recorde pessoal. Depois, nos quatro seguintes: salto em comprimento, lançamento de peso, salto em altura, 400 metros.
Avilov derrotou-o em três provas. Mas a performance geral de Jenner foi tão forte que o seu último dia na competição se transformou numa vitória. Lançou três vezes o peso de dois quilos a uma média de mais de 50 metros — quase três metros mais longe do que todos os outros. Ainda assim lamentou não ter atingido os 50 no seu último lançamento. Quando chegou à corrida dos 1500 metros, precisava apenas de uma classificação média para chegar ao ouro. Mas com a multidão a gritar por ele, aumentou a velocidade e chegou apenas um segundo depois do homem mais rápido em campo. A sua pontuação total quebrou o recorde mundial e Jenner deu um passeio celebratório à volta da pista, com os braços levantados, acolhendo os vivas.
Diz a lenda que Jenner não estava interessado em continuar com o decatlo depois dos Olímpicos. Porquê fazê-lo por divertimento se já tinha ganho? Ficou célebre o momento em que deixou as varas de salto na arena. Ia tornar-se uma celebridade.
“Depois de todo o trabalho que o Bruce teve, tinha direito a ganhar uns cobres”, disse Crownover ao New York Times.
Jenner aceitava sem vergonha todas as ofertas: comentários desportivos, uma linha de roupa, uma autobiografia, discursos motivacionais. Claro que a sua fotografia estava na caixa Wheaties. E quando o procurador distrital de San Francisco processou a empresa de cereais por publicidade enganosa, Jenner organizou uma conferência de imprensa para declarar que os Wheaties faziam realmente parte da sua dieta de treino.
A sua ascensão coincidiu com um aumento das audiências televisivas, quando o ESPN e outros canais por cabo decidiram correr mais riscos com a programação; era também uma época em que muitos atletas encontravam várias oportunidades nos media. E, felizmente, as câmaras adoravam Jenner.
“Ele é simplesmente uma versão real do sonho americano, transmite uma vitalidade honesta, uma saúde contagiante e um alegre bom humor”, escreveu Kenneth Turan, do Washington Post, em 1977. “Será culpa dele se tem uma sinceridade directa e confiante? De ser o tipo de pessoa que todos gostaríamos de ser quando crescermos?”
A Jennermania estava talvez no seu auge quando entrou na short list dos candidatos ao papel de Super-Homem, em 1978. As suas capacidades de actor não foram suficientes e o papel foi para Christopher Reeve. Em vez disso, entrou na comédia musical dos Village People Can’t Stop the Music, um famoso flop dos anos 80, e foi nomeado para um Razzie de pior actor.
A sua ubiquidade tornou-se uma piada comum, a que Jenner nem sempre achava graça. Quando os produtores de Married... With Children o chamaram para um papel, ele saltou fora quando viu que o guião gozava com ele por ser conhecido por tudo excepto os Olímpicos, noticiou a revista People.
Recusou outras participações. Estava quase em piloto automático, voando de uma conferência para anúncios de TV, para acções de caridade, frequentemente com poucas horas de sono. Coleccionava chaves de tantas cidades que “dava para encher uma loja de fechaduras”, brinca McDermott no perfil feito pela Sports Illustrated.
O jornalista acompanhou-o numa viagem a North Webster, no Indiana, para entrar no pequeno Wall of Fame da cidade como o “Rei do desporto”. Não se lembra de muitos detalhes desse dia excepto que “toda a gente pensava que era uma grande coisa ser fotografado ao lado de Bruce Jenner”.
Mas a fama pode rapidamente tornar-se amarga. A primeira vez que provou esse cálice foi quando se separou de Crownover quando já tinham duas crianças, Burt e Cassandra. A sua ex-mulher falara abertamente de ter recorrido à terapia para conseguir lidar com a fama súbita trazida pelos Olímpicos e estava igualmente disponível para explicar aos jornalistas porque se divorciaram, em 1981: Jenner tinha-se apaixonado pela actriz Linda Thompson, mais conhecida como a namorada de Elvis Presley.
Jenner teve mais dois filhos com Thompson — Brandon e Brody, veteranos dos reality shows de pleno direito — antes de se divorciarem em 1986. Em entrevistas, Thompson culpou a agenda frenética de viagens de Jenner.
Apesar de a sua estrela ter começado a apagar-se, o novo solteiro avançou no mundo das conferências. E continuou a fazer desporto, triatlos e corridas de carro.
“O Bruce sempre precisou de competição para alimentar aquela energia”, diz Lynn Swann, a antiga estrela dos Pittsburgh Steelers e seu amigo próximo da altura em que faziam programas desportivos na ABC. Os dois gostavam de andar em bicicletas sujas perto da mansão de Jenner em Malibu, na Califórnia. Uma vez, Jenner caiu e insistiu que estava bem — até que Swann o obrigou a ir ao médico. Precisava de ser operado ao joelho.
Então como é que alguém assim fica sentado no banco de trás? É o próprio Jenner quem diz que a sua vida ficou virada ao contrário quando conheceu Kris Kardashian em 1990. “Eu estava a afundar-me”, contou à People alguns anos depois. “Tinha trabalhado duramente e não tinha muito para mostrar.”
Casaram em 1991 e rapidamente a sua nova mulher tomou conta da sua deteriorada carreira. George Wallach, o agente desportivo e manager desde os Olímpicos, foi demitido. “Já não havia lugar para mim”, diz Wallach. “Não fiquei feliz.”
Apesar de Wallach ter ficado desiludido por terem perdido o contacto depois de deixarem de trabalhar juntos, acha que Jenner gravita em torno de mulheres que tomam as rédeas.
“As três mulheres que fizeram parte da vida do Bruce tiveram um papel determinante”, afirma. “E acho que, até certo ponto, ele optou por deixar que isso acontecesse. Talvez precisasse que isso acontecesse.”
Lançou uma lucrativa linha de equipamento desportivo — lembram-se dos anúncios “SuperFit com Bruce Jenner”? Apareceram na capa da revista American Fitness como a “família real do fitness”. Na década de 1990, ajudou a gerir uma empresa de componentes de aviões, continuando com aparições na TV e em conferências. Depois, quando as filhas mais velhas começaram a aparecer nos tablóides no pacote socialite de Paris Hilton, Kris teve uma reunião com o apresentador de TV e produtor Ryan Seacrest que mudaria a vida de todos.
No reality show que se seguiu, o papel secundário de Jenner surpreendeu aqueles que o conhecem bem. “Parecia quase diametralmente oposto ao Bruce Jenner que eu conhecia”, comenta McDermott. “Num momento era uma superstar e os últimos quatro ou cinco anos não foram muito simpáticos para ele, no sentido em que tudo começou a desvanecer-se.”
Actualmente, os amigos do passado não recebem muitas notícias dele. Apesar de vários terem visto as fotografias que provam a transformação da sua aparência, recusam-se a discuti-la. Stryker, o seu antigo parceiro de treinos, diz que falaram há vários meses quando o divórcio com Kris se formalizou (o casal separou-se no Outono de 2013). Jenner disse que estava bem. Mas também nunca foi do género de mostrar muito as suas emoções.
No Keeping Up With the Kardashians, Jenner só aparece zangado quando a família é ameaçada, como na altura em que os paparazzi quase fizeram Kylie sair da estrada. Mas num episódio pareceu ficar sentido quando um humorista de um programa nocturno brincou com a sua aparência. Jenner fez uma série de cirurgias plásticas há uns anos que foram amplamente documentadas, incluindo um lift facial e um retoque no nariz.
A sua relação complicada com o estrelato e com a natureza exuberante dos Kardashians, e a sua série, deixa os defensores dos transgénero um pouco nervosos. O facto de o E! ser um canal conhecido por tricas sórdidas de celebridades e outros iscos de audiências não ajuda.
“Se isto acabar por ser um golpe de audiências, vai destruí-lo”, diz Danielle Moodie-Mills, uma defensora LGBT e conselheira em justiça racial do Center for American Progress. “Passar por este tipo de transição não pode ser uma coisa usada como manobra para melhorar o perfil e aumentar a nossa cotação.”
Mas numa era em que programas televisivos de ficção que mostram personagens transgénero (Orange is The New Black, Transparent) ganharam a aclamação do mainstream, esta poderá ser uma rara oportunidade para exibir uma pessoa aprazível e real a fazer a transformação.
“Se este programa documentar o impacto físico e emocional da sua transição e mostrar de forma sensível que é mais educativo do que sensacionalista, então poderá ter um impacto tremendo”, diz Moodie-Mills.
Uma vez que Jenner não prestou pessoalmente declarações, várias organizações de defensores, incluindo a GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation), não puderam comentar.
Dada a forma como Jenner se relaciona com fãs de várias idades, muita gente estará curiosa por ver. “Acho que ele vai fazer o que o seu coração lhe disser para fazer”, diz Wallach, “e o que for melhor para ele e para a família”.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post