Morreu Lauren Bacall, a actriz do olhar insolente

Chamaram-lhe The Look, brilhou com uma insolência que nunca se vira antes na Hollywood dos anos 1940 e 50, era dura, sem paciência para a falta de carácter, e democrata até ao osso. Ensinou Bogart a fumar e a fazer outras coisas. Foi uma working girl até ao fim.

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Mesmo se só tivesse feito os dois filmes em que Hawks elaborou para o casal, uma cartilha de jogos de sedução e double entendres – o assobio e o cigarro em Ter ou não ter (1944), falar de sexo como quem fala de corrida de cavalos, uns que correm à frente outros que vêm de trás, em The Big Sleep (1946) –, Lauren Bacall já seria uma das criaturas mais extraordinárias que o cinema fabricou.

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Mesmo se só tivesse feito os dois filmes em que Hawks elaborou para o casal, uma cartilha de jogos de sedução e double entendres – o assobio e o cigarro em Ter ou não ter (1944), falar de sexo como quem fala de corrida de cavalos, uns que correm à frente outros que vêm de trás, em The Big Sleep (1946) –, Lauren Bacall já seria uma das criaturas mais extraordinárias que o cinema fabricou.

Esta senhora dura, insolente, sem paciência para a falta de carácter e para a cobardia moral, democrata até ao osso, morreu esta terça-feira, aos 89 anos, na sua casa em Nova Iorque, noticiou à AFP o seu sócio na Humphrey Bogart Estate, Robbert JF de Klerk. A actriz teve um "forte acidente vascular cerebral" e não resistiu. Houve um post de fonte da família Bogart numa conta oficial no Twitter: "Com profunda tristeza, mas com grande gratidão pela sua vida incrível, confirmamos o falecimento de Lauren Bacall".

Chamaram-lhe The Look, e é só olhar para as fotografias para perceber porquê. Hawks (e é preciso sempre regressar a ele) tem responsabilidades. A mulher do realizador viu-a um dia numa capa da Harper's Bazaar – dia 1 de Março de 1943 – e recomendou-a ao marido. Betty Joan Perske não tinha ainda 19 anos, estudara dança, faltava às aulas para ver filmes com Bette Davies (alguma coisa deve ter ficado nela...), era manequim e contava no seu portfolio com dois ou três fracassos na Broadway. Mas perante a foto da Harper's Bazaar Hawks soube o que fazer. Contratou-a.

Ensinou-a a tirar partido da voz grave, porque não haveria coisa “menos atraente” do que uma rapariga guinchar. E lá ia ela (contou na sua autobiografia By Myself) para Mulholland Drive ler alto para os canyons. Três semanas depois...Hello, how are ya. Betty Joan Perske metamorfoseava-se em Lauren Bacall. Hawks – ele próprio conta-o no livro de conversas Hawks on Hawks, de Joseph McBride – ensinou-lhe ainda algo de mais essencial: a ser má com os homens para conseguir boleias para casa. "Porque não tentas insultá-los?".

E assim apareceu uma rapariga de 19 anos que era tão insolente como a mais insolente das estrelas do firmamento de Hollywood daqueles anos: Humphrey Bogart. Nunca se tinha visto nada assim, embora Marlene Dietrich se tivesse aproximado de Hawks a reclamar o que achava que era dela: “Sabes, aquilo sou eu há 20 anos”. (Hawks sabia-o, era verdade).

Em Ter ou não Ter, Bacall chama-se Slim porque era esse o nome da mulher de Hawks. Afinal, é preciso regressar a ela, Slim Keith, mulher do jet set de Nova Iorque, ícone da moda (ela própria apareceu na Harper's Bazaar), inspiração de Truman Capote, fumadora inveterada e, segundo a sua biografia, Memories of a Rich and Imperfect Life, a proprietária das roupas que Bacall usa em Ter ou não Ter e a autora do famoso ''You know how to whistle, don't you?'' – a que, reconhece, Bacall deu um tom pessoal de comic film-noir.

O casal Bogart/Bacall tiraria ainda partido da sua química cinematográfica em Dark Passage (1947) e Key Largo (1948), mas Lauren dedicou-se à vida familiar, escolha que, assumiu, prejudicou a evolução da sua carreira. Também não ajudou o facto de ter entrado em vários litígios com o estúdio, a Warner, por recusar papéis, sendo suspensa (12 vezes). Mesmo parecendo sempre inquebrantável, por exemplo ao lado de Marilyn Monroe em How to Marry a Millionaire (1953) – um suplemento de fibra para prender a volátil loura à terra –, ou ainda em melodramas de Vincent Minnelli (Cobweb, 1956, Designing Woman, 1957), ou Douglas Sirk (Escrito no Vento, 1958), Bacall cedo demais ficou um magnífico side-show. Bogart, de quem teria dois filhos, Steve e Leslie, morreria em 1957 e, entre 1961 e 1969, foi casada com Jason Robards, de quem teve Sam.“O meu obituário vai estar cheio de Bogart, tenho a certeza”, disse numa entrevista à Vanity Fair em 2011. “Nunca saberei se é a verdade. Se é o que é, é o que é. Ele foi o meu mentor, o meu professor e o amor da minha vida. Lembro-me de cada palavra que me disse mas nunca mais o verei.”

Continuou a ser uma working girl, também sem paciência para os benefícios da "lenda cinematográfica", e a ter de ganhar a vida. As lendas eram do passado e nada tinham a ver com o presente, onde a actriz ainda queria fazer tanta coisa. “Quando alguém me pergunta porque é que eu ainda estou a trabalhar, apetece-me logo dizer: ‘Por que é que te atreves a perguntar-me isso?’ Se eu não trabalhasse, não saberia o que fazer comigo", disse em tempos. Ganhou um Globo de Ouro e uma nomeação ao Óscar por The Mirror Has Two Faces (1996), de Barbra Streisand. E deve ter percebido que continuava na memória de muita gente e que era em nome disso que Robert Altman (Pronto a Vestir, 1994), Lars von Trier (Dogville, em 2003 e Manderlay, em 2005), ou Jonathan Glaser (Birth, 2004) a chamaram. 

Foi envelhecendo, mas não perdeu a sua fibra e teve capacidade de se reencenar. Não falamos tanto da sua participação em Crime no Expresso do Oriente (1974), em que era uma das muitas estrelas à volta de um crime – uma vaga de filmes, nessa época, de trazer à vida cinematográfica estrelas do passado para as fazer morrer numa catástrofe. Falamos, por exemplo, no The Shootist (1976) ao lado de John Wayne, ou na sua reivenção como actriz de musicais, por exemplo em Applause, escrito por Betty Comden e Adolph Green, baseado no All About Eve com Bette Davies (sempre ela), que foi um triunfo, 896 actuações - Tony para o Melhor Musical e para a Melhor Actriz num musical. Em 1985 foi dirigida por Harold Pinter no Sweet Bird of Youth de Tennessee Williams, em Londres. Bacall esteve no Festival Internacional de Cinema de Tróia em 1998, onde foi homenageada pela sua carreira. Disse uma vez numa entrevista à Vanity Fair: “Não acho que alguém com cérebro possa alguma vez ser feliz".