Número de equilibrismo a três com uma party girl sexagenária
Party Girl, um filme com três realizadores, abriu a secção Un Certain Regard do Festival de Cannes. Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, uma das longas em competição, é baseado num episódio real. Mr Turner, de Mike Leigh reconstitui os últimos anos da vida do pintor J.M.W. Turner
São amigos na vida. Dizem que foi isso que lhes permitiu avançar para Party Girl e contar a história de Angélique, que é interpretada pela própria Angélique, de apelido Litzenburger. Tem 60 anos, mas continua a atrair os clientes, mesmo se agora eles são mais raros, para as garrafas de champanhe. Porque a noite não se despega dos seus dias. (Angélique, já agora, é a mãe, na vida real, de um dos realizadores do filme, Samuel.)
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São amigos na vida. Dizem que foi isso que lhes permitiu avançar para Party Girl e contar a história de Angélique, que é interpretada pela própria Angélique, de apelido Litzenburger. Tem 60 anos, mas continua a atrair os clientes, mesmo se agora eles são mais raros, para as garrafas de champanhe. Porque a noite não se despega dos seus dias. (Angélique, já agora, é a mãe, na vida real, de um dos realizadores do filme, Samuel.)
Um dia, um antigo cliente e eterno apaixonado, Michel, propõe casamento a Angélique. O horizonte de nova vida começa a avistar-se, o que motiva os quatro filhos, todos eles filhos da personagem Angélique e filhos da actriz Angélique. Mas Party Girl, o filme que abriu a secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, talvez seja o relato de uma mulher sob influência, de uma pulsão que não se mascara de generosidade, de uma exuberância que não maquilha a solidão. Angélique não consegue fechar para balanço.
A perícia de equilibristas dos realizadores, Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Thesis, fá-los aguentarem-se nesta vertigem da ficção pela realidade e do real pelo romanesco caminhando vigilantes sobre um fio. Há melodrama, há uma história de família e um acontecimento real a partir do qual se ficcionou (a partir de um casamento atípico de Angélique há anos...). Há retrato de personagem e retrato de grupo proletário numa zona do Nordeste de Franca, a Lorraine, fronteira com a Bélgica, Luxemburgo e Alemanha.
Há personagens que interpretam os seus próprios papéis e não profissionais que interpretam personagens secundárias. Há relações afectivas à solta, entre as personagens, os actores (e os realizadores, um dos quais, Samuel, filho, também é actor). A vigilância é aquela que impede que o excesso, a intimidade e o sentimentalismo se peguem ao espectador criando zona de reconhecimento fácil, ficando pegajoso como um docudrama.
Há uma ética feroz perante a intimidade das personagens, respeito pelo seu espaço vital: quando a coisa ameaça a facilidade, a montagem corta e o espectador tem de começar de novo. Não podemos ter a pretensão de ter conhecido Angélique, felizmente. Apenas estivemos perto dela.
No caso de um filme como Timbuktu, de Abderrahmane Sissako (concurso), essa ética dá-se a ver com uma elegância que várias vezes leva à comoção.
Timbuktu é baseado num episódio real: em 2012, numa pequena cidade do Norte do Mali, um casal foi apedrejado até à morte. O crime, segundo os fundamentalistas islâmicos que ocupavam parte da cidade, era não serem casados. Timbuktu filma uma cidade onde não há música, onde não há alegria, onde as mulheres são sombras de negro, onde não há cigarros, onde não há futebol – aquela sequência, uma coreografia-fantasma, em que um grupo de adolescentes joga sem bola, continua a ser evocada em Cannes horas e horas depois da primeira apresentação do filme.
Eis como o cineasta do Mali se instala no filme de denúncia e responde à questão de como filmar o insuportável: em vez do grito, o silêncio, que é aquilo que sobra depois do fim. Uma das coisas mais bonitas, e isto sem ironia alguma, é a forma como o filme trata os maus da fita: como o cinema clássico filmava as suas personagens. Isto diz sobre o pacto que liga o espectador a Timbuktu.
A propósito de Party Girl, os seus criadores evocaram o nome de Maurice Pialat. Lembrámo-nos dele ao ver Mr Turner, de Mike Leigh (concurso), que reconstitui os últimos anos da vida do pintor fascinado por barcos, tempestades e pela revolução industrial J.M.W. Turner (1775-1851). Lembrámo-nos do Van Gogh de Pialat (1991), porque em Mr. Turner também há um percurso, uma via, de contacto com as matérias e da experiência do corpo, e da doença, até à morte.
Sem transcendência à vista pela Arte que alivie o encontro brutalista do humano com a sociedade. Como disse Leigh numa entrevista ao PÚBLICO: “O que me interessa sempre é saber quem somos, onde é que dormimos na noite passada, que infância tivemos, o que comemos ao pequeno-almoço e o que é que acontece quando vamos à casa de banho. Para mim, esses são os assuntos decisivos da vida.”
Isso foi dito na altura de Topsy Turvy (1999), um “filme sobre artistas”, tal como agora Mr. Turner, que tem como intérprete Timothy Spall, que rosna como um leão. Era um filme sobre Gilbert and Sullivan, a dupla de opereta na Inglaterra vitoriana de folhos, monóculos e bigodes retorcidos. Apesar da surpresa que o projecto possa ter causado na altura, fica como um dos maiores filmes do cineasta, momento de auto-análise e um trabalho portentoso de bricolage a partir dos cenários e adereços para falar de um mundo em mudança: o século XIX a descolar como papel de parede, abalado pela chegada do século XX.
Com Mr. Turner, Leigh diz ter querido voltar a virar a câmara para a sua profissão: artista. Mas aquilo que resultava febril e delirante em Topsy Turvy, porque até era uma história que permitia a Leigh retratar-se e ao seu famoso – mas que continua secreto – método de ensaios com os actores, é mais dócil e de acordo com as regras em Mr Turner – um filme excessivamente longo, aliás, que dá a impressão várias vezes de sobrepor às peculiares marcas de Leigh os exotismos do filme de época britânico.