A rapariga cor de champanhe

Norte-americano fotografou Marilyn Monroe nua, num quarto de hotel. Foi a sua coroa de glória.

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Em 1955, Bert Stern, fotógrafo, 26 anos, filho da classe média de Brooklyn, estava a caminho do sonho americano. Tinha-o mesmo aprisionado num copo de Dry Martini: estivera frente às pirâmides do Egipto a fotografar para uma campanha da Vodka Smirnoff, e enquadrou de forma a que a imagem da pirâmide aparecesse invertida no copo. As vendas dispararam nesse ano, o que, em tempo de Guerra Fria, não era feito de menosprezar para uma marca que dizia "nome russo" por todos os lados. Bert Stern estava, portanto, a caminho...

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Em 1955, Bert Stern, fotógrafo, 26 anos, filho da classe média de Brooklyn, estava a caminho do sonho americano. Tinha-o mesmo aprisionado num copo de Dry Martini: estivera frente às pirâmides do Egipto a fotografar para uma campanha da Vodka Smirnoff, e enquadrou de forma a que a imagem da pirâmide aparecesse invertida no copo. As vendas dispararam nesse ano, o que, em tempo de Guerra Fria, não era feito de menosprezar para uma marca que dizia "nome russo" por todos os lados. Bert Stern estava, portanto, a caminho...

Nesse ano encontrou pela primeira vez Marilyn Monroe numa festa para o Actor's Studio, em Nova Iorque. Quando entrou, descreveu em tempos, não conseguiu perceber o que se passava com a luz. O cabelo louro na sala, a pele luminosa e uma folha verde-esmeralda a brilharem: um ponto de atracção para a luz, ou, o fotógrafo não percebeu, a fonte dessa luz?

Verde era o vestido dela, como tinta colada ao corpo. Marilyn, nesses anos já a estrela pós-O Pecado Mora ao Lado, conseguia-o porque lhe cosiam os vestidos já sobre o corpo. E tentava com a luz encandear a escuridão.

Em 1962, Bert Stern, casado com a rapariga dos seus sonhos e com uma filha, começava a acreditar que a América como "máquina do sonho" existia mesmo. Bastava uma máquina fotográfica. E adorava mulheres. Conseguira juntar as duas coisas como fotógrafo da revista Vogue, que lhe dava 100 páginas de moda por ano e mais dez com conteúdo à discrição – e 10 mil dólares por semana. Havia ainda a marca Smirnoff. E havia, em Roma, Elizabeth Taylor a ajudar à machadada final no studio system.

Uma das últimas exibições do pavão Hollywood chamava-se Cleópatra, que causava uma sangria de dinheiro à 20th Century Fox, e Stern foi destacado para fotografar a actriz em exclusivo no plateau do filme de Joseph L. Mankiewicz.
Partiu em direcção à morena. Mas as morenas assustavam-no, escreveu, davam-lhe vontade de fugir, e o fotógrafo, no avião, não deixava de pensar na sua fantasia loura. O desejo que se instalara naquela festa do Actor's Studio, em 1955, estava agora ancorado na sua auto-estima profissional de fotógrafo. Sentia-se preparado e Marilyn Monroe nunca tinha sido fotografada para a Vogue.

Nesse ano, a loura conseguiu tirar Taylor das capas das revistas quando mergulhou nua para a piscina de Something's Got to Give (1962), a comédia de George Cukor em que interpretava uma mulher que desaparecera numa ilha e que, tendo sido dada como morta, regressa a casa para encontrar o marido (Dean Martin) recém-casado com outra mulher (Cyd Charisse).

Os flashes acenderam-se, as fotos disparadas para todo o mundo eram um último "hurrah" da loura, triunfal, é verdade, mostrando uma esplendorosa forma física para quem acabara de passar por mais um divórcio (do dramaturgo Arthur Miller), por um filme que fracassara nas bilheteiras – Os Inadaptados (1961), em que se despira emocionalmente, exibição que chocara os fãs – e por uma passagem dolorosa pela ala psiquiátrica de um hospital.

O "hurrah" não durou muito, a morena, que ganhava muito mais do que a loura, voltaria às revistas e quando Bert Stern enfrentou os caprichos de Elizabeth e a fotografou, hierática, com os artefactos de Cleópatra, Marilyn acabava de ser despedida pela 20th Century Fox, que não tolerou os seus atrasos na rodagem e um registo interpretativo que hoje sentimos como moderno, mas que na altura só foi lido como errático.

Mas Bert queria concretizar a sua fantasia. Faltava-lhe isto, como escreveu: "Apanhar Marilyn Monroe sozinha num quarto, sem mais ninguém por ali e tirar-lhe a roupa toda." Ao telefone com a Pública, o fotógrafo, hoje com 82 anos, abre a memória, mas é como se quisesse proteger-se e afastar-nos dela. "Eu tinha um contrato com a Vogue que me dava total liberdade. E queria fazer algo diferente, que ainda não tivesse feito. E ela nunca tinha sido fotografada pela Vogue. E nunca tinha feito nus, desde que Tom Kelley a fotografara sobre veludo vermelho" – refere-se à série de nus de 1949, tinha Marilyn 22 anos, de onde foi retirada uma fotografia para um calendário que, quando tornada pública, se temeu pudesse terminar com uma carreira ascendente.

Não terminou.

"Ela era uma miúda muito bonita. Não pensei que fosse acessível. Talvez precisasse, naquele momento da carreira, de uma nova imagem", resume. Marilyn, aos 36 anos, continuava a tentar, com a luz, encandear a escuridão.

Sessão num "espaço de luz"
E foi assim, a Vogue disse que sim, Marilyn disse que sim, e o encontro foi marcado para o exclusivo e isolado Hotel Bel Air, suite número 261, Julho de 1962. Stern escolheu o cenário. "Não quis um estúdio, precisamente por causa das fotos que ela tinha feito para Tom Kelley. Aluguei uma suite e transformei essa suite em estúdio", conta-nos Stern, referindo-se à sala grande onde instalou as luzes e papel branco como background – só isso, uma espécie de espaço em branco, um "espaço de luz", diria ele, a ser preenchido pelas evoluções do modelo e de um "artista em estado de excitação", como se descreveu. Um quarto adjacente serviria de "dressing room" para Monroe e foi ali, em cima das camas, que Stern depositou as bugigangas e os lenços transparentes, de riscas coloridas ou a preto e branco que a Vogue disponibilizara. E, pièce de resistance, pedido feito pela entourage de Marilyn: três garrafas de Dom Perignon 1953.

E falta ainda isto: música, Everly Brothers, ou como Bert Stern, delírio nosso, espantava o receio de estar na proximidade da sua fantasia:

"Dream,
dream, dream...
When I feel blue
In the night,
When I need you
To hold me tight,
Whenever I want you
All I have to do
Is dream...
"

E ela chegou, com cinco horas de atraso – em vez de às 14h00, às 19h00. O sol já se punha em Los Angeles. Chegou sozinha, sem entourage, calças verdes, no make-up. Stern tinha à frente a sua fantasia, the girl next door em estado puro, ela existia, ele iria fazer tudo com a sua máquina para que ela não desaparecesse. E aconteceu assim, no lobby do hotel, como ele conta no catálogo Marilyn Monroe – A Última Sessão, complemento à exposição que se inaugurou na Fundação D. Luís I em Cascais no dia 3 e que, exposição e texto no catálogo, é (apenas) uma curta selecção do que aconteceu nesse encontro entre Bert Stern e Marilyn Monroe:

"Olá - disse eu - sou o Bert Stern.
Esqueci o meu casamento, o meu bebé, a minha vida de sonho em Nova Iorque, tudo menos aquele momento. Estava apaixonado.
- É muito bela - disse eu.
Ela olhou para mim e disse:
- A sério? Que coisa bonita para se dizer."

Sobre o que se passou na madrugada seguinte é História, ficaram as fotografias. Marilyn começou por rodear com humor as propostas de Stern sobre ausência de maquilhagem ("Ah, você quer ser criativo, hem?"). Mas, quando viu os lenços, foi directa: "Quer fazer nus?" Mais tarde definiria as regras: "Não vou tirar as calças." Preocupava-a uma cicatriz que tinha, de uma operação à vesícula seis semanas antes. Stern acabara de fotografar em Roma outra star with scars, Taylor, preocupada também que se visse o sinal de uma traqueotomia.

Mas como eram diferentes, Taylor e Monroe! A primeira sempre estática, exalando autoridade na pose, a segunda "muito mais livre e lúdica", como Stern testemunharia, e difícil de imobilizar como a luz. "She was happening." Foi tudo alimentado a champanhe – os dois alimentaram-se de champanhe. E foi uma espécie de back to basics para Monroe e para o olhar de um fotógrafo. Como se passassem por cima do que Richard Avedon, Cecil Beaton, George Barris, Sam Shaw ou Milton Greene, entre outros, tinham feito com Monroe – de forma diferente, todos eles, preocupados em revelar uma "interioridade", quer jogando na metamorfose, quer encenando o bucolismo, quiseram aplacar o complexo de culpa do voyeur por ter olhado para aquele corpo apenas como um corpo.

Stern, e é essa a grande melancolia que impregna a série de fotos conhecida por The Last Sitting, foi aquele que fotografou pela última vez Marilyn Monroe, que morreria semanas depois, no dia 4 de Agosto, e fê-lo como das primeiras vezes: como a girl next door com quem todos os homens heterossexuais se querem casar, a "miúda cor de champanhe".

As últimas fotos de Marilyn são um link (impossível) com as suas fotos iniciais e na sua frontalidade, nudez (de propósitos) e sentido lúdico, são o mais comovente comentário sobre a passagem do tempo e os nossos ardis – como a máscara da alegria – para o contornar.

Até às sete da manhã, Marilyn Monroe deixaria cair as calças. E os véus. Até essa hora, foi a parceira de uma cerimónia de acasalamento entre desejo e fotografia, uma promessa de vários lenços e véus que ia franqueando limites. E depois acabou, suspendendo-se a entrega. "My love affair with Marilyn was over", e ela foi-se embora.

A última Marilyn

Não se tinha ido embora. "A Vogue quis mais fotos e outro tipo de fotos. Queria mais uma abordagem de moda", conta-nos Stern.

Os editores ficaram assustados com os nus? Sobretudo, ao que parece, "não gostaram do cabelo dela", daquela textura de algodão doce que era a marca de Marilyn nos últimos meses da sua vida – espantamo-nos com isso e Stern concorda com o espanto. E quiseram mais preto e branco e mais roupa, o que naqueles anos era a marca do chique da revista.

Novo contacto, Marilyn disse que sim, a mais duas sessões. Desta vez chegou (atrasada) com entourage (e a Vogue mandou editor, a coisa era a sério), e foi Marilyn de vestido preto, Marilyn de casacos de peles, Marilyn de redes e chapéus... e o cabelo mais conforme o standard, e o modelo a dar sinais de perder a paciência para a fashion – numa das imagens está mesmo a bocejar.

Havia algo por cumprir, sentia Stern, e Marilyn terá sentido o mesmo, porque às tantas a equipa e a roupa foram postos fora do quarto, a modelo saltou para a cama e passou só a haver o lençol a separá-la do fotógrafo - que queria fazer a foto que ainda não tinha feito, era "unfinished business".

Château Lafitte '55 para ela, estimulantes em comprimidos para ele (eram os anos 1960, a ingenuidade podia ser desculpa), Stern pôs-se de joelhos na cama, "blang", mais perto, "blang", mais perto ainda com a câmara a disparar, a tentativa de lhe roubar um beijo ("Não", ela afastou a cara), e temos de acreditar no que ele conta: que só por ele é que o ritual erótico não avançou. Isso antes de ela adormecer, exausta, e de ele ter deixado o bungalow do Hotel Bel Air, em direcção aos primeiros raios da manhã, nem feliz, nem deprimido, como se descreveu, estranhamente ausente.

Perguntámos-lhe se essa relação modelo-fotógrafo lhe aconteceu frequentemente... "Não, não acontece frequentemente." E quando acontece, como se estabelece o limite? "Quando acontece." E não pareceu querer falar mais do assunto.
À terceira sessão, tudo foi diferente, com uma distância: a reserva de protecção que se impõe depois de limites terem sido abalados.

Seria o fim, Bert Stern sabia-o, e faltava-lhe chegar ao retrato, que ele queria definitivo e a preto e branco como o que Edward Steichen arrancou a Greta Garbo. Stern em cima de umas escadas, Marilyn coberta de jóias, braços ao alto, e o pedido de ajuda à relações públicas, Pat Newcomb, para fazer rir a sua cliente. "E aqueles dois homens na tua vida?", atirou Pat. Marilyn começou a rir (o pormenor tornar-se-ia arrepiante; Anthony Summers, o escritor-repórter que investigou a morte actriz, usa-o no seu livro, Goddess, para sublinhar ainda mais a ligação nefasta entre a morte de Marilyn e John e Bobby Kennedy, supostamente os "dois homens").

A foto existe, é a Marilyn de Bob Stern, foi a última de Marilyn para Bob Stern - que, confessa, apesar dos problemas emocionais da actriz, "dos seus problemas com os homens e com os comprimidos", não encontra tristeza nas fotos que fez. Dizemos-lhe: o esgar de Marilyn na tal última imagem, mesmo pondo de lado o "E aqueles dois homens na tua vida?", é um esgar de máscara mortuária – e é claro que não podemos ignorar o que hoje sabemos, que Marilyn Monroe morreria semanas depois. "Ela era a rapariga mais gira", repete Stern.

Dias depois recebeu as provas de contacto da sua modelo, que riscou uma série de imagens e inutilizou outras com gancho de cabelo. A Vogue fez o seu portfólio, um retrato bastante conservador do que se tinha passado naquelas três sessões, na opinião de Stern: as fotos a preto e branco, os vestidos negros... Conservador e estranhamente premonitório? As páginas da revista estavam na gráfica quando, a 5 de Agosto de 1962, era domingo, o sol brilhava, a televisão interrompia a sua programação para anunciar que durante a madrugada a miúda cor de champanhe tinha desistido de acender a luz na escuridão. Fora-se embora.