O que aconteceu a Saint Laurent, o filme? Não se sabe, desaparece

O realizador Bertrand Bonell regressa à competição de Cannes depois de em 2011 ter apresentado Apollonide - Memórias de Um Bordel , desta vez com um não-biopic sobre o costureiro Yves Saint Laurent

Fotogaleria

Chamava-se Opium, mas o que interessa, neste diálogo de Saint Laurent que parece uma consciência a falar (-nos) do interior do ecrã, é sentir como o filme de Bertrand Bonello se quis também libertar das convenções pesadas do biopic em direcção a algo de inaprisionável.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Chamava-se Opium, mas o que interessa, neste diálogo de Saint Laurent que parece uma consciência a falar (-nos) do interior do ecrã, é sentir como o filme de Bertrand Bonello se quis também libertar das convenções pesadas do biopic em direcção a algo de inaprisionável.

Por isso talvez nunca se consiga apanhá-lo, o filme talvez não tenha direcção certa, para onde vai não se sabe - Yves Saint Laurent, costureiro, toxicodependente, sonhava com tecidos a esvoaçar e quando acordava só via em redor coisas duras.

Bertrand Bonello, que regressa à competição de Cannes depois de em 2011 ter apresentado Apollonide - Memórias de Um Bordel (uma maison close, e agora em 2014 uma maison de couture) fala num impulso de libertação desencadeado pelo aparecimento de um outro projecto sobre o costureiro, Yves Saint Laurent, filme de Jalil Lespert, sobre os inícios da carreira de YSL e o seu encontro com Pierre Bergé, companheiro – projecto este apoiado por Bergé, guardião da memória e do património de YSL, que permitiu o acesso de Lespert a desenhos, vestidos e acessórios, enquanto ao filme de Bonello prometeu caso em tribunal (ninguém próximo de Saint Laurent ou de Pierre Bergé tinha ainda visto o filme de Bonello antes de Cannes).

Sendo aquele o biopic oficial, Bonello centra o seu filme no período que vai do final dos anos 60 ao final dos anos 70, como década aventureira onde tudo aconteceu, cápsula de tempo que foi também um dos períodos negros da relação de Saint Laurent com as drogas e com o sexo e que anunciou o que estava por vir – Gaspard Ulliel é Saint Laurent ao longo de quase todo o filme, ficando para Helmut Berger o fim, um dia de YSL em 1989, a reclusão de fragilidade, quando o corpo começa a desprender-se definitivamente do tempo.

E Bonello sentiu-se encorajado a partir em direcções diversas do continuum do biopic, querendo estar colado aos actores como no filme do bordel esteve colado às putas e querendo filmar não só o que se passava com as personagens, querendo também filmar o que se passava com os intérpretes.

Para ver “a graça a aparecer entre os actores”, como disse Gaspard Ulliel em conferência de imprensa, numa das suas duas ou três intervenções em que foi luminoso. Isto faz com que Saint Laurent esteja em permanente estado de contradição, deixando-se olhar mas depois recuando para ser ele a olhar-se, correndo sempre o risco de fazer passar afectação no lugar da emoção.

Se alguém perguntasse que razão há, uma única que seja, para ver este filme, a resposta é: Helmut Berger. Foi complicado trazê-lo ao ecrã, contou Bonello, mas a partir do momento em que entrou no plateau e reconheceu o desejo de sofisticação do cinema, deixou-se ir. Lembrou-se. E assim vemos numa cena o intérprete da personagem de Yves Saint Laurent nos seus últimos dias a ver, na sua solidão, os Malditos, de Visconti, filme que foi protagonizado por Berger (Saint Laurent via-o repetidamente).

Nesse confronto de Berger com o seu passado, com a sua imagem, nesse reconhecimento que é também a consciência de um desprendimento das coisas pesadas, está talvez o filme que Bonello quis fazer, essa mistura de tudo, de documentário e de ópera. Como se tivesse sido preciso todo um filme, e a frustração que ele causa, para o filme finalmente se desprender numa cerimónia final. É das imagens inesquecíveis deste festival: Helmut Berger a desprender-se das contingências do tempo.

E também um caso desses, todo um filme que é preciso percorrer – e quase três horas e meia dele – para chegar a uma espécie de núcleo poderoso e fulgurante do que ele podia ter sido. E ele é Winter Sleep, de Nuri Bilge Ceylan (concurso). É um filme que desenha círculos concêntricos à volta de um objectivo, destruir as virtudes intelectuais e morais de um intelectual – cenário, a Anatólia coberta de neve.

Essa estratégia cobre-se de outra, também violenta: com este filme, Ceylan parece interromper a incontinência formalista dos últimos trabalhos, apoiando-se fundamentalmente nos diálogos que percorrem a moral, a religião e todo o mundo, sendo as palavras a forma como as personagens se constroem e destroem.

Se pensarmos que a personagem principal do filme é um homem vaidoso, dominante e capaz de oprimir com a elegância (personagem para o qual o realizador olha, aliás, com respeito e gravidade), podemos ouvir o embate surdo da auto-reflexão em Winter Sleep. Isso vibra. Mas a questão é que o dispositivo de diálogos e situações é utilizado da mesma forma incontinente como antes os travellings.

É e claro que não é possível ser Ingmar Bergman, apesar de Winter Sleep ser, fundamentalmente, um conjunto de cenas de uma vida conjugal. Acaba por ser então um movimento de câmara, na sequência final, a afastar-se de uma casa, céu a desfazer-se em neve, lá dentro o casal, a conter todo o filme. Era este, afinal?

Wild Tales, do argentino Damián Szifrón, é o mesmo filme do princípio ao fim. Ao menos não engana. Filme em “episódios”, é mesmo isso: uma colecção de curtas-metragens. A violência, a frustração, a desigualdade social, o desejo de fazer explodir o mundo tal como o conhecemos porque chegou ao fim um caminho, isso tudo pode ser o batimento cardíaco da sociedade argentina e ao mesmo tempo um som que pode ser ouvido, sentido globalmente.

Mas há qualquer coisa de oportunista neste aproveitamento da realidade (ao contrário, por exemplo, do filme em episódios da chamada comédia à italiana, que era invadida e violentada pela realidade): tudo, até o bem oleado mas anónimo maquinismo cinematográfico, uma espécie de esperanto para facilitar o reconhecimento, é sempre encaminhado para o conto do imprevisto.