Morreu Mike Nichols, o cineasta que leu os sinais da Nova Hollywood
Um dos títulos que abriu as portas à Nova Hollywood é dele: The Graduate/A Primeira Noite. Venceu Óscares, Tonys, Emmys e Grammys. Começou na stand up comedy, imparável. Os actores precipitavam-se para os seus filmes e encenações. "O melhor da América", disseram dele. Porquê tanto?
Nascido em Berlim, na Alemanha, Mikhail Igor Peschowski naturalizou-se norte-americano em 1944. Chegara ao país, em 1939, com a sua família de refugiados judeus, aos sete anos. É um dos 12 nomes que recebeu na sua carreira os quatro mais cobiçados prémios das indústrias cinematográfica, discográfica, televisiva e teatral – o Óscar, o Grammy, o Emmy e o Tony. Para o dramaturgo Tom Stoppard, citado pela NBC, ele era "o melhor da América".
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Nascido em Berlim, na Alemanha, Mikhail Igor Peschowski naturalizou-se norte-americano em 1944. Chegara ao país, em 1939, com a sua família de refugiados judeus, aos sete anos. É um dos 12 nomes que recebeu na sua carreira os quatro mais cobiçados prémios das indústrias cinematográfica, discográfica, televisiva e teatral – o Óscar, o Grammy, o Emmy e o Tony. Para o dramaturgo Tom Stoppard, citado pela NBC, ele era "o melhor da América".
Será tanto assim? Será o trabalho de Nichols um daqueles exemplos da distância que pode separar a avaliação da crítica americana da avaliação da crítica europeia? Bertrand Tavernier e Jean-Pierre Coursodon no seu dicionário (que é uma ode) 50 Anos do Cinema Americano comparam o seu "caso" com o de Jerry Lewis: este incompreendido no seu país e incensado pela crítica francesa e Nichols profeta no seu país e desprezado pela crítica europeia. O crítico e historiador britânico David Thomson (A Biographical Dictionary of Film) escreve que Nichols teve, ao longo da sua carreira, mais o perfil de "um produtor", "um embalador de coisas", do que de cineasta com identidade própria - "há ali alguma coisa de mais substancial do que uma enorme reputação e um instinto de produtor em relação aquilo que os espectadores sofisticados querem ver?"
A "embalagem" e a "sofisticação" podem explicar. E Thomson estaria a pensar, obviamente, nos dois filmes (Quem Tem Medo de Virginia Wolf? e A Primeira Noite) com que se estreou no cinema um encenador da Broadway (o teatro foi o seu grande amor, depois de ter visto a encenação de Elia Kazan do Eléctrico Chamado Desejo) e um dos elementos da troupe The Compass, mais tarde chamados Second City, que no final dos anos 50 mostravam a sua stand up comedy pelos cabarets novaiorquinos. Nesse grupo estava Elaine May, com quem Nichols formaria uma dupla que improvisava comédia a alta velocidade, especialista em judaísmo e neurose (eram conhecidos como “the world’s fastest humans” e Woody Allen era um fã), e que, como cineasta, será um exemplo, em termos de recepção pública, contrário ao de Nichols: um low profile mantido pela própria, como se não acreditasse de forma determinante no que estava a fazer, no que foi acompanhada pelo desinteresse da crítica (e no entanto, o dela é um olhar bastante selvagem sobre a comédia americana que necessita de ser conhecido ou reavaliado).
Mas voltando a Nichols, e a essa capacidade indesmentível de ler os sinais do tempo: percebeu a implosão de uma era e a entrada em cena de uma nova geração alimentada pela contracultura. Quem Tem Medo de Virginia Wolf?, a adaptação da peça de Edward Albee com Elizabeth Taylor e Richard Burton a fazerem um casal de meia idade que incha e rebenta com a sua malaise (e logo eles, Taylor e Burton, espectáculo terminal de um tempo), e a iniciação de Dustin Hoffman ao compromisso, em A Primeira Noite, são acontecimentos do cinema americano tal como ele se anunciava nos anos 70. Uns estavam a acabar, outros a começar.
O primeiro filme valeu-lhe uma nomeação ao Óscar, o segundo o Óscar de melhor realizador. Neste filme, que hoje é iconografia pop (veja-se o que Tarantino fez com a sequência de abertura de Jackie Brown, colocando Pam Grier no aeroporto no lugar de Dustin Hoffman, trocando a melancolia de Simon & Garfunkel na banda sonora pela euforia soul de Bobby Womack), realce-se a fixação chic, a que hoje chamaríamos hipster, na Nouvelle Vague, que também está em Bonnie & Clyde, de Arthur Penn - não por acaso os dois títulos que se tornariam os mais influentes daquela era. E a possibilidade de afirmação de um novo tipo de actor a partir do momento em que Nichols escolheu Dustin Hoffman para protagonista em vez de Robert Redford, com quem trabalhara em Descalços no Parque, de Neil Simon, êxito nos palcos e primeiro Tony para o encenador, em 1964. Em 2000, numa entrevista ao New York Times, Hoffman, que tinha quase 30 anos quando interpretou a sua personagem de 21, diria: “Que eu conheça não há no século XX um gesto de casting mais corajoso do que aquele de me pôr naquele papel."
Nichols continuou a dividir a sua carreira entre o cinema e o teatro - entre 1970 e 2000, Tchékhov (houve uma Gaivota com Meryl Streep, Natalie Portman, Christopher Walken, John Goodman e Kevin Kline), Lillian Hellman, David Rabe, Ariel Dorfman, Tom Stoppard, Neil Simon, Beckett (À Espera de Godot com Steve Martin e Robin Williams). Continuou a montar os seus packages, a mostrar-se embalador de coisas, para utilizar a expressão de David Thomson: Melanie Griffith em Working Girl (1988), Meryl Streep e Shirley MacLaine em Postcards from the Edge (1990) ou Harrison Ford em Regarding Henry (1991) podem ser exemplos do high profile glow que um crítico americano considera ter-se mantido no trabalho de Nichols, pelo facto de as estrelas se precipitarem para trabalhar com ele.
E mesmo que se possa traçar uma linha entre a encenação que fez de Descalços no Parque e filmes como Carnal Knowledge (1971), Heartburn (1986), The Birdcage (1996) ou Closer (2004) - regressos ou actualizações aos infernais rituais de acasalamento e ruptura comjugal por um homem que foi casado quatro vezes (“penso que talvez o meu tema sejam as relações entre homens e mulheres à volta de uma cama", disse ao Washington Post) -, segundo alguns (leia-se, por exemplo, o obituário do New York Times) foi demasiado prolífico, terá escolhido muitos dos seus projectos de forma fortuita ou apenas pelo dinheiro. Realizador sem estilo? Um texto publicado no New York Times em 2009, por altura de uma retrospectiva no MoMA, chamava-lhe "mestre da invisibilidade". É uma fórmula sedutora, daquelas que jogam tudo em momentos de reavaliação, mas que se esgota na sedução - e parecendo violentar a leitura autorística de um corpo de trabalho que a isso resiste. Sem, afinal, dizer "o que faz de um filme de Nichols um filme de Nichols".