À procura de um país
Is that a metaphor? Era, é: Catarina Vasconcelos a andar com um elefante no Hyde Park em Londres. Tinha de ser suficientemente grande “para caberem dentro estas coisas todas”: a mãe e o país, um cancro e uma revolução. “Os elefantes têm uma memória gigante. E são animais que visitam os seus mortos.” Catarina respondeu yes, sim, é uma metáfora, o elefante no Hyde Park é o elephant in a room que se evidencia mas que toda a gente finge ignorar. Respondeu yes aos londrinos que se abeiravam com curiosidade.
A verdade é que na altura nem sabia o que respondia: o filme estava a ser rodado e ela ainda não o tinha escrito. Escreveu-o depois, com o alinhamento das imagens em cima da mesa. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso está aí, estará no DocLisboa 2014, de 16 a 26 de Outubro. (Acabou por levar a “metáfora” no título.) E está hoje aqui, nestas páginas, não só porque foi considerado há duas semanas a melhor curta internacional pelo júri do festival Cinema du Réel, em Paris, mas porque é uma narrativa de timing certo: está em busca do 25 de Abril. “Como é que se esqueceu um país?”
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Is that a metaphor? Era, é: Catarina Vasconcelos a andar com um elefante no Hyde Park em Londres. Tinha de ser suficientemente grande “para caberem dentro estas coisas todas”: a mãe e o país, um cancro e uma revolução. “Os elefantes têm uma memória gigante. E são animais que visitam os seus mortos.” Catarina respondeu yes, sim, é uma metáfora, o elefante no Hyde Park é o elephant in a room que se evidencia mas que toda a gente finge ignorar. Respondeu yes aos londrinos que se abeiravam com curiosidade.
A verdade é que na altura nem sabia o que respondia: o filme estava a ser rodado e ela ainda não o tinha escrito. Escreveu-o depois, com o alinhamento das imagens em cima da mesa. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso está aí, estará no DocLisboa 2014, de 16 a 26 de Outubro. (Acabou por levar a “metáfora” no título.) E está hoje aqui, nestas páginas, não só porque foi considerado há duas semanas a melhor curta internacional pelo júri do festival Cinema du Réel, em Paris, mas porque é uma narrativa de timing certo: está em busca do 25 de Abril. “Como é que se esqueceu um país?”
A interrogação é de uma rapariga de 28 anos que construiu a memória da revolução através da aventura dos pais, que se apaixonaram e foram de Citröen 2 cavalos até à reforma agrária. Dez anos depois da morte da mãe, Catarina e o irmão escrevem-se: sentem-se metades de pessoas, as gavetas recheadas de vazio, habitantes de casas incompletas; estão a ser varridos por correntes de ar, as portas e janelas fizeram greve geral. “Mãe, para onde é que levaste a revolução?”
Querem virar a tristeza do avesso. Atravessam a ponte, num país em que “o ministro da Saúde pede às pessoas para não ficarem doentes por causa do Orçamento de Estado”, vão em direcção ao tempo atrás, quando eles nem existiam, “quando não havia cancro” — em direcção ao “tempo das revoluções dentro das pessoas que depois se tornaram revoluções fora das pessoas.” O cinema é a “máquina de engolir” que torna a viagem possível — engolir para outro tempo. Catarina visita os seus mortos.
Dez anos depois da morte da mãe, a catarse e talvez a culpa, palavra pesada, pelo esquecimento que começa a acolchoar a memória, são agitados por aquilo que vê ao longe, como se usasse telescópio a partir de Londres, onde fez mestrado no Royal College of Art em Design de Comunicação. Pelas conversas telefónicas com o pai, pelas notícias nos jornais. O cá dentro, que está dentro de nós, lá fora. “Teria sido impossível fazer este filme se estivesse em Portugal”, diz. É esse o timing de Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, trabalho de mestrado no Royal College: abrir uma narrativa íntima, pessoal, individual, já que se trata de alguém a “deitar coisas cá para fora”, à possibilidade coral, a um “de todos nós.”
“Não me interessa fazer filmes para mim própria. Quero partilhar uma memória colectiva. Era preciso estabelecer esse elo de colectivo. Daquilo que é pessoal e que pertence também a muitos. Porque não é um filme de passado. Interessa-me que seja um filme sobre o presente.” Sobre isto, por exemplo: “Quando se vêem os filmes da altura, 1974-1975, da altura do PREC, vêem-se muitos debates populares. As pessoas tinham voz. Para onde é que isso foi? Como perdemos, como se desvaneceu, essa memória? O país foi esquecido. Pelo menos aquilo que os meus pais me disseram que foi o 25 de Abril.” Talvez não haja momento mais tremendo desse encontro entre a história pessoal de Catarina e a emoção de um espectador — e a ser assim será uma sobreposição de tristezas — do que aquele em que ela convoca os avós maternos para visitarem o local onde antes houve casa, em que a mãe cresceu, e onde hoje já não há uma casa e a natureza tratou do assunto. Começa por ser o embaraço dos avós, o embaraço de quem não se olha verdadeiramente porque olha o vazio, que só faz cair para dentro: foi o que ficou depois de eles terem enterrado a filha e terem assim perdido também uma metade. É nesse aspecto cinéma verité da tristeza. É depois o embaraço do espectador que ouve aí ecos de si. “Esta luta entre o esquecimento e a procura das coisas, como aquela casa que ali existiu, é uma metáfora de muito o que tem acontecido.”
Após a nostalgia, avançar...
E o que tem acontecido? Há algo no ar. Em Setembro de 2012, houve manifestações em Portugal. Margarida Rêgo, outra estudante em Design de Comunicação no Royal College of Art, testemunhou. Viu. Quis “começar a perceber o que é isso de lutar por um país”. Também com memória construída da Revolução, pela família e amigos, Margarida, colega de Catarina em Londres, olha à volta e vê “nostalgia” na sua geração. Fez uma curta. Vai estar em Cannes, Quinzena dos Realizadores: A Caça Revoluções. O título diz ao que vai: sobre uma foto do pai da época revolucionária, Margarida “anima” marcas do tempo, inventando um diálogo entre uma memória rica mas cansada, que desistiu, e uma memória ávida de alimento. “Devemos procurar novas palavras de ordem, novas músicas. As pessoas da minha geração não se conseguem desligar dessa nostalgia. Isso faz com que não se consiga avançar. A revolução não terminou no 25 de Abril, temos de pensar que ela continua e que está sempre em mudança. Vamos estar sempre a fazer a revolução.”
Margarida experimenta, em A Caça Revoluções, com desenhos sobre imagens. “Para saber o que acontece com o passar do tempo, o que acontece a seguir à imagem.” É o seu encontro sem compromisso com o cinema, fiel apenas à possibilidade artesanal, capaz de engolir tudo, que nele descobriu. Tal como Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, colagem de ficções do real e uma colagem dos diferentes interesses da realizadora. Que nunca tinha pensado em cinema até que descobriu também essa capacidade de engolir.
O seu background é a música, começou a estudar violino aos sete anos no Conservatório. Mas percebeu que não queria ser instrumentista. Fez Design de Comunicação nas Belas Artes. Aí também fez teatro. “Os meus pais não só me passaram os valores do 25 de Abril, também me passaram os valores de fazer algo pelos outros.” Seguiu os passos da mãe, socióloga, trabalhando em bairros problemáticos. “Não era a reforma agrária, eram outras reformas. Mas vi que não ia salvar ninguém e que fundamentalmente estamos apenas a salvar-nos.” O passo seguinte foi Antropologia Visual, no ISCTE, embora continue “obcecada” pelo Outro. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso é um feliz retrato dessas justaposições, até porque permite ao espectador encontrar a sua narrativa. Com humor, a realizadora dá conta de dificuldades encontradas junto dos professores no Royal College: “Os ingleses não são nada poetas, não percebem a poesia; os meus professores achavam que o projecto era demanding em termos de leitura de legendas.”
Está em Londres, estrangeirada, a olhar para o país. Um dia voltará. “Não se esquece que o primeiro-ministro disse para os jovens emigrarem. Há-de haver um momento em que os estrangeirados hão-de voltar. Juntaremos esforços e ideias. Estou num país com o qual não estou de acordo em termos políticos. Mas há coisas que funcionam lá. Também é importante perceber que há coisas que não funcionam nos outros países, não é só em Portugal. Aqui é a minha casa.”