Altmaniano, o que é isso?
O documentário Altman que passou no Festival de Veneza é uma estratégia familiar de entronização do maverick.
“Indestrutível”, “destemido”, “a criação de uma família”, “a mestria a contar histórias”, “uma fonte de inspiração” (diz Paul Thomas Anderson, e no caso dele isso é óbvio).
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“Indestrutível”, “destemido”, “a criação de uma família”, “a mestria a contar histórias”, “uma fonte de inspiração” (diz Paul Thomas Anderson, e no caso dele isso é óbvio).
Não foi dito como uma definição de altmaniano, foi um movimento de aproximação ao gesto cinematográfico, à experiência de fazer filmes em geral, e é uma definição do próprio Robert Altman: fazer filmes é como construir castelos na areia, a maré chega, e em 20 minutos não sobra nada a não ser a memória; assim é um filme, aquilo que sobra na cabeça das pessoas sobre uma estrutura que se esteve a construir. É altmaniano.
Existe essa sensação nos filmes de Robert Altman, em A Noite Fez-se para Amar (1971), em Nashville (1975), em Buffalo Bill e os Índios (1976), por exemplo, de que um mundo - e nesses filmes, como em todos os outros do realizador, era a América – é uma construção que está a desabar, que se esvai em segundos, que é da natureza das coisas o seu desaparecimento. Que pode acontecer com um tiro, por exemplo, como no final de Nashville, climax de uma das narrativas do filme, a política, com que Altman quis sabotar a identificação que o Presidente Richard Nixon, a sua bête noire, fazia entre a música country e o carácter da América. Por isso o filme-catástrofe espreita no cinema finalmente melancólico deste realizador de Kansas City que nas últimas obras, vendo a morte aproximar-se, se aproximou dela, dando-lhe figuração.
É esse também o sentimento, de algo a fugir, que causa Altman, o documentário de Ron Mann, apresentado no Festival de Veneza na secção Venice Classics: pela experiência contraditória e fugidia (lá está…) que é o trabalho de memória em relação à obra do realizador; pela construção que aqui é feita dessa obra, pelas opções tomadas por Mann e pela família e pela viúva de Altman, Kathryn, que é a consultora do documentário: o facto de o corpo inicial do trabalho do realizador, a televisão, onde usou, abusou e se fartou das formas narrativas que eram a convenção, e o período final, depois da débâcle Popeye (1980), que o atirou para o limbo antes do regresso triunfante com O Jogador (1992), serem mais sublinhados do que aquele momento, nos anos 70, em que foi destruindo progressivamente as convenções sobre como ver e, decisivo nele, como ouvir os filmes. Isso talvez aconteça em Altman porque é nesses dois momentos que a narrativa de uma obra se pode confundir mais com os desígnios familiares.
Foi na televisão, onde trabalharia na série Hitchcock Presents, dirigindo dois episódios a convite do próprio Alfred, que Robert conheceu Kathryn, que era actriz. Foi o início da aventura familiar e de um percurso de guerrilha contra as convenções que é contado de forma pícara, por Altman, inclusivamente, através de material de arquivo com as suas últimas entrevistas. Já a parte final da sua obra corresponde ao regresso à família, cujos membros, os filhos, se queixavam de nunca verem um pai que colocava sempre o cinema como prioridade. Robert passa a integrá-los nas suas equipas de rodagem. É o periodo do exílio em Paris, onde o realizador se sentia mais compreendido, é a altura dos problemas financeiros, o que faz a família cerrar fileiras, é também, e não sem consequências, o período dos problemas de saúde, o transplante ao coração, dez anos antes de morrer devido a um cancro. Os homemovies são aqui uma parte decisiva do material e na verdade são o espírito de Altman: um filme sobre uma família.
Mas era no meio que estavam as maiores virtudes, e Altman frustra as expectativas quando parece tratar en passant Nashville ou A Noite Fez-se para Amar (que é “despachado” com a leitura de um excerto do texto da crítica Pauline Kael sobre o esvaziamento dos géneros no cinema do realizador). De Buffalo Bill e os Índios, por exemplo, quase que não há registo.
Mas há Mash (1970), o enorme sucesso (“Mash is Smash”), projecto que chegou a Altman pela mão do produtor Ingo Preminger sobre a Guerra da Coreia quando “ao vivo” decorria o Vietname. Os estúdios entretinham-se a muscular o vigor bélico de Patton ou de Tora Tora Tora e por isso estavam distraídos em relação ao que podia preparar um realizador que já tinha sido despedido por Jack Warner pela sua mania do realismo, por “deixar os actores falarem todos ao mesmo tempo”. Altman preparava o mesmo tipo de “ilusão da realidade”, mergulhando o espectador em várias hipóteses de diálogos que ele poderia escolher seguir e ouvir, expondo a violência da guerra e a sátira. Quando Daryl F. Zannuck viu Mash, decidiu que todo o sangue teria de ir à vida. Isso só não aconteceu porque Daryl trouxera de uma viagem europeia “duas amigas” que acharam que isso é que era “cool” – Hollywood tinha sido, defintivamente, “tomada” e a memória disso é um dos pratos fortes da secção Venice Classics, com a exibição de outros dois documentários, One Day Since Yesterday: Peter Bogdanovich & The Lost American Film, de Bill Teck, e Mise en Scène with Arthur Penn (A Conversation), de Amir Naderi.
Paul Thomas Anderson disse de Altman que ele tinha o melhor sorriso que um cineasta alguma vez ostentou e muitas vezes foi com ele que falou daquilo que o separava de Hollywood (“I make gloves and they sell shoes”). Altman é uma estratégia familiar de entronização do maverick. Que, quando recebeu finalmente da Academia um Óscar – honorário –, lembrou aos seus membros que tinha no corpo um coração de uma rapariga de 40 anos e que o prémio à carreira talvez viesse cedo demais. Morreu nesse ano, em 2006, tinha 81 anos.