A terra prometida para os imigrantes de Calais está tão perto e tão longe

Nos seus países eram advogados, jornalistas, soldados. Muitos estão em Calais à espera de passar para o Reino Unido. São 40 quilómetros que estão tão longe para quem não tem passaporte. Alguns morrem ao tentar passar.

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Dois turistas arrastam as suas malas de rodinhas da paragem do autocarro até ao grande terminal de ferries de Calais. Ao fazer a curva, surge um acampamento. Tendas como cogumelos de plásticos negros, cobertas de pó, pedaços de madeira, uma sebe de arbustos baixos que cheiram a casa de banho pública ao ar livre. 

Dois imigrantes estão em pé no passeio, com o sol tímido da manhã a bater-lhes no rosto. Os turistas vêem-nos e atravessam a estrada para o outro lado do passeio. Uma mota passa e faz uma manobra ameaçadora como se os fosse atropelar. Eles olham, em incompreensão. 

Aproximamo-nos, e vemos um brilho nos olhos, esboços de sorrisos: será por aparecer alguém que não passou para o outro lado, e que vai falar com eles? Mas não é possível comunicar. Percebemos só o país de origem, Afeganistão.

Em volta, a maioria dos habitantes deste campo está a dormir, apenas pequenos grupos de dois ou três se juntam à volta de uma pequena fogueira. A manhã é a altura de descanso. À tarde, alguns vão a centros de apoio que os ajudam com pedidos de asilo, onde há a possibilidade de tomar um duche em cabines portáteis, onde há café quente. Às seis da tarde, aparecem carrinhas com distribuição de comida, e é hora da única refeição do dia para a maioria. À noite é altura de tentar entrar num camião que vá no ferry para o outro lado.

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Um dos campos de refugiados de Calais, junto ao porto Joana Bourgard

Há quem fique à espera que um destes camiões páre num cruzamento para entrar, por baixo, na parte de trás. Há quem entre em algum que esteja estacionado e espere que ele ande. Muitas vezes, corre mal. “Ontem não dormi nada”, explica-nos um dos imigrantes que encontramos, mais tarde, na distribuição de comida. “Estive mais de treze horas num camião.” O que aconteceu? “Era feriado, ele não partiu.” Foi uma espera com mais cinco pessoas, num dos eixos da parte de trás do camião, que parecia não ter fim. “A dada altura tossi; estou um bocado mal da garganta. Os outros mandaram-me calar, disseram-me que os estava a pôr em perigo.” Nada disto o demove: “Qualquer dia tento outra vez.”

Recentemente houve vários imigrantes a morrer. Um deles foi precisamente num camião: um grupo de três jovens eritreus entrou no camião mas este não ia para Inglaterra; saltaram, um deles morreu. Tinha 19 anos.

Outro eritreu tentou nadar, morreu no mar. Um iraniano de 30 anos foi morto a tiro, aparentemente vítima colateral de uma luta entre grupos rivais que tentam controlar o “negócio” de levar imigrantes ao outro lado.

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Joana Bourgard

“Isto não é Lampedusa.  Mas já é muita gente, são demasiadas mortes”, comenta Clemente Gautier, jurista, que ajuda algumas organizações com pedidos de asilo. Há várias razões para procurar Inglaterra. Alguns dos imigrantes falam inglês, outros já lá têm alguém de família. Outros ainda acreditam que é mais fácil trabalhar sem documentos no Reino Unido.

E há ainda quem acredite que é mais fácil obter asilo. Em 2013, o Reino Unido aceitou 6542 pedidos de asilo (ou concedeu algum tipo de protecção aos refugiados), ou seja, deu resposta positiva a 37% dos 23.507 pedidos, enquanto a França acolheu 10.470 refugiados, ou seja 17% dos 61.455 pedidos que recebeu.

Quem pede asilo deve fazê-lo no primeiro país a que chega, mas não é isso que acontece, e a maioria dos imigrantes que estão aqui vieram via Itália, para os que chegam do norte de África, ou Bulgária, para os que vêm por exemplo do Afeganistão. Alguns, raros, vêm directamente de avião.

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Centro de ajuda Secours Catholique de Calais Joana Bourgard

Ser europeu é estar protegido
Como Mohamed Yousif, advogado sudanês que se fartou de uma vida de entra-e-sai das prisões do Sudão, de lutar e de não ter “reconhecimento de ninguém”, de “perder tempo, perder família, perder amigos”, e decidiu sair. Encontramo-lo no centro de ajuda Secours Catholique de Calais, após uma aula de francês. Yousif está sempre a brincar, mas não passam nem cinco minutos de conversa, o cigarro que acendeu há pouco vai a meio, o sorriso desfaz-se, e já está ele a afastar-se de lágrimas nos olhos. “Tenho vergonha de ter fugido.”

Quando volta, conta como fez a única ilegalidade da sua vida – “eu fui advogado durante 23 anos, nunca tinha feito nada ilegal!”, sublinha. “Mas fiz.” Comprou um passaporte de outra pessoa por 2200 euros, e foi. “Não imaginam a sensação quando aterrei no Charles de Gaulle”, lembra, abrindo os pulmões numa grande respiração livre e abrindo o sorriso.

Não quer contar exactamente por onde passou, por onde foi. “Vocês são muito curiosos!”, dribla, acrescentando apenas que demorou três meses desde que saiu até chegar a Calais. Mas Yousif não quer ficar aqui. “É frio, não há trabalho, não há dinheiro.” Quer ter "papéis europeus", para voltar a África como europeu. “O meu plano é ir viver para a Etiópia. Se for como sudanês podem-me prender, podem mandar-me de volta. Se for como europeu, não.” Aí poderia juntar-se à sua mulher, que está ainda no Sudão.

Enquanto isso vive aqui, trabalhando a serrar madeira de paletes no centro Emmaüs, recebendo um euro por hora e alojamento, comida, e cuidados de saúde se for necessário, tendo aulas de francês no centro. Quanto tempo poderá demorar até ter uma decisão? “Depende. Alguns casos são decididos em três meses, outros em dois anos. Uma coisa é certa: não vou esperar dois anos.”

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Mohamed Yousif Joana Bourgard

“Isto é França, anda tudo devagar”
O ambiente neste centro é, contra tudo, alegre. A meio da tarde é servido arroz doce, em grandes pratadas. Todos comem, acompanhando com uma caneca com café quente; o grande termo de café é o epicentro de um corropio, voluntários entram e saem a sorrir. O responsável pelo centro é um homem bonacheirão e barrigudo que dá pelo nome de Jacky. Anda de um lado para o outro a resolver tudo e mais alguma coisa. Ainda o ouvimos dizer da sua sala: “Isto é França, as coisas andam todas muito devagar. Isto não é o Gana… ainda mais devagar. Tem de ter paciência, tem de esperar.”

Do centro Secours Catholique vamos até à distribuição de comida, feita no que parece ser um parque de estacionamento antigo do outro lado do campo perto do terminal de ferries. Filas de gente à espera nas várias bancas, outros juntam-se a comer, em pé ou sentados. Há muitos imigrantes que não querem ser fotografados, que não querem dar o nome, que não querem arriscar nada. Têm medo de ser apanhados, de ser repatriados. As gaivotas voam em volta, um carro da polícia espreita lá fora.

Mas há um destes imigrantes que quer mesmo contar a sua história. Chama-se, pelo que percebemos, Kausar Afghan, tem 24 anos, e é afegão. A comunicação é difícil: a sua história é demasiado intrincada para o seu nível de inglês. Mas conseguem-se perceber as linhas principais: Saiu do país há dois anos e meio, porque foi ameaçado. “Trabalhei com o exército americano. Num casamento, um primo meu, que é taliban, ameaçou-me de morte, por isso vim embora”. Deixou mulher e três filhos. Tentou pedir asilo na Bélgica, foi recusado. Quer ir pedir asilo a Inglaterra (não é claro como, porque o asilo deve ser pedido apenas no país de chegada). “Tenho papéis que mostram que trabalhei para os americanos no Afeganistão”, sublinha – e mostra também as marcas que tem de ferimentos por estilhaços. “Se não conseguir asilo e tiver de voltar, vou ter de trabalhar para os taliban, para não me matarem. Aprendi muito com os americanos, isso serve-lhes de muito”. 

Entretanto aparece outro afegão, que tínhamos conhecido no centro do Secours Catholique. De calças e camisola clara, impecável, inglês perfeito, nunca pensámos que vivesse ali ao lado, naquelas tendas sujas. Mas vive. Não quer dar o nome nem ser entrevistado. “Já fui jornalista no Afeganistão, e sei como dão a volta a tudo. Em Inglaterra falei demais, e não me deram asilo. Não vou falar mais”, explica.

Também vai tentar um novo pedido aqui em França. Enquanto isso, deixa um desabafo: “Experimentem comer apenas uma vez por dia. Tomar banho uma vez por semana, ou duas. Dormir aqui.” E ele nem fala do vento cortante que está ao final da tarde. “O que é isso de direitos humanos? É direitos humanos viver assim?”

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Kausar Afghan Joana Bourgard

Esta é a nona de 11 paragens na Europa que vai a votos. Amanhã, Londres.

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Joana Bourgard