País, precisa-se

O país está em crise, as suas imagens também. E este filme parte — à procura de um território e das suas histórias. Não precisam de reality-show, precisam de sala às escuras.

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Per­ante Campo de Flamin­gos sem Flamin­gos não sabemos se ainda é noite ou se já é dia, se o que vemos já começou ou já terminou, se os homens sobre­viveram ou estão a acabar... é para esse espanto que servem as salas de cinema. É objecto identificado, traz as marcas de uma experiência antiga. E qual é o efeito especial? As pessoas, os lugares, os planos manterem inviolável, até ao fim, o seu mistério.

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Per­ante Campo de Flamin­gos sem Flamin­gos não sabemos se ainda é noite ou se já é dia, se o que vemos já começou ou já terminou, se os homens sobre­viveram ou estão a acabar... é para esse espanto que servem as salas de cinema. É objecto identificado, traz as marcas de uma experiência antiga. E qual é o efeito especial? As pessoas, os lugares, os planos manterem inviolável, até ao fim, o seu mistério.

É coisa reconhecível: é um filme. É coisa não alinhada. Antes de tactear a possibilidade de reactivar experiências (porque tudo se deve passar numa sala às escuras), Campo de Flamin­gos sem Flamin­gos abandona logo aquilo que não quer. O ministro das Finanças não foi ao Par­la­mento, anun­cia o tele­jor­nal na sequência inicial. Era a crise que se instalava, aquela de que se começava a falar quando Campo de Flamin­gos sem Flamin­gos foi rodado — nos meses de Setembro a Dezem­bro de 2011 em que André Príncipe (fotó­grafo, cineasta, edi­tor), o director de fotografia Takashi Sug­i­moto e o operador de som Manuel Sá percorreram de car­a­vana as fron­teiras de Por­tu­gal. Mas é uma crise que se instalara há muito mais na televisão, o espaço em que o mundo é reality-show e a fabricação grotesca alastra para nos invadir. A esse país Campo de Flamingos sem Flamingos diz não.

Há esse plano sobre uma TV e o seu tele­jor­nal. E depois a dissidência. Eis um filme que parte, à procura de um território e das suas histórias, que não pre­cisam da televisão para exi­s­tirem. Sandro Aguilar, o montador, encontra a forma de nos colocar numa fábula em movimento, um fluxo, contra o qual não podemos nada, que tem vida própria: homens e animais, cavalos, caça, nascer e pôr-do-sol, insectos e carros de corrida. Somos colocados sempre perante a experiência de algo que começa, o mundo sabe-nos a novo, apreendemos dele apenas contornos. Não há palavras, há uma aprendizagem sensorial a fazer — um coleccionador de insectos, a única personagem individualizada em Campo de Flamingos sem Flamingos, um homem cuja doença degenerativa lhe deu um olhar alternativo, talvez assinale um horizonte para o espectador.

O filme parte, e coloca-se entre ani­mais — as fab­u­losas cenas de caça. É o tal pacto a reinstalar antes que a viagem, sem mapa mas com vibrante energia de reencontro, prossiga. André Príncipe, Takashi Sugimoto e Manuel Sá são aventureiros num território que deixámos de conhecer (e é assim que se filmam na sequência final), como antes fizera Gonçalo Tocha no seu É na Terra, Não é na Lua (2011). Os títulos de ambos os filmes assinalam essa ausência que vem alastrando e o movimento de quem parte para contrariar esse vazio. É uma busca, de pessoas, de território — é a mais justa forma de descrever o que se passa em Campo de Flamingos sem Flamingos. Tocha e Príncipe, a terra e (não) a lua: não servirá isto para fabricar qualquer “tendência”, só para assinalar que há exploradores em actividade? E que esse desejo de aventura talvez seja o sinal de uma perda, de que estamos mesmo a precisar dele, do país. Parece pouco e talvez seja muito: é preciso uma sala às escuras.