André Príncipe encontrou Portugal
Há momentos assim, em que tudo acontece ao mesmo tempo. O cineasta, fotógrafo e editor André Príncipe mostra por estes dias trabalhos de cada uma das suas artes. O Cinema Ideal faz a estreia comercial de Campo de Flamingos Sem Flamingos, a Galeria Pedro Alfacinha inaugura a exposição Antena 2, a Pierre von Kleist, editora que ajudou a fundar, comemora cinco anos. É um turbilhão que cola bem com o autor.
Foi também nas ondas da Antena 2 que ele e a sua mini -equipa se abrigaram desse noticiário frenético quando andaram pelo país a rodar Campo de Flamingos Sem Flamingos (2013), filme encantatório e contemplativo que desafia a imagem do Portugal real que nos é servida de bandeja nos telejornais – e aqui entra o Cinema Ideal, em Lisboa, que passará este filme até ao dia 26, às 19h30. Do lado da edição, Príncipe ainda vive no rescaldo do lançamento de Tokyo Diaries, prepara um novo livro, The Conference of the Birds, e celebra este mês os cinco anos da editora Pierre von Kleist, que fundou com o fotógrafo José Pedro Cortes
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Foi também nas ondas da Antena 2 que ele e a sua mini -equipa se abrigaram desse noticiário frenético quando andaram pelo país a rodar Campo de Flamingos Sem Flamingos (2013), filme encantatório e contemplativo que desafia a imagem do Portugal real que nos é servida de bandeja nos telejornais – e aqui entra o Cinema Ideal, em Lisboa, que passará este filme até ao dia 26, às 19h30. Do lado da edição, Príncipe ainda vive no rescaldo do lançamento de Tokyo Diaries, prepara um novo livro, The Conference of the Birds, e celebra este mês os cinco anos da editora Pierre von Kleist, que fundou com o fotógrafo José Pedro Cortes
Conversa na antecâmara de um cinema com a sessão das 19h prestes a começar e com a campainha do eléctrico 28 (e meia cena artística lisboeta) à mistura.
No plano inicial de Campo de Flamingos sem Flamingos aparece uma televisão que mostra um debate no Parlamento. É uma ressonância que parece que vai desaparecer, mas mantém-se. Ao longo do filme há movimentos de dissidência em relação a esse plano. Dá ideia de que todo o filme quer sair daquele lugar. Como é que esse momento televisivo apareceu?
Um dos motivos que me levaram a fazer este filme tem a ver com aquilo a que nos telejornais se chama “país real”, uma espécie de subgénero das notícias. É uma abordagem um bocado irritante e sempre me impressionou porque as histórias são tratadas de maneira absolutamente desonesta. É um “país real” que não me parece nada real. A televisão trata estas histórias com um tempo curto e sempre a decidir se os personagens são bons ou maus, se são desgraçados, heróicos, tudo num minuto e meio. Uma das premissas do filme era esta: o Portugal real será o que a televisão nos mostra, com a sua falta de tempo para tratar o tema? Poderei tratá-lo de maneira diferente? Durante a rodagem, filmámos muito em restaurantes. Havia sempre uma televisão ligada, como uma espécie de lareira, onde se juntam contadores de histórias. Só que este contador de histórias televisivo pode estar errado. No filme, há uma dissidência desse plano e dessa realidade. Mas há, sobretudo, uma disputa com essa centralidade televisiva. Estávamos nos primeiros meses da intervenção da troika. Esse plano em particular tem três momentos: começa com uns flamingos a levantarem voo durante um zapping; segue-se uma cena do Parlamento, em que não se sabe de um ministro (“está, não está…”); e depois há um barqueiro que desaparece na sua última travessia. Quando escrevi a sinopse deste trabalho afirmei que queria ser uma espécie de explorador do século XIX, no nosso território, à procura da fauna, da flora, de histórias e de imagens. Aqueles três episódios de televisão não resumem o filme, mas resultaram como se, de repente, o telejornal fosse um pouco de nós, uma coisa errada.
Esse lado de explorador é interessante porque todo o filme nos faz olhar como se fosse a primeira vez para um território – há espanto. No plano com cavalos, por exemplo, há uma espécie de amanhecer do mundo. Isso foi resolvido na montagem ou aconteceu antes? A vossa viagem decorreu com esta predisposição?
As três coisas. Quis fazer este filme também por causa de uma série de imagens que coleccionei. Eram imagens relativamente novas para mim. Por exemplo: vi um carro a perseguir uma avestruz no Alentejo. Vi imagens relacionadas com tuning, com festas trance… Havia qualidades nestas imagens que me levaram a pensar que estava perante o tal país real.
E tinham sentidos novos? Sabias exactamente o que queriam dizer?
Só quero filmar aquilo sobre o qual não estou seguro. Tentei sintonizar a minha equipa para nos perdermos, para perdermos o pé, para não sabermos o que estava a acontecer à nossa volta. Sintonizarmo-nos para a angústia logo no princípio da filmagem. Mas depois, com o tempo da rodagem, voltámo-nos para coisas como o vento, a luz, os elementos, as correntes de água, os animais. Dentro destas imagens, perguntávamo-nos: o que é que os humanos estão a fazer aqui dentro? O filme vai afunilando para a ideia de território, que era outra das premissas iniciais, a ideia de fronteira meio absurda entre Portugal e Espanha, que, apesar de ser a mais antiga do mundo, não faz muito sentido geograficamente (à excepção do Douro, tudo o resto é uma convenção).
O filme passa de história para história, dos cavalos para o tuning, sem nos darmos conta. Como é que isso foi trabalhado?
Há um dispositivo muito claro – um dia. Começa ao amanhecer, passa pela magic hour e vai para a noite. Penso que a montagem funcionou em delta. Ou seja, há várias histórias paralelas – a caça, o trance, o tuning, o João Cappas e Sousa –, que vão desaguando nalguma coisa. Quando cai a noite, o filme começa a diluir-se, há uns ecos. A certa altura queríamos que, por um lado, o filme levasse para o espectador a nossa experiência exploratória e, por outro, trabalhasse a ideia de narrador omnipresente.
Nunca há uma ideia nítida de fronteira...
Dizer que o filme é sobre fronteiras é como com um trapezista que tem uma rede em baixo. Se correr mal, usamos a rede. Aqui, o arquétipo narrativo mais forte é a viagem.
A presença dos animais é fortíssima. Eles estão a olhar para quem está a filmar, o que significa que alguém chegou muito perto deles, e há ali um lado primitivo, ancestral…
A coisa de que menos gosto nas imagens do National Geographic são as objectivas. Apanham tudo à distância. Acho que as lentes que apanham os homens e os animais devem ser as mesmas. Tem de ser uma coisa relacional.
Antes de filmar havia um conjunto de situações que queriam tratar? Como é que cenas como a da caça, por exemplo, foram concebidas?
O que havia à partida era uma série de vídeos que coleccionei no YouTube. Eram sobre todo o tipo de coisas que me suscitavam alguma reacção. Quando partimos para a rodagem havia alguns pontos definidos e umas datas. Mas tinha a noção clara do quão traiçoeira pode ser a produção feita a partir de um escritório na Almirante Reis [em Lisboa]. Sempre desconfiei que se pudessem encontrar boas histórias pelo telefone.
A televisão é o repositório do real e o cinema o da ficção. A dissidência de que falávamos no início só nos parece possível através da fábula, da aventura e do sonho. É a única maneira de escapar ao que é grotesco e redutor. Essa relação com os animais parece quase infantil. De alguma maneira isso também desapareceu um pouco do cinema. Vermos isto agora numa sala é retomar um fascínio que desapareceu.
Concordo. É tudo demasiado sofisticado e cínico. Neste filme há esse reclamar do real e da fábula ao mesmo tempo. Quero ter um pé em cada lado. Atiro a âncora para o real, e depois procuro a ficção.
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A imagem do João Cappa, que tem um formicário e é especialista em insectos, é uma das primeiras do livro O Perfume do Boi, que foi feito em paralelo com o filme. Porquê?
Ao contrário do filme, em que a situação é das últimas, no livro é das primeiras porque funciona como se ele estivesse a contar uma fábula. Mas o livro tem uma construção totalmente independente do filme. A história do livro é sobre algo de errado que aconteceu entre os homens e os animais, talvez uma morte. E no fim há as avestruzes com um grito, um grito de revolta, a alertar para uma ordem que foi quebrada.
No filme, quando ele aparece, sente-se uma espécie de eco com o espectador. Sentimo-nos a olhar de uma maneira diferente para as coisas, tal como ele. Esse momento aparece no meio, quando já temos uma experiência do filme. É alguém a dizer-nos que é preciso olhar para as coisas de outra maneira?
Faço sempre isso nos meus trabalhos. Concebo um livro à maneira de uma pauta musical. No fundo, são estratégias para conseguir a mesma coisa, que é dizer ao espectador ou ao leitor: “Fiz tudo bem, mas o que fiz estará sempre incompleto, por isso preciso de uma atitude e da participação de quem vê.” Os meus títulos fazem esse papel. Ou então o design. No fundo, é pedir uma certa predisposição.
Funcionam com um engodo?
Não, não é tanto isso. É um toque, uma proposta. Acho que é muito importante a intensidade da experiência. O filme flui entre blocos de energia e partes em que não é muito racional. É um pouco como as brincadeiras de crianças com aviões de papel. Quando o avião é atirado, querem que voe o máximo de tempo possível e não interessa se vai cair na casa da vizinha. Os títulos e o design são como este trajecto, com a diferença de que eu interesso-me por saber onde vai cair o avião. Claro que o que interessa mesmo é que voe o máximo. Ponho muita anergia a tentar garantir isso, mas essas propostas são como se dissesse: “Já agora, vamos por aqui.”
Como é que foi fotografar e filmar ao mesmo tempo? Quando é que se decidia travar uma coisa e libertar outra?
Só reparei recentemente que isto já me aconteceu três vezes. Quando se está a rodar, o filme domina porque o cinema é muito mais exigente, muito mais difícil do que a fotografia. Neste caso em particular, fazia as fotografias depois de filmar. E há as diferenças todas óbvias que têm a ver com o cinema ser uma arte rítmica, ser imagem e som. No livro, o tempo é devolvido ao espectador. Mas há coisas comuns – os meus fotolivros vêm de recursos do cinema, como o fora de campo. No centro de tudo está a sequência de imagens, que é uma das linguagens mais primitivas que há, vem das cavernas.
O Perfume do Boi é um livro em que a natureza assume protagonismo. Mas no meio há imagens que parecem caídas de pára-quedas (um camião na estrada, circo…). Com que objectivo aparecem?
Não queria que o livro ficasse muito na imagem da floresta, fora do tempo. Queria que fosse agora, com o tuning, com o trance... Depois, as imagens dialogam. Como quando se vê um caçador a disparar e, na página seguinte, parece que é o carro de corrida que leva o tiro.
Como é que se imagina um leitor/espectador perante estes dois objectos?
É difícil falar sobre as duas coisas.
Mas o que é que uma experiência acrescenta ou subtrai à outra?
Nunca pensei nos dois trabalhos em complementaridade.
Mas há aspectos que se tocam, como o fora de campo...
Edito os meus livros e os dos outros como se fossem um filme. Penso sempre em termos narrativos, mesmo quando é para destruir a narrativa. Quando fico perante um conjunto de imagens, surge uma espécie de white noise, uma frequência, sem oscilações. Sequencio a partir dessa frequência. A primeira coisa que faço é pensar na primeira e na última imagem. Isto é o momento inaugural para um objecto narrativo.
Trata-se de provocar imagens?
Sim, quero sobretudo provocar imagens aos outros, reavivar imagens da infância, criar imagens do presente. É uma tentação de omnipresença. Sei que não vou conseguir mostrar todas as minhas imagens, mas sei também que a minha selecção vai provocar outras imagens. O espectador também traz imagens para os livros. Isso é óptimo, porque significa que eu posso provocar, pelo menos, a duplicação de imagens.
O seu primeiro livro, Tunnels (2005), vai fazer dez anos.
Vai?
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Vai.
Fico surpreendido quando as pessoas gostam das minhas coisas, dos livros ou dos filmes. Penso sempre: a sério? É que são tão incompletos. Quando as pessoas nos perguntam como escolhemos os livros a editar, os nossos projectos… eu respondo: “Projectos? Não escolhemos projectos.” Escolhemos uma mundivisão. Para se perceber isso em cada autor são precisos muitos livros. Acredito nisto e estou interessado em trabalhar a mundivisão de um fotógrafo como o António Júlio Duarte, por exemplo.
Gosta de editar o trabalho de outros fotógrafos?
Gosto muito.
Quando é que um livro está fechado, se é que isso se consegue perceber?
É um bocado como dizem os Lobos Antunes: é quando já não se consegue mexer mais. Às vezes, fico dois ou três dias sem olhar para o trabalho e, depois, quando volto a ele com a ideia de mexer, ele resiste.
Como escolhem os autores que querem editar?
Autores é a palavra certa. Não escolhemos projectos. Escolhemos autores. Também não escolhemos por maquetes, nem por livros quase prontos, nem por exposições que estão abertas, nem por dinheiro que já existe. É como disse, escolhemos por mundivisão. Pode haver um ou outro livro que faça sentido publicar fora destes critérios, mas estamos mais interessados em criar elipses não só dentro dos livros, mas entre vários livros e entre trabalhos de autor.
A editora Pierre von Kleist está a correr bem?
Está a correr bastante bem. Este é um momento de balanço. Não vamos poder fazer igual. Até porque já não temos a mesma energia. Mas temos vontade de continuar. Sinto que estamos em muito boa forma na edição, a um ponto que até começo a pôr em dúvida. E enquanto for assim, uma coisa excitante e apaixonada, continuaremos. Não é que nos levemos muito a sério, mas gostamos de fazer livros de uma forma empenhada. Há ideias interessantes para a editora nos próximos anos, mas ainda não posso revelar.
E filmes?
Isso é mais difícil. Por causa de dinheiros e do meu tempo. Mas tenho ideias para uns três ou quatro filmes. Um é sobre Olhão. Será uma coisa do tipo Twin Peaks. Há um crime e vai por ali fora. Acho Olhão um sítio estranhíssimo. Tem a comunidade estrangeira mais bizarra que conheço.
Ao longo dos teus livros temos muito a ideia de viagem e de deslocação. Pelas imagens da exposição que vai inaugurar agora, Antena 2, dá a entender que puseste o pé na terra, que te fixaste mais. É assim?
Sempre quis viajar. Quando era pequeno, li o Tintim e uma enciclopédia toda. Tenho uma ideia chatwiniana da viagem, segundo a qual o ser humano é nómada por natureza, está inscrito no nosso sistema nervoso central. Fora do meu trabalho subscrevo esta ideia. A viagem é também uma estrutura narrativa, um arquétipo que escolhi. Nesta exposição há uma resolução arquitectónica e de instalação para o espaço específico da Galeria Pedro Alfacinha. É um trabalho que dará também um livro, que se chamará The Conference of the Birds, um texto do poeta persa místico Farid ud-Din Attar, que também é uma viagem. Antena 2 parte de duas experiências de quase-morte, experiências através das quais há duas ideias feitas, um caminhar para a luz e um filme da nossa vida a andar para trás. Esta exposição é narrativa e não narrativa ao mesmo tempo. Não temos de nos perguntar onde são estas imagens, nem porque são estas dez e não outras. Eu respondo: tive experiências de quase-morte e vieram-me estas imagens à cabeça. No entanto, o sabor desta exposição é narrativo, quem entrar saberá que se trata de imagens vindas de uma experiência de quase-morte. Mas é só um gosto ténue, não quero que a narrativa se torne central.
Mas há aqui alguma coisa que atire para um momento específico de Portugal? O que é que esta Antena 2 tem desse momento?
Não sei se quero verbalizar muito isto. Mas a sinopse deixa algumas pistas: experiências de quase-morte nos últimos três anos, que no fundo são os três anos da troika. Conto como foram essas experiências, uma foi durante a viagem numa auto-caravana pelas fronteiras de Portugal, em 2012, a outra vez numa cozinha no centro de Lisboa, em 2013. Quando voltei a mim, em ambas a Antena 2 continuava a tocar no rádio, na sua trincheira intemporal. Tinha a ideia que toda a gente tem da Antena 2 – a rádio onde passa música clássica. Durante a rodagem do filme ouvíamos muita rádio porque cansávamo-nos da nossa música e o noticiário era quase sempre sobre a troika, as notícias eram atrozes. A televisão e a rádio sempre a falar da mesma coisa, o desemprego, a desertificação, a crise... Quando isso acontecia, sintonizávamos a Antena 2, como uma espécie de fuga. Quando começava a ladainha sobre a troika procurávamos logo Schubert, algo mais fora do tempo. Depois, reparei que na casa de um amigo só se ouve Antena 2. Vínhamos de um ano em que tinha acabado o Ministério da Cultura e parecia que estava tudo a acabar. Havia a ideia de que a cultura não era precisa para nada. A Antena 2 pareceu-me uma espécie de último reduto. Era inabalável, continua a passar as mesmas coisas, músicas de há 300 anos. Pareceu-me que personificava a última trincheira de uma luta. E pensei que também me queria alistar. E há também a experiência de ter ouvido esta rádio no país todo. Não é uma coisa lisboeta. Está no ar, invisível, partículas de Antena 2 por todo lado, está entre as coisas.
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Funciona como um estado emotivo para estas imagens?
É como um toque, mais uma vez. Como lançar um avião de papel.