A educação sentimental de Carlos Manuel
Não é um filme sobre música. Conta a educação sentimental de Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos.
Mas, e para começar, a pedagogia e a sensualidade aqui vistas em trabalho não se deixam conter no estúdio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Mas, e para começar, a pedagogia e a sensualidade aqui vistas em trabalho não se deixam conter no estúdio.
Depois, é um subtil registo das cumplicidades entre um cantor e os seus colaboradores: José Mário Branco, director artístico, e Manuela de Freitas, cúmplice. É uma teia de afectos e ficções, eles como figuras paternais, moldando o performer, tal como um cineasta dirige um actor, ajudando-o a encontrar a medida certa das emoções. Para que se mantenha pudica a solidão.
Este não é um filme sobre música, por isso. É um filme que conta uma educação sentimental, a de Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos. Há um efeito de mise-en-abyme, como se o filme reproduzisse em miniatura um retrato maior: José Mário Branco seria um duplo de Bruno de Almeida a dirigir o “seu” actor.
Para isso, é necessário uma figura que exorbite fronteiras, e é isso o que faz o cantor no seu canto. Bruno olha-o (veja-se também o videoclip de Sei de um Rio) como um cineasta se ocupa dos valores de uma personagem. Há aquele momento, quase eufórico, quase feliz, de encontro como uma hipotética linhagem, quando Camané, citando José Mário Branco, filia a introspecção do seu canto, de um verso, no “grito abafado” de Al Pacino quando lhe mataram a filha no Padrinho III.
Não há coincidências. Estava tudo nas imagens de solidão urbana de Sei de um Rio, uma forma de confrontar uma certa tristeza masculina com movimentos de câmara obsessivos, obsessão essa que aqui é doce e melancólica, claro, não trepidante, porque a velha Lisboa não é a Nova Iorque dos 70s de Al e de Robert deNiro e desses anti-heróis que, com toda a sua violência, se viram aflitos para nomear o que sentiam.
Foi numa sobreposição de espaços e tempos (disparidades que a referência a Pacino aqui explicita) que se deu o “encontro” entre Camané e Bruno de Almeida, no início dos anos 2000, quando o realizador regressou de Nova Iorque, onde viveu 20 anos: o punk, a new wave e o jazz experimental da cena novaiorquina reconciliavam-se com o fado. Foi também com essa possibilidade de imaginar outros cenários em background que Bruno de Almeida filmou um boxeur a contar a sua história em Bobby Cassidy, de 2009 - o boxe, mundo codificado tal como o do fado; uma história sobre o que passa de pais a filhos; Bobby tão parecido com Gene Hackman... é talvez o seu mais belo filme. Sob a forma de uma entrevista, era um documentário sobre o cinema americano dos 70s que se passava todo ele na memória do realizador e no imaginário do espectador. É o que se confirma em Fado Camané: Bruno tem a capacidade de, num formato já ocupado, “projectar” nele “outros” filmes: fantasmas do imaginário e da memória pelos quais essas imagens se deixam possuir.