No Nevoeiro
Em Cannes 2010, Sergei Loznitsa meteu o espectador no lugar do camionista em My Joy; meteu-o no terror das fábulas, onde a brutalidade é ancestral. Foi um solavanco essa estrada para sítio nenhum: se se recordam, uma direcção errada fazia alguém perder a memória, ser violentado, condenado a errar pelas profundezas de uma estrutura mental: a URSS. Loznitsa dizia-nos em entrevista: “A Rússia é um grande país com uma história trágica. Isso deve-se ao facto de as pessoas não reflectirem sobre o seu passado e não aprenderem com a experiência passada. Assim o país vive num círculo vicioso, assombrado pelos mesmos demónios.” Disse isto e pensámos logo nos rostos adormecidos numa estação de comboios em The Train Stop (2000), documentário, sim, experiência sensorial sobretudo. O ecrã de Loznitsa é traumático e demoníaco; filmes com vocação espectral. “O que vemos no ecrã são sombras”. Sim, gente morta (Blockade, de 2005, fazia a reconstituição, se assim se pode dizer, do cerco a Estalinegrado com imagens de arquivo, com aqueles que já lá não estavam). Ou gente que ninguém quer ver. Em causa, a “fabricação” URSS. Em In the Fog volta a expor o trauma: a II Guerra - uma guinada na história contemporânea de My Joy atirava-nos já para aí. URSS ocupada pelas tropas alemãs e a suspeita de delacção a pairar sobre um elemento da resistência: o nevoeiro a tornar invisível a distinção entre heroísmo e traição. Mas antes que qualquer coisa nos fale ou nos segrede, tudo, inclusive a monumentalidade do trabalho com o operador Oleg Mutu, explicita tema e cerimónia: a queda do Humano. (Tavez por isso nunca Loznitsa se pareceu tanto com o grandiloquente Sokurov.) A questão é se a cerimónia sublinhada à volta do tema não reduz as hipóteses de turbulência e violência - quer dizer, a estrada é reconhecível aqui, não há grandes solavancos. O que há de (involuntariamente) preverso e cruel é o filme ter o peso de um monumento oficial, tão académico como os do velhinho Sergei Bondarchuck - esse fantasma do país dos sovietes.
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Em Cannes 2010, Sergei Loznitsa meteu o espectador no lugar do camionista em My Joy; meteu-o no terror das fábulas, onde a brutalidade é ancestral. Foi um solavanco essa estrada para sítio nenhum: se se recordam, uma direcção errada fazia alguém perder a memória, ser violentado, condenado a errar pelas profundezas de uma estrutura mental: a URSS. Loznitsa dizia-nos em entrevista: “A Rússia é um grande país com uma história trágica. Isso deve-se ao facto de as pessoas não reflectirem sobre o seu passado e não aprenderem com a experiência passada. Assim o país vive num círculo vicioso, assombrado pelos mesmos demónios.” Disse isto e pensámos logo nos rostos adormecidos numa estação de comboios em The Train Stop (2000), documentário, sim, experiência sensorial sobretudo. O ecrã de Loznitsa é traumático e demoníaco; filmes com vocação espectral. “O que vemos no ecrã são sombras”. Sim, gente morta (Blockade, de 2005, fazia a reconstituição, se assim se pode dizer, do cerco a Estalinegrado com imagens de arquivo, com aqueles que já lá não estavam). Ou gente que ninguém quer ver. Em causa, a “fabricação” URSS. Em In the Fog volta a expor o trauma: a II Guerra - uma guinada na história contemporânea de My Joy atirava-nos já para aí. URSS ocupada pelas tropas alemãs e a suspeita de delacção a pairar sobre um elemento da resistência: o nevoeiro a tornar invisível a distinção entre heroísmo e traição. Mas antes que qualquer coisa nos fale ou nos segrede, tudo, inclusive a monumentalidade do trabalho com o operador Oleg Mutu, explicita tema e cerimónia: a queda do Humano. (Tavez por isso nunca Loznitsa se pareceu tanto com o grandiloquente Sokurov.) A questão é se a cerimónia sublinhada à volta do tema não reduz as hipóteses de turbulência e violência - quer dizer, a estrada é reconhecível aqui, não há grandes solavancos. O que há de (involuntariamente) preverso e cruel é o filme ter o peso de um monumento oficial, tão académico como os do velhinho Sergei Bondarchuck - esse fantasma do país dos sovietes.