O Grande Gatsby por um pequeno Luhrmann
Sonha-se em grande ao lado de Baz Luhrmann, e ele, na conferência de imprensa do filme no Festival de Cannes, mostrou que é o maior sonhador.
Se dúvidas houvesse da capacidade “infecciosa” de Baz Luhrmann, que ele inspira quem está ao pé a sonhar em grande (“dream big”, palavras de um actor que há 20 anos trabalhou com ele pela primeira vez, Leonardo DiCaprio), bastaria aquele momento em que se apoderou de uma conferência de imprensa razoavelmente “estrelada” — DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan e esse senhor que se chama Amitabh Bachchan — para não mais a largar. Luhrmann contava como na véspera, na estreia americana de O Grande Gatsby, uma mulher lhe surgiu do nada pronunciando um “I came all the way from Vermont…” que na recriação do realizador australiano ficou adornado com as cadências trémulas de Katharine Hepburn. Porquê Katharine Hepburn? Nem ele sabe, mas ele é um fabricante de golpes de teatro, ou não fosse o autor de uma Red Curtain Trilogy, composta por filmes como Ballroom Dancing, Romeu e Julieta e Moulin Rouge.
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Se dúvidas houvesse da capacidade “infecciosa” de Baz Luhrmann, que ele inspira quem está ao pé a sonhar em grande (“dream big”, palavras de um actor que há 20 anos trabalhou com ele pela primeira vez, Leonardo DiCaprio), bastaria aquele momento em que se apoderou de uma conferência de imprensa razoavelmente “estrelada” — DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan e esse senhor que se chama Amitabh Bachchan — para não mais a largar. Luhrmann contava como na véspera, na estreia americana de O Grande Gatsby, uma mulher lhe surgiu do nada pronunciando um “I came all the way from Vermont…” que na recriação do realizador australiano ficou adornado com as cadências trémulas de Katharine Hepburn. Porquê Katharine Hepburn? Nem ele sabe, mas ele é um fabricante de golpes de teatro, ou não fosse o autor de uma Red Curtain Trilogy, composta por filmes como Ballroom Dancing, Romeu e Julieta e Moulin Rouge.
A mulher que talvez nem falasse como Katharine Hepburn tinha vindo de Vermont para ver o que Luhrmann “tinha feito” com o livro do avô, F. Scott Fitzgerald. Gostou, tanto mais que sempre se disse que não era adaptável — o livro já foi um filme três vezes antes desta adaptação de Luhrmann, e por todas essas vezes se diz ainda que é inadaptável. “And by the way”, a neta de Fitzgerald gostou da música, hip hop com curadoria do rapper Jay-Z, o equivalente da “música da rua” dos anos 1920, jazz.
Sonha-se em grande ao lado de Luhrmann, e ele, na conferência de imprensa do filme de abertura da 66.ª edição de Cannes, quarta-feira, mostrou que é o maior sonhador. Evidenciou que não lhe desagrada comparar-se a Fitzgerald. Houve uma vez, pelo menos, em que falou na sua fase de loucura e pândega, antes de ter conhecido Catherine Martin, que é hoje sua mulher e responsável pelo visual e guarda-roupa dos seus filmes (o olhar que atirou à sempre silenciosa Catherine, no momento em que falou dessa louca vida de boémia anterior, foi para a incluir como uma Zelda Fitzgerald também renascida?).
Depois, e fundamentalmente, porque falou várias vezes no facto de terem sido derrotadas as miríficas ambições de Fitzgerald quando enviou ao seu editor — de Saint Raphael, arredores de Cannes — o manuscrito de O Grande Gatsby, em 1924: vendas mínimas e o desdém crítico. Houve quem lhe chamasse “palhaço”. Baz quis incluir-se na troupe dos eleitos incompreendidos.
Tudo começou como nos livros, a bordo de um comboio transiberiano, com vinho australiano ao lado. Um dos audiolivros que Baz levava era esse magro volume a que gerações e gerações regressam, lendo sempre coisas diferentes. Dessa vez Baz leu menos a história de amor entre Jay Gatsby e Daisy Buchanan e encontrou, sobretudo, uma história com ressonâncias actuais: “Quem somos, onde estamos hoje.” O co-argumentista Craig Pearce precisa: a orgia em O Grande Gatsby prenuncia o crash de 1929, mas Fitzgerald foi premonitório em relação à implosão de todo um sistema.
Tratou-se, então, de “libertar” uma voz interior do livro, uma espécie de verdade que lá está dentro. Nesse processo, e depois de convencer a Warner Bros. a investir com o argumento de que havia toda uma marca genética a escutar (deu como exemplo um filme como Casablanca), rodeou-se de académicos especialistas em Fitzgerald, deu aos actores, que com ele funcionam como troupe teatral, livros e livros para lerem, viajou com Carey Mulligan até Princeton para que ela lesse as cartas entre Zelda e F. Scott e as cartas entre o escritor e a sua “musa”, Ginevra King, a quem terá ido buscar frases inteiras para O Grande Gatsby — a Daisy do filme, segundo a intérprete, Carey Mulligan, é assim um misto das “vozes” daquelas duas mulheres. Com isto Baz quer dizer que, apesar de todas as liberdades que parece tomar, apesar de todos os anacronismos que pretende espectacularizar, é um respeitador dos textos, é afinal um canónico, é “vigilante” da “verdade” que está nos textos que impregnaram a nossa cultura, como disse DiCaprio, que interpreta Jay Gatsby.
É verdade que o que ele fez ao Romeu e Julieta e a Shakespeare, por exemplo, participa dessa energia libertadora. É qualquer coisa de justo, simultaneamente: como se Luhrmann fosse o agente potenciador de algo que já existe em potência. Mas a questão, provavelmente, não é a iconoclastia do hip hop em O Grande Gatsby, nem os anacronismos de guarda-roupa; a questão, que tem sido colocada como obstáculo na recepção crítica muito polarizada ao filme, é o facto de uma marca e uma assinatura estarem a funcionar como automatismo, um mash up que anula profundidades e recortes — o hip hop é, tal como o 3D, utilizado supostamente para permitir a reconquista de uma nova intimidade para o cinema, mera música de fundo.
Mas Baz Luhrmann, 50 anos, não se pode queixar. Mesmo que lhe chamem palhaço, O Grande Gatsby é um pequeno Luhrmann e é um filme sem sentido do trágico, mas já é um sucesso de bilheteira.